INTRODUÇÃO
Em razão da omissão do legislador no que tange ao momento processual adequado para que o magistrado decida a respeito da inversão do ônus da prova, ainda há grande controvérsia na doutrina e jurisprudência sobre a aplicação do instituto.
Isso se dá pelo fato de que os Códigos de Processo Civil e de Defesa do Consumidor referem, respectivamente, somente a quem cabe a produção da prova e quais os requisitos para que o juiz inverta esse ônus, deixando de esclarecer, contudo, quando deverá ocorrer de fato a inversão.
Como se verá, os posicionamentos criados pela jurisprudência ainda abordam a questão de forma obscura, muitas vezes confundindo os institutos e ignorando as diferentes consequências da aplicação da inversão ope iudices e da inversão ope legis. Isso tem causado aos operadores do direito muitas dúvidas no que tange ao momento da aplicabilidade da inversão do ônus da prova nos casos concretos, dando ao magistrado, inclusive, uma margem maior de discricionariedade para decidir os postos sub judice.
Dessa forma, para a construção do presente trabalho, o qual se propõe a estudar o problema ora exposto, utilizou-se dos métodos de pesquisa bibliográfico e jurisprudencial, expondo os principais aspectos da teoria geral da prova, bem como as regras atinentes ao ônus da prova nos Códigos de Processo Civil e de Defesa do Consumidor, a fim de melhor compreender os posicionamentos existentes sobre o tema em questão.
1.A Distribuição do ônus da prova nas relações de consumo
A proteção do Consumidor foi codificada no Brasil na década de 90, tendo como influência o direito comunitário Europeu[1], baseado no sistema Norte Americano[2]. Contudo, mesmo antes da criação do Código de Defesa do Consumidor, a jurisprudência vinha se posicionando a respeito da necessidade de construção de normas mais adequadas para os casos de consumo (SANSEVERINO, 2002, p.16-17).
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso XXXII[3], estabeleceu a defesa do consumidor como dever do Estado e, por essa razão, não se mostrava mais adequada a aplicação da Lei Civil aos casos de consumo.
Naquela época, ainda vigia o Código Civil de 1916, o qual se baseava na culpa provada, não abrindo espaço para a culpa presumida. Filho (2008, p. 22) refere que o Código Civil de 2002, embora permaneça com a idéia subjetivista como regra geral, evoluiu ao incorporar a responsabilidade objetiva.
Por sua vez, o Código Civil de 2002, em seus artigos 186[4] e 927[5], prevê como cláusula geral a responsabilidade subjetiva, ou seja, além da conduta e do dano, verificar-se-á o elemento culpa para que haja a responsabilidade civil e o dever de reparação (MATIELO, 1998, p. 18). Contudo, há casos em que o legislador permite a presunção de culpa, ou seja, a aplicação da teoria da responsabilidade objetiva, como se depreende, por exemplo, da leitura do artigo 936 da Lei Civil[6].
Por outro lado, a Lei Consumerista traz como regra a responsabilidade objetiva dos produtores e fornecedores “fundada no dever e segurança do fornecedor em relação aos produtos e serviços lançados no mercado de consumo” (FILHO, 2008, p. 17, grifos do autor).
Na responsabilidade objetiva, comprovada a ocorrência da lesão e o liame entre a conduta e o resultado, nasce o dever reparatório, sem a averiguação da presença ou não de culpa. (MATIELO, 1998, p. 19). Assim, segue o autor referindo que “A presunção da culpa leva à inversão do ônus probatório, que passa a ser encargo do acusado, e não daquele que se apresenta como vítima” (MATIELO, 1998, p. 21).
Portanto, o Código de Defesa do Consumidor criou normas processuais específicas às relações de consumo, relativizando a regra do artigo 333 do Código de Processo Civil, e usando as normas abertas para conferir ao juiz possibilidade de utilização de técnicas destinadas à efetiva e adequada tutela dos direitos fundamentais do consumidor (CARPES, 2010, p. 73).
Leciona Sanseverino (2002, p. 328): “O fornecedor, como réu da ação de reparação de danos, deverá demonstrar os fatos impeditivos, modificativos e extintivos do direito do consumidor, bem como aqueles cujo ônus probatório lhe for atribuído pela lei ou pelo juiz”.
Logo, no Código de Defesa do Consumidor, o ônus probatório atinente ao fornecedor ocorrerá via determinação legal ou judicial, cujas previsões serão abordadas nos itens a seguir.
1.2 A inversão do ônus da prova ope legis[7]
A inversão ope legis é aquela que decorre da lei, e “determina que, numa dada situação, haverá uma distribuição do ônus da prova diferente do regramento comum do artigo 333 do CPC” (DIDIER, 2008, p. 78). Por isso, para o Processualista, se trata de uma regra de julgamento, devendo o magistrado observar se as partes se desincumbiram dos seus ônus processuais. (DIDIER, 2008, p. 79).
Essa espécie de inversão vem contida nos artigos 12, parágrafo 3º[8], e 14, parágrafo 3º[9], ambos do Código de Defesa do Consumidor, os quais atribuem ao fornecedor o ônus de comprovar a inexistência do defeito do produto ou do serviço. Por isso, para Sanseverino (2002, p. 329), esse ônus se aplicado o Código de Processo Civil ficaria a cargo do demandante, já que o defeito no produto ou no serviço está ligado ao fato constitutivo do direito do autor.
Igualmente, essa regra é prevista no artigo 38 da Lei Consumerista[10]. Sobre o assunto, Didier Refere: “A regra do ônus da prova para determinar a correção ou veracidade da informação publicitária é a de que cabe ao fornecedor” (DIDIER, 2008, p. 79).
Todavia, o Código de Defesa do Consumidor autoriza também a inversão judicial do ônus da prova, quando o magistrado verificar a verossimilhança das alegações do consumidor e que este é dotado de hipossuficiência.
1.3 A inversão do ônus da prova ope iudicis [11]
A previsão da inversão do ônus da prova em razão de uma determinação judicial, vem disposta no artigo 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor. Nesse caso, como já foi mencionado, a inversão ocorrerá quando estiverem presentes dois pressupostos: a verossimilhança das alegações e a hipossuficiência do consumidor.
No que se refere à verossimilhança Prux (1998, p. 333) aduz: “A verossimilhança, portanto, é aquela aceitação de foro íntimo, de que aquilo que o autor está a alegar, tem, naquele momento, todas as indicações de ser verdade”. Portanto, na prática, significa que os fatos narrados pelo consumidor e em conjunto probatório carreado nos autos, devem fazer com que o juiz presuma a veracidade das alegações do consumidor.
Já no que diz respeito à hipossuficiência, está relacionada à vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo ou no exercício de seus direitos voltados a ele. Por isso, o referido autor afirma que essa fraqueza do consumidor em relação ao fornecedor pode se dar em razão de dois pontos fundamentais:
O primeiro e mais elementar é a falta de recursos materiais. [...] O segundo, diz respeito à ausência de um nível cultural mínimo por parte do consumidor, de modo a torná-lo capaz de entender a conjuntura da contratação, e assim poder, tanto expressar de forma exata e consciente sua vontade no momento de fixar cláusulas contratuais, quanto, na seqüência, bem exercer seus direitos em qualquer eventualidade (PRUX, 1998, p. 333).
Sob essa perspectiva, oportuno mencionar a questão da aplicabilidade ou não da inversão ope iudicis para apuração da responsabilidade dos profissionais liberais[12]. Isso porque, com o crescimento das relações entre consumidores e os profissionais em questão, mormente no que diz respeito aos casos relacionados aos erros médicos, os Tribunais passaram a ter que se posicionar sobre a aplicabilidade ou não do artigo 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor nesses processos.
A lei de defesa ao consumidor, embora tenha adotado como regra a responsabilidade objetiva, dispõe, no artigo 14, parágrafo 4º[13], que no caso dos profissionais liberais a responsabilidade será apurada mediante a verificação de culpa; ou seja, ao profissional liberal se aplica a responsabilidade subjetiva, cabendo, via de regra, ao consumidor a comprovação do seu direito.
Contudo, em análise aos casos práticos, se vê que os tribunais têm entendido a viabilidade da aplicação do artigo 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor, em prol do consumidor. Foi nesse sentido que a Nona Câmara Civil do Tribunal do Rio Grande do Sul julgou o caso abaixo:
APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. ERRO MÉDICO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS, MATERIAIS E ESTÉTICOS. REDUÇÃO DE GORDURA LOCALIZADA, ESTRIAS E CELULITE. PROCEDIMENTO ESTÉTICO. IMPROCEDÊNCIA MANTIDA. 1.Preambularmente, cumpre ressaltar que a responsabilidade civil do médico é subjetiva, de acordo com o que preceitua o art. 14, § 4º, do CDC. 2. A obrigação assumida pelo médico, na maioria dos casos, é de meio e não de resultado. O objeto da obrigação não é a cura do paciente, e sim o emprego do tratamento adequado de acordo com o estágio atual da ciência, de forma cuidadosa e consciente. 3.Contudo, no que tange aos procedimentos realizados pela parte autora, para redução de estrias, celulite e gordura localizada, o caso dos autos diz respeito claramente à obrigação de resultado, porquanto o médico se compromete na obtenção de determinado resultado, tendo em vista que a pretensão do paciente é melhorar seu aspecto estético. 4.Assim, oportuno ressaltar que, embora o CDC na norma precitada estabeleça que a responsabilidade civil do profissional liberal seja subjetiva, tal disposição não impede a inversão do ônus da prova, na medida em que, obviamente, o paciente é hipossuficiente em relação àquele no que tange à técnica aplicada e aos conhecimentos médicos necessários. 5. Na análise quanto à existência de falha no serviço prestado, bem como da culpabilidade do profissional, o Magistrado, que não tem conhecimentos técnico-científicos atinente à área médica, deve se valer principalmente das informações prestadas no laudo técnico. 6.Contudo, no presente feito não há como se reconhecer imperícia ou negligência do médico-réu na realização do procedimento em tela, na medida em que este adotou a técnica habitual e as manchas resultaram da exposição solar da paciente. 7.Não desconheço que o resultado almejado pela autora não foi atingido, pois de outra forma não haveria razão para o ingresso da presente demanda. O que se vislumbra, em verdade, é que a parte postulante não ficou satisfeita com os frutos do procedimento, possivelmente não por uma expectativa criada pelo médico demandado, mas sim em função de não ter adotado as cautelas necessárias para o sucesso dos procedimentos feitos. Pois, além de ser fumante e não ter deixado o hábito do tabagismo, antes ou depois do tratamento realizado, o que diminui a possibilidade de atingir os resultados almejados, também se expôs ao sol, comportamento este desautorizado pelo médico, que também pode ter dado causa as intercorrências noticiadas no feito. 8.Assim, não assiste razão à autora ao imputar ao réu a responsabilidade pelo evento danoso, na medida em que não restou comprovado nos autos qualquer conduta culposa pelo profissional que prestou atendimento aquela que pudesse resultar no dever de reparar. Negado provimento ao apelo. (Apelação Cível Nº 70039432489, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Luiz Lopes do Canto, Julgado em 26/01/2011, grifo nosso).
Da mesma forma, a Desembargadora Marilene Bonzanini Bernardi expôs, quando do julgamento da Apelação Cível nº 70015920739, em que se discutia eventual ocorrência de erro médico que ocasionou a amputação do braço do paciente:
E aqui é que se deve examinar o comportamento processual do réu. Optou ele por quedar-se inerte no que tange a produção de provas, não procurado demonstrar o certo no procedimento que adotou, ônus que lhe cabia, considerando que se está diante de caso a ser solucionado a luz do Código de Defesa do Consumidor e que, inobstante não haver a responsabilidade independente de culpa, há possibilidade da inversão do ônus da prova (Apelação Cível nº 70015920739, Nona Câmara Cível , Tribunal de Justiça do RS, Relatora: Iris Helena Medeiros Nogueira, Julgado em: 16/08/2006).
Continua a Desembargadora afirmando que em hipóteses como essa é que convém mencionar a teoria da carga probatória dinâmica, em que se atribui o ônus de provar àquele que detenha melhores condições de alcançar os meios de prova possíveis (Apelação Cível nº 70015920739, Nona Câmara Cível , Tribunal de Justiça do RS, Relatora: Iris Helena Medeiros Nogueira, Julgado em: 16/08/2006).
Esse entendimento tem sido fundamentado em razão de ser o consumidor tecnicamente hipossuficiente em relação aos conhecimentos necessários para a produção da prova, tendo, por outro lado, o médico melhores condições de produzi-la.
Por isso, nesse momento, mostra-se conveniente o aprofundamento na questão da dinamização da carga probatória, o que se fará no item a seguir.
2. A Dinamização do ônus da Prova e o formalismo valorativo
A teoria da dinamização dos encargos probatórios, construção doutrinária e jurisprudencial, foi criada como técnica processual que visa garantir a efetivação de direitos fundamentais, sob a perspectiva do formalismo-valorativo[14], vigorando nesse procedimento o Princípio da Adequação[15], como forma de se dar maior efetividade ao processo.
A idéia do formalismo-valorativo foi aplicada à Lei Consumerista ao deixar a cargo do julgador a possibilidade de inversão do ônus da prova quando verificada a hipossuficiência do consumidor em relação ao fornecedor, bem como a verossimilhança de suas alegações, conforme se depreende da redação do artigo 6º, inciso VIII, daquela lei.
Essa norma visa relativizar a regra estática do artigo 333 do Código de Processo Civil, em virtude de que a aplicação daquela regra, mesmo naqueles casos que estejam alheios às relação de consumo, demonstra desigualdade entre as partes no que tange às provas, o que iria de encontro ao preceito constitucional do livre acesso à justiça (CARPES, 2010, p.74).
Conforme se pode observar, a idéia da dinamização foi incorporada à jurisprudência e à doutrina de tal forma que o projeto do novo Código de Processo Civil trás, no artigo 262[16], a possibilidade do juiz, verificado as circunstâncias da causa e as peculiaridades dos fatos a serem provados, distribuir de modo diverso o ônus da prova.
O que se propõe é a dinamização aplicada aos processos em geral, sem limitação apenas ao âmbito do Código de Defesa do Consumidor, em razão de que ela foi criada sem a intenção de favorecer uma ou outra parte em específico. Por isso, a teoria sugere que o encargo probatório não venha direcionado prévia e abstratamente, mas, sim, de acordo com o caso concreto; bem como deixando de lado a questão da natureza do fato que se quer provar. Peyrano citado por Carpes ressalta:
A mesma importa um deslocamento do onus probandi, segundo forem as circunstâncias do caso, em cujo mérito aquele pode recair, verbi gratia, na cabeça de quem está em melhores cindições técnicas, profissionais ou fáticas para produzi-las, independentemente da condição de autor ou demandado ou tratar-se de fatos constitutivos, impeditivos, modificativos ou extintivos” (PEYRANO apud CARPES, 2010, p. 74-75, grifos do autor).
Portanto, como se vê, a possibilidade de aplicação da distribuição dinâmica da prova vem sendo cada vez mais discutida, não se restringindo apenas às relações de consumo, sendo utilizada também nos casos específicos em que o direito material assim exigir.
Justamente por essa tendência à ampliação da carga dinâmica da prova, é que se mostra necessário explorar a questão do momento da inversão do ônus probatório, dada a complexibilidade do tema e divergência existente na doutrina e na jurisprudência
2.1 O Problema do momento da inversão da regra do ônus da prova
A omissão do legislador quanto ao momento processual mais adequado para que o magistrado decida a respeito da inversão do ônus da prova, causou divergências na doutrina e jurisprudência.
Isso porque os Códigos de Processo Civil e de Defesa do Consumidor aduzem, respectivamente, a quem cabe a produção da prova e quais os requisitos para que o juiz inverta esse ônus, deixando de esclarecer, contudo, quando deverá ocorrer a inversão. Diante dessa omissão, criaram-se dois posicionamentos, sendo que o primeiro menciona que a inversão do ônus da prova é uma regra de julgamento; enquanto o segundo refere tratar-se de uma regra de procedimento.
Ao analisar os autores que adotam a primeira teoria, entende-se que para esses a finalidade maior da prova está em auxiliar o juiz na definição do litígio e, por tanto, pode ocorrer apenas na sentença. Nesse sentido, Rafael Ustarróz (2007, p. 48) afirma que: “a regra do ônus da prova visa regular não os deveres das partes,[...] mas antes a forma como o magistrado deve julgar a causa diante da ausência de prova de certa afirmação de fato”.
Por outro lado, os adeptos de que a inversão do ônus probatório trata-se de regra de procedimento, baseiam-se no entendimento de que a referida inversão deve ocorrer no curso do processo como forma de respeitar os princípios do contraditório e da ampla defesa. Nessa perspectiva, Sanseverino (2002, p. 335) menciona que “O juiz é destinatário principal da prova; contudo, deve ser concedida à parte a quem incumbe o onus probandi a oportunidade de sua produção”.
Portanto, considerando a divergência nos posicionamentos adotados pelos juristas quanto ao momento processual adequando para a inversão onus probandi, faz-se necessário entender qual a correta interpretação a ser dada aos artigos de lei que tratam do instituto, mormente naqueles casos em que se está diante de uma relação de consumo.
O que se pretende nos tópicos a seguir é explorar os posicionamentos acima expostos, como forma de averiguar se a inversão do ônus da prova se justifica apenas para auxiliar o julgador na tomada da decisão ou também para oportunizar as partes a produção das provas que se mostrem oportunas na demonstração do direito ou da ausência do direito do autor.
2.2 A inversão do ônus da prova como regra de julgamento
A inversão do ônus da prova como regra de julgamento está lastreada no entendimento de que a prova se destina ao convencimento do julgador em razão da proibição ao non linquet; bem como de que o sistema não determina quem deve fazer a prova, mas sim quem assume o risco caso não se produza (SANSEVERINO, 2002, p. 335).
Com efeito, aos que aderem a esse posicionamento partem do princípio da distribuição do ônus da prova na forma do artigo 333 do Código de Processo Civil, ou seja, com a clareza trazida naquele dispositivo. É por isso que entendem não haver necessidade de que o magistrado se pronuncie a respeito do ônus que têm as partes.
Ao comparar o sistema do ônus da prova do Código de Processo Civil com o da Lei de defesa ao consumidor, Nunes (2008, p. 777) aduz: “Não teríamos dúvida em afirmar que nas relações de consumo o momento seria o mesmo se a Lei n. 8.078 dissesse: ‘está invertido o ônus da prova’. Aliás, como fez na hipótese do artigo 38”.
Nessa perspectiva é que muitos doutrinadores, ao referirem que a inversão do ônus da prova no momento da prolação da sentença não acarreta surpresa aos litigantes, estão a analisar o instituto somente no âmbito dos artigos 12, parágrafo 3º[17]; 14, parágrafo 3º[18]; e 38[19], todos do Código de Defesa do Consumidor, os quais, por sua vez, tratam da inversão legal da prova.
Nesse sentido, Sanseverino (2002, p. 335) aduz que não podem ser utilizadas à inversão ope legis as regras atinentes à inversão ope iudicis (artigo 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor[20]), em razão de que naquela a modificação do encargo probatório deriva da própria lei.
Isso porque, em razão da inversão ope legis advir da lei, a parte sabe de antemão o que terá que comprovar, não havendo como sustentar qualquer prejuízo em razão da pronuncia sobre o ônus da prova somente na sentença. Nessa perspectiva, julgou o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, nos autos do Recurso de Apelação nº 70032548919, em que o Desembargador Paulo Roberto Lessa Franz expôs:
In casu, embora tenha o Magistrado singular determinado a inversão do ônus probatório no momento de prolação da sentença, não restou configurado o alegado cerceamento de defesa. Isso porque, nas hipóteses dos artigos 12 e 14 do CDC, que tratam da responsabilidade objetiva do fornecedor pelo fato do produto e do serviço, respectivamente, a inversão do ônus da prova decorre da própria lei, portanto, é ope legis. (Recurso de Apelação nº 70032548919, Décima Câmara Cível , Tribunal de Justiça do RS, Relator: Paulo Roberto Lessa Franz, Julgado em: 29/04/2010, grifos do autor).
Isso ocorre em razão de que o parágrafo 3º do artigo 12 do Código de Defesa do Consumidor menciona que o fabricante, o construtor, o produtor ou o importador só será responsabilizado quando: 1. provar que não colocou o produto no mercado; 2. que, caso tenha o colocado, inexite defeito; 3. que o defeito do produto decorreu exclusivamente da culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. Da mesma forma, refere o artigo 14, parágrafo 3º, do mesmo diploma legal que o fornecedor só não será responsabilizado se comprovar que caso tenha prestado o serviço o defeito inexiste ou a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
Nessas situações, Marinoni aduz:
o consumidor é dispensado de provar o defeito do produto ou do serviço. Até aqui a única questão probatória que aparece diz respeito à prova do defeito, mas o ônus dessa prova é expressamente imputado ao réu, não recaindo sobre o consumidor. Nesse caso, como é óbvio, o juiz não precisa inverter o ônus da prova, pois esse ônus já está invertido (ou definido) pela lei (MARINONI, 2007, p. 19).
Essas previsões, nas palavras de Filho ( apud Recurso de Apelação nº 70032548919, Décima Câmara Cível , Tribunal de Justiça do RS, Relator: Paulo Roberto Lessa Franz, Julgado em: 29/04/2010), se tratam de uma inversão do ônus da prova quanto ao nexo causal, trazida pela própria lei, diferentemente do que ocorre com a inversão ope iudicis.
Por outro lado, conforme menciona Sanseverino (2008, p. 336), na prática as regras da inversão do ônus da prova ope iudicis têm sido utilizadas para a inversão ope legis, muito embora cada uma delas enseje situações totalmente diferentes.
De fato, é costumeiro se ver decisões invertendo o ônus da prova em demandas que versam sobre defeito do produto ou do serviço[21], ou seja, casos de inversão legal do ônus da prova, os quais, pela própria natureza, não possibilitariam a determinação de inversão pelo juiz.
Portanto, embora ainda existam decisões jurisprudenciais que desconsiderem a diferença que há entre as regras da inversão legal do ônus da prova e da inversão realizada pelo magistrado, para os doutrinadores trazidos a lume, não há óbice quanto à aplicação da inversão do ônus da prova como regra de julgamento àquelas demandas que versam sobre as matérias contidas nos artigos 12, 14 e 38, todos do Código de Defesa do Consumidor
Contudo, há quem defenda a viabilidade da inversão do ônus da prova ope iudicis nos casos de responsabilidade objetiva, sob o fundamento de que embora os dispositivos que tratem desse tipo de responsabilidade prevejam a inversão legal do ônus da prova, existe outra facilitação ao consumidor no que se refere à sua desoneração de comprovar o dano e o nexo de causalidade (MONTEIRO, 2004, p. 10). Desse modo, o consumidor não precisaria comprovar o fato constitutivo do seu direito, em razão da dificuldade da prova.
Por isso, para os doutrinadores em comento, não parece acertada a aplicação da inversão ope iudices nos casos em que o Código de Defesa do Consumidor preveja a inversão ope legis, ficando a questão relativa à inversão do ônus da prova como regra de procedimento restrita aos casos de responsabilidade subjetiva previstos na Lei de defesa do Consumidor, conforme será abordado no item a seguir.
2.3 A inversão do ônus da prova como regra de procedimento
Consoante já mencionado no item 2.2.2, para que ocorra a inversão do ônus da prova ope iudicis é necessário que haja a verossimilhança das alegações do consumidor ou a constatação de sua hipossuficiência. Dessa forma, ao decidir sobre a inversão do ônus da prova, a lei consumerista deu ao magistrado certa discricionariedade na decisão a ser tomada. (MELLO, 2008, p. 83).
Isso porque, os conceitos jurídicos de verossimilhança e de hipossuficiência não vêm determinados na lei, podendo tais institutos ser entendidos por cada magistrado de diversas formas, considerando as peculiaridades de cada caso. Em razão disso, a análise sobre a verificação da verossimilhança das alegações e da hipossuficiência do consumidor dependerá das circunstâncias de cada lide, bem como da chamada máxima de experiência do magistrado. Assim, faz-se necessária a manifestação do magistrado quanto à verificação, ou não, da presença dos elementos verossimilhança e hipossuficiência no caso concreto (NUNES, 2008, p. 777).
Destarte, a inversão do ônus da prova não será deferida automaticamente ao consumidor, ou seja, somente será desatendida a regra geral do art. 333 do Código de Processo Civil quando o juiz entender que se tratam de alegações aparentemente verdadeiras.
Por essa razão, é que grande parte dos doutrinadores entende não ser possível que a inversão ocorra somente quando da prolação da sentença, sob o fundamento de que isso traria certa surpresa à parte que fora naquele momento onerada, devendo, portanto, a “ necessidade de uma prévia decisão do Juiz sobre a questão no momento do saneamento do feito” (SANSEVERINO, 2002, p. 337).
Nesse sentido, e em consonância com o que foi exposto no item anterior, a inversão do ônus da prova como uma regra de procedimento deve ser vista de acordo com o artigo 6º, inc. VIII, do Código de Defesa do Consumidor. Isso ocorre porque a aplicação do referido artigo somente será legítima nos casos em que a Lei de Defesa do Consumidor vincule a obrigação de indenizar à prévia verificação de culpa, como ocorre, por exemplo, no caso dos profissionais liberais (artigo 14, parágrafo 4º, do Código de Defesa do Consumidor[22]).
Diante disso, dois aspectos importantes devem ser mencionados. O primeiro, diz respeito à natureza da obrigação assumida pelos profissionais liberais; enquanto o segundo refere-se à possibilidade de aplicabilidade do artigo 6º, inc. VIII, da lei consumerista, com a inversão do ônus da prova em favor do consumidor.
Isso porque, as obrigações assumidas pelo profissional liberal são, via de regra, obrigações de meio, as quais ensejam ao consumidor o ônus de comprovar a culpa. Todavia, nas obrigações de resultado a prova da inexistência de culpa é do profissional liberal[23]. (SANSEVERINO, 2002, p. 336).
Já Marinoni (2007, p. 20) interpreta a questão do momento da inversão ônus da prova sob outra perspectiva. Para o autor a inversão como regra de procedimento, somente ocorrerá quando a prova for de difícil ou impossível produção pelo consumidor, arcando o réu com o ônus que incumbiria ao demandante em razão do artigo 333, inciso I, do Código de Processo Civil. Excluída essa possibilidade, a inversão tratar-se-á de regra de julgamento, em razão de não ser uma regra dirigida às partes.
Isso se dá em razão de que o doutrinador entende que caso o consumidor seja hipossuficiente, não podendo produzir a prova ou esclarecer o nexo de causalidade, o magistrado poderá julgar a lide com base na verossimilh,ança preponderante[24], invertendo o ônus da prova no momento da sentença (MARINONI, 2007, p. 20).
Todavia, Mello refere:
o ônus da prova é considerado, de forma remonsosa, como regra de julgamento, de juízo. O fato de apresentar-se como regra de julgamento faz com que ônus da prova não seja na sistemática geral do CPC, objetivo de avaliação do magistrado no curso do desenvolvimento processual. [...] no sistema probatório do CDC, em que prepondera a inversão do ônus probatório ope iudicis, faz-se necessário que o julgador pronuncie-se às expressas acerca de precitada inversão (MELLO, 2008, p. 82-83).
Por todo exposto, conclui-se que a inversão do ônus da prova como regra de procedimento ocorrerá quando forem verificadas a verossimilhança das alegações do consumidor ou a sua hipossuficiência. Presentes uma dessas hipóteses o magistrado deverá inverter o ônus da prova, com base no artigo 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor, transferindo ao réu o ônus que inicialmente incumbia ao autor. Com base nisso, é que se fundamenta a necessidade de que a inversão do ônus da prova ocorra em momento anterior ao da sentença, possibilitando à parte onerada a plenitude do direito de produzir a prova que se mostre necessária para a sua defesa.