1. Introdução
O objetivo do autor é analisar, com fundamento em considerações jurídicas, históricas e políticas, a postura brasileira no que concerne ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos, constituído de normas de alcance global e de mecanismos de âmbito regional. Após breve explanação acerca da sistemática internacional de proteção dos direitos humanos, o autor descreve, por meio de relato histórico, os aspectos mais relevantes da política externa brasileira, no que diz respeito ao tema. A assinatura de tratados, a participação em conferências e a propositura de novas concepções acerca dos direitos humanos são os principais fatos usados para identificar os aspectos gerais, as nuances e as inflexões da política externa brasileira.
2. O sistema internacional de proteção dos direitos humanos
Ainda que tenham existido precedentes relevantes (e.g. o direito humanitário, as Convenções de Genebra e da Haia, a OIT), a proteção internacional dos direitos humanos passou a ser preocupação efetiva dos atores internacionais apenas depois da Segunda Guerra Mundial. Essa nova postura dos Estados foi materializada na assinatura da Carta da Organização das Nações Unidas (1945) e na publicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), documentos fundadores da denominada Carta Internacional dos Direitos Humanos (International Bill of Rights). O primeiro documento - além de constituir a organização mais relevante da história da sociedade internacional - abarca, em inúmeros dispositivos, diversas referências aos direitos humanos (e.g. Preâmbulo, art. 1.3, art. 55). A especificação destes, por sua vez, ocorreu mediante publicação da Resolução n.º 217 A (III), da Assembléia Geral da ONU, documento que veiculou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Por meio desta, o conteúdo dos direitos mencionados na Carta foi explicitado. Ambos os documentos, por isso, são complementares e inseparáveis, ainda que a Declaração, em sua forma, seja espécie normativa diversa e aparentemente não vinculante, pois, diferentemente da Carta da ONU, não constitui tratado internacional.
Além desses dois documentos, no âmbito global, devem ser citados, como marcos do sistema de proteção dos direitos humanos, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966), o Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais (1966), a Primeira Conferência Mundial de Direitos Humanos (Teerã, 1968), a Segunda Conferência Mundial de Direitos Humanos (Viena, 1993), o Estatuto de Roma (1998), bem como diversos tratados internacionais sobre temas específicos de direitos humanos (Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, 1948; Convenção Internacional contra Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes, de 1984; Convenção Internacional para os Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência, 2006).
Paralelamente aos esforços globais de proteção dos direitos humanos, existem tentativas regionais de proteção efetiva destes. Os continentes europeu, americano e africano apresentam sistemas parciais de proteção dos direitos humanos, que objetivam reforçar e completar as normas instituídas globalmente. No caso das Américas, o sistema de proteção surgiu concomitantemente ao sistema universal. Sua estrutura reflete, de forma quase perfeita, àquela que foi constituída no âmbito da ONU. A Carta de Bogotá (1948) e a Declaração Americana, do mesmo ano, são os documentos fundadores do sistema interamericano. Posteriormente, eles foram complementados pela Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica, 1969), pelo Protocolo Adicional à Convenção Americana (Protocolo de San Salvador, 1988) e pelo Protocolo Adicional referente à Abolição da Pena de Morte (1990).
3. A política externa brasileira e a proteção internacional dos direitos humanos
Considerando essa dualidade de sistemas jurídicos de proteção dos direitos humanos, pode-se afirmar que a posição brasileira, a partir de 1945, é, em regra, colaborativa com a formação do regime internacional. A atuação do Brasil na Conferência de São Francisco (1945) e a participação da Austregésio de Athaíde, ao lado de Eleonor Roosevelt, na Comissão Redatora da Declaração Universal, é exemplo da posição ativa do país. Durante as décadas seguintes, devem ser destacadas as iniciativas brasileiras na conscientização internacional sobre o problema do desenvolvimento econômico e social, tema que, em momento posterior, seria plenamente incorporado ao rol de direitos fundamentais. Ao lado disso, indiretamente, por meio da Operação Pan-Americana (OPA) e da Política Externa Independente (PEI), durante as décadas de 1950 e 1960, o Brasil defendeu a promoção dos direitos humanos de segunda geração, sustentando a tese segundo a qual as considerações de política internacional, principalmente em período de acirramento do confronto ideológico, não poderiam excluir o problema crônico da pobreza e do subdesenvolvimento, que assolavam a maior parte da população mundial.
A elaboração dos preceitos da Operação Pan-Americana - política externa concebida durante o governo JK - significou a inversão da lógica predominante no pensamento estadunidense durante a guerra fria. No entendimento dos EUA, da segurança hemisférica contra o avanço das idéias comunistas resultaria o desenvolvimento sócio-econômico, plenamente assegurado em ambiente regido pelos preceitos liberais e capitalistas. Por meio da OPA, de forma diversa, o Brasil advogou que o afastamento do comunismo, na realidade, seria conseqüência do desenvolvimento econômico e social, o qual deveria, por isso, preceder e reforçar as preocupações com a segurança hemisférica. Os formuladores da Política Externa Independente, por sua vez, durante os governos de Jânio Quadros e de João Goulart, explicavam que o confronto leste-oeste deveria, no caso dos países subdesenvolvidos, subordinar-se à realização dos interesses econômicos nacionais. Por essa razão, a universalização das relações comerciais - essencial para elevação das exportações brasileiras, mediante estabelecimento de contatos com países do leste europeu inclusive - não poderia ser obstada por razões ideológicas, inerentes à política bipolar da guerra fria. Nos dois casos (OPA e PEI), por conseguinte, a política externa brasileira objetivou reforçar as políticas nacionais de desenvolvimento e, conseqüentemente, melhorar as condições materiais da população do país, conduta que, embora de forma implícita, estava em plena consonância com a segunda dimensão de direitos humanos.
Essa posição colaborativa do país, apesar de ser predominante durante os últimos sessenta anos, não foi ininterrupta. Durante o período de vigência do regime militar, o país adotou, interna e externamente, postura negativa e defensiva em relação aos direitos humanos, como se infere da análise do contencioso com os Estados Unidos no decorrer do governo Geisel. Segundo Analúcia Danilevicz Pereira, os atritos desencadeados pela diplomacia agressiva de proteção internacional dos direitos humanos, adotada pelo governo Carter, gerou sérios atritos entre EUA e Brasil. Este, com base em posição soberanista, manifestou seu desacordo, em relação à suposta ingerência dos EUA, por meio da denúncia do Acordo Militar que havia sido firmado entre os dois países durante o segundo governo de Vargas. (Danilevcz Pereira, pp. 96-97).
No curso do processo de redemocratização, o Brasil retoma, de modo inequívoco, “suas posições em prol da proteção internacional de direitos humanos” (Cançado Trindade, pp. 220). Pode ser citada, como prova dessa posição participativa do Brasil, a presidência - ocupada pelo embaixador Gilberto Sabóia - do Comitê de Redação da Segunda Conferência Mundial de Direitos Humanos (1993), bem como a ratificação, durante a década de 1990, dos diversos documentos internacionais, globais e regionais, de proteção de direitos humanos (Cançado Trindade, pp. 224). Em 1992, o Brasil ratificou os dois Pactos Internacionais de direitos humanos e aderiu ao Pacto de San Jose da Costa Rica. Em 1996, o Brasil tornou-se parte dos dois Protocolos à Convenção Americana (Cançado Trindade, pp. 239). Dois anos depois, o país tomou sua decisão mais relevante acerca da proteção internacional de direitos humanos: a aceitação da jurisdição obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos, ato que submete o Estado brasileiro à jurisdição externa, especializada e compulsória.
Durante o governo Lula, Celso Amorim, então Ministro das Relações Exteriores, em artigo publicado na Revista Política Externa, afirma que, além de contribuir para solução, em âmbito global, de crônicos problemas econômicos e sociais, o Brasil reforçou sua participação nos órgãos de proteção dos direitos humanos da ONU. Amorim explica que o Brasil, país dotado de competência mediadora e de vontade construtiva, foi ator importante na criação do Conselho de Direitos Humanos (2006), órgão mais bem estruturado, mais efetivo e menos volúvel a decisões políticas do que seu antecessor, a Comissão de Direitos Humanos. Esta era subordinada ao Conselho Econômico e Social (ECOSOC), suas reuniões eram pouco regulares e seus membros não tinham compromissos com a promoção doméstica dos direitos humanos, o que gerava paralisia e incoerência no órgão. O Conselho, por sua vez, está vinculado à Assembléia Geral, órgão mais representativo e poderoso do que o Conselho, e seus membros, em tese, não podem ser países violadores dos direitos humanos.
Nos anos 2000, além disso, o Brasil ratificou o Estatuto de Roma, tratado que instituiu o Tribunal Penal Internacional, instância apropriada para julgar crimes internacionais de grande gravidade, como genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e crime de agressão. O TPI, ainda que não seja organismo especializado em casos de violação de direitos humanos, exerce função relevante no sistema internacional de proteção, uma vez que, diferentemente de outras organizações que avaliam a conduta de Estados, é a única instância multilateral competente para julgar pessoas que cometeram graves crimes internacionais. Essa relevante iniciativa brasileira, juntamente com aceitação da hierarquia constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos, foi plenamente incorporada ao ordenamento jurídico pátrio por meio da Emenda Constitucional n.º 45, de 2004. Por força dessa iniciativa, o Estado brasileiro garante, formalmente, a preponderância dos direitos humanos no ordenamento doméstico, aspecto que, somado inciso II do art. 4.º da CF, referente aos princípios regentes das relações internacionais do país, consolida, juridicamente, a posição clara e coerente do Brasil, no que concerne a esse importante tema
Deve-se destacar que o governo de Dilma Rousseff não alterou a política externa brasileira em relação à proteção internacional dos direitos humanos. O Brasil, durante seu governo, continua valorizar a defesa internacional dos direitos humanos, desde que exercida nos órgãos multilaterais apropriados. O país, além disso, mantém sua posição acerca da indivisibilidade das três gerações de direitos humanos, conforme reafirmado durante a Conferência de Viena, em 1993. No que concerne às críticas que o governo Lula sofreu, por parte da mídia, acerca de sua posição omissa e, por vezes, condescendente no que tange à violação dos direitos humanos em alguns países, Dilma reforça a postura brasileira favorável à multilateralização do problema. Em entrevista à Revista Política Externa, a então candidata explicou que “o Brasil não é uma ONG que sai pelo mundo distribuindo certificados de bom ou mau comportamento”, referindo-se à conduta, adotada pelas grandes potências, de tradicional ingerência unilateral em assuntos internos de outros países.
Pode-se inferir que, analisado em perspectiva histórica, a postura brasileira acerca da proteção internacional dos direitos humanos é colaborativa e afirmativa, ainda que, em certos períodos, por razões de política doméstica, o país tenha-se desviado dessa posição tradicional. No âmbito regional e global, o país, além de ser parte dos principais acordos internacionais protetivos, aceita a obrigatoriedade de jurisdições internacionais, as quais são as verdadeiras responsáveis pela efetiva proteção internacional dos direitos humanos.
4. Considerações finais
A proteção internacional dos direitos humanos, assim como outros temas que constituem os diversos regimes internacionais, encontra dificuldades para sua plena efetivação. A defesa irrestrita da soberania, a colisão com tradicionais princípios de direito internacional público (e.g. autodeterminação dos povos, não ingerência) e a ausência de regulamentação supranacional vinculante que supere os desencontros entre os interesses estatais impossibilitam a criação de um sistema de proteção verdadeiramente universal e eficaz, a despeito dos inegáveis avanços normativos logrados desde o fim da Segunda Guerra.
Chris Brown, autor que privilegia a análise política, no capítulo “Human Rights”, da obra The globalization of the world politcs, destaca que, com freqüência, a origem ocidental dos direitos humanos de primeira geração torna difícil sua aceitação por outros povos, pois estes entendem que a imposição de regras e de princípios estranhos à sua cultura significa a perpetuação do status de inferioridade colonial que predominou durante séculos anteriores. O autor, ao lado disso, explica que o constante processo de alargamento dos direitos humanos (por meio da inclusão dos diretos coletivos e transgeracionais) causa, aparentemente, conflitos conceituais que obstam qualquer esforço coordenado para criação de mecanismos efetivos de proteção.
Consciente da complexidade do tema, que, no âmbito das relações internacionais, envolve aspectos políticos e jurídicos, o Brasil, em sua política externa, objetiva atuar como construtor de consensos (um tertius-inter-partes, nas palavras de Lafer, pp. 76) no âmbito dos regimes internacionais. Essa posição é materializada por meio da participação ativa nos foros multilaterais e mediante exemplo de sua conduta comprometida com regras, com princípios e com instituições internacionais. A aceitação da obrigatoriedade de jurisdições internacionais, cujas sentenças condenatórias são espontaneamente cumpridas pelo governo, é prova mais substancial das características colaborativas da política externa brasileira.
Bibliografia
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