RESUMO
Dworkin se utiliza de uma retrospectiva das abordagens das Teorias do direito Americano e Inglesa para fundar uma grave crítica: ao passo em que se focam em questões doutrinárias e legais, deixam de lado questões de princípio, que são fundamentais tanto para o entendimento quanto aplicação do Direito, especialmente nas soluções dos “casos difíceis”.
Palavras chave: Dworkin. Princípios. Teoria do Direito. Abordagem Moral. Direito Brasileiro
Dworkin (2007) inicia “Teoria do Direito” afirmando que os juristas comumente se deparam com problemas técnicos, a respeito dos quais não há consenso. Segundo ele, ao tentar descrever a lei por meio de conceitos que não são claros, os juristas acabam se perdendo em divergências conceituais.
Devido a essas divergências, as questões centrais relativas à teoria do direito também são variáveis. Dworkin faz uma retrospectiva histórica das abordagens Inglesa e Americana. Os juristas que se ocupavam dessa disciplina, até meados do século XX, adotavam uma abordagem profissional: consideravam que as problemáticas da teoria do direito eram causadas pela insuficiência das técnicas jurídicas comuns em solucionar estas questões. A solução proposta por esses juristas foi selecionar a fração dessas questões passíveis de análise pelas técnicas comuns e ignorar os demais aspectos.
Dworkin critica essa postura, pois embora a abordagem produza uma ilusão de progresso, ignora os princípios, que são fundamentais na análise do direito.
A teoria analítica do Direito se propõe a formular de forma conceitualmente cuidadosa os termos empregados na doutrina jurídica em toda sua gama de significação.
Na Inglaterra, a tentativa de solucionar os problemas causados por esses conceitos partiu da elucidação de seus sentidos especificamente jurídicos, ignorando seu espectro de significação na linguagem ordinária. Contudo, segundo Dworkin, a preocupação com os conceitos ocorre exatamente devido a questões de princípio e não por desconhecimento do significado jurídico dos termos.
A teoria do direito norte americana se voltou, mais especificamente, para a questão das decisões de casos controversos (hard cases). A teoria ortodoxa do direito exige que os tribunais apliquem, e somente apliquem, o direito. Por isso, as decisões de questões controversas que pareciam “criar direito” passaram a ser o foco das discussões.
A corrente do Realismo Legal argumentava que a análise doutrinária das decisões judiciais feitas pela teoria ortodoxa do direito era falha. Os ortodoxos analisavam as decisões com base apenas nos argumentos legais utilizados pelos juízes, mas esses argumentos não configuram a real motivação da decisão. Para os realistas, as decisões são tomadas segundo as preferências morais e políticas dos juízes e somente então, a racionalização jurídica é “escolhida”. Os realistas propuseram que se analisassem as atitudes dos juízes e seus impactos na sociedade, mais do que suas palavras, como propõe Llewellyn:
Karl N. Llewellyn, em sua teoria hermenêutica, distinguiu as normas no papel das normas efetivas. As normas no papel são as leis, os regulamentos, ou seja, as normas que os juízes declaram em suas sentenças, como fundamento de suas decisões. As normas efetivas são as declaradas, ou não, em razão das quais os magistrados realmente decidem os litígios (LLEWELLYN apud DINIZ, 2008)
Essa diferenciação entre normas do papel e normas efetivas sugere que as decisões judiciais são pré-formuladas com bases em motivações que nem sempre são aquelas que o julgador utiliza como argumento oficial. Warat (s.d) se mostra com uma postura semelhante ao afirmar que:
[O senso comum teórico dos juristas] Trata-se se um discurso que oferece respostas que apenas aludem ao real e comandadas por interesses que tomam a forma de princípios ou diretrizes. Assim, não é difícil ver que o senso comum teórico apresenta um conjunto de questões onde as respostas já são sobredeterminadas. (WARAT, s.d)
A abordagem da teoria do direito americana segue a abordagem mais realista e menos doutrinária ao dar ênfase à capacidade dos juízes de organizar e reunir fatos e de criar táticas para a mudança social.
Os fatos foram inicialmente estudados pela teoria sociológica do direito. Essa teoria analisava o direito enquanto fato social e tratava as decisões judiciais antes como reações a estímulos sociais e pessoais. Contudo, as limitações dos juristas para fazer análises sociológicas fizeram com que a teoria sociológica passasse a ser campo de estudo exclusivo dos sociólogos.
A abordagem das táticas para mudança social abordou, em especial, a capacidade do direito de atuar em defesa de fins gerais. Contudo, segundo Dworkin, essa abordagem atuou de modo semelhante à inglesa no sentido de excluir do seu campo de pesquisa as questões de princípios.
O autor aponta como evidência do fracasso que a questão central abordada por essas teorias (se os juízes atuam exclusivamente seguindo as regras ou se eles criam direito novo em alguns casos) não se funda em dúvidas sobre as decisões judiciais ou seus argumentos, mas na obscuridade de alguns conceitos (no caso, o conceito de “seguir regras”).
Nos casos difíceis, ao tomar decisões que derrubam precedentes, os juízes justificam suas decisões em princípios de justiça. Essa justificativa indica que o juiz está seguindo regras, ainda que regras não tão concretas quanto a lei escrita ou a jurisprudência? Ou isso indica que o juiz está decidindo, como apontava Llewellyn, de acordo com suas motivações pessoais?
Dworkin afirma que a busca de solução para esse questionamento advém de uma necessidade de justificar a autoridade do juiz. Nos casos fáceis, quando o juiz aplica as normas estabelecidas, sua decisão é legítima. Contudo, o que significa aplicar normas estabelecidas?
Kelsen define:
A teoria usual da interpretação quer fazer crer que a lei, aplicada ao caso concreto, poderia fornecer, em todas as hipóteses apenas uma única solução correta (ajustada), e que a “justeza” (correção) jurídico-positiva desta decisão é fundada na própria lei. Configura o processo desta interpretação como se se tratasse tão-somente de um ato intelectual de clarificação e compreensão, como se o órgão aplicador do Direito tivesse apenas que pôr em ação o seu entendimento (razão), mas não a sua vontade, e como se, através de uma pura atividade de intelecção, pudesse realizar-se, entre as possibilidades que se apresentam, uma escolha que correspondesse ao Direito positivo, uma escolha correta (justa) no sentido do Direito positivo. (KELSEN, 1998)
Essa teoria usual se assemelha à de Dworkin quanto à unidade da decisão “correta” para cada caso. Embora o autor americano defenda a possibilidade da utilização de princípios e da moral para solucionar casos difíceis, ele admite que mesmo nesses casos, há apenas uma solução justa a ser encontrada pelo juiz.
Kelsen, por sua vez, conquanto admita que a postura usual nega a pluralidade de decisões possíveis em um mesmo caso, refuta a defesa da unidade. Segundo ele, as normas são responsáveis por determinar uma “moldura hermenêutica” que deverá limitar a interpretação dos magistrados, mas não indicará uma solução única.
Se não existem normas jurídicas suficientes para abranger todos os aspectos da condição humana e não existem normas escritas nas quais todos os casos concretos possam se adequar, como proceder?
Na teoria americana, os sociólogos se dedicaram a analisar em que grau as decisões eram motivadas pelas crenças pessoais e origens dos juízes. Os instrumentalistas se focaram em analisar os impactos das decisões e de que modo os juízes poderiam considerar esse impacto para justificarem-se. Em ambos os casos, as correntes se abstiveram de buscar soluções no campo moral.
O primeiro filósofo a fazê-lo foi H. L. A. Hart. Hart demonstrou, em suas obras, que os métodos de raciocínio jurídicos empregados pelos juízes são semelhantes aos usados pela comunidade ao avaliar questões morais. Ao analisar a linguagem popular e a linguagem jurídica, chegou à conclusão de que elas partem das mesmas premissas e que as teorias populares da causação e da moralidade são incorporadas ao direito e, posteriormente, ampliadas.
Em seu livro Punição e Responsabilidade, (HART apud DWORKIN, 2007) Hart põe em questão a possibilidade de um indivíduo ser inocentado de acusação com base em sua condição mental.
Dworkin faz uma análise do posicionamento de alguns autores a esse respeito: para alguns críticos contemporâneos, defesas baseadas em alegações de insanidade ou de acidentalidade não são pertinentes, visto que a finalidade do direito não é de revanche, mas de proteção da sociedade contra os crimes. Segundo essa análise, o mais coerente seria prender alguém que seja negligente ou que tenha suas condições mentais alteradas do que alguém que cometeu um crime passional, visto que os primeiros representam maior risco à sociedade.
Jerome Hall (apud DWORKIN, 2007), no entanto, afirma que esse tipo de defesa visa proteger da condenação aqueles indivíduos que não possuem conduta moral condenável. Esse argumento é contraposto por Hart, que afirma que não é finalidade do Direito condenar apenas atos moralmente condenáveis.
Neste ponto, Dworkin se mostra absolutamente contra a posição de Hart. O autor explica que a violação de normas pode ser moralmente condenável pelo ato em si ou pela violação de algo moralmente indiferente que, ao ser normatizado, passa a ter no seu descumprimento uma atitude incorreta. Contudo, ele faz ressalvas: há casos em o descumprimento da norma não é moralmente condenável, visto que a lei é injusta, ou nos casos em que a infração foi acidental ou motivada por doença mental.
Devido às complexidades e imprevisibilidades dos casos concretos que se apresentam que a importância dos princípios é ressaltada no trabalho de Dworkin. Apenas as regras não são suficientes para solucionar todos os possíveis impasses cotidianos que a sociedade venha a apresentar, por isso, os princípios precisam ser estudados como pontos norteadores indispensáveis, como assegura Menelick de Carvalho Netto:
Para ele [Dworkin], a unicidade e a irrepetibilidade que caracterizam todos os eventos históricos, ou seja, também qualquer caso concreto sobre o qual se pretenda tutela jurisdicional, exigem do juiz hercúleo esforço no sentido de encontrar no ordenamento considerado em sua inteireza a única decisão correta para esse caso específico, irrepetível por definição. Em outros termos, todo e qualquer caso deve ser tratado pelo julgador como um caso difícil, como um hard case (CARVALHO NETTO, 2004)
A doutrina e a jurisprudência brasileiras, como importantes fontes do direito que são, vêm nos mostrando a adaptação da teoria dworkiana à realidade dos tribunais brasileiros. Os princípios são encarados como, para utilizar a expressão do constitucionalista Paulo Bonavides (1998), “pedra de toque” que orienta as decisões nos tribunais e a criação de novo direito.
O administrativista Celso Antônio Bandeira de Mello (2009) entende que o princípio, enquanto mandamento nuclear de um sistema, exerce a importante função de fundamentar a ordem jurídica em que se insere, fazendo com que todas as relações jurídicas que adentram ao sistema busquem na principiologia constitucional o berço das estruturas e instituições jurídicas.
Neste mesmo sentido Paulo Bonavides entende que os princípios são a “pedra de toque ou o critério com que se aferem os conteúdos constitucionais em sua dimensão normativa mais elevada” (BONAVIDES, 1998). Segundo José Afonso da Silva (2005) “os princípios são ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas”.
A importância dos princípios é ainda mais evidente na solução dos hard cases, nos quais as normas escritas não tratam especificamente da possibilidade exposta pelos fatos. Nesses casos, o juiz brasileiro é obrigado a decidir, segundo dispõe a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro[1]: “Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.”
O Direito brasileiro se baseia também nos princípios, tanto na solução de casos “fáceis” quanto naqueles casos sobre os quais a lei não versa, segundo o espírito dworkiano de complementar as normas e primar sempre pelo respeito à dignidade da pessoa humana.
É evidente que pode haver conflitos entre esses princípios e as necessidades práticas, mas estas não são ocasiões para compromissos equitativos, mas antes, se os princípios tiverem que ser desonrados, ocasiões de vergonha e pesar. (DWORKIN, 2007)
Ao fazer a retrospectiva das abordagens das teorias inglesa e americana do direito, Dworkin demonstra que a análise moral dos conceitos jurídicos e dos princípios é complementar às normas escritas na solução dos casos, visto que essas normas, por si, são insuficientes para contemplar toda a complexidade das relações humanas.
Com isso, o autor ressalva também a importância da conexão entre as práticas jurídicas e sociais, muitas vezes ignoradas por essas teorias que, ao realizarem análises especificamente jurídicas, não se propuseram a solucionar os dilemas morais que são freqüentes na aplicação do direito, em especial aos hard cases.
REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Matins Fontes, 2010.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 7 ed. São Paulo: Malheiros, 1998.
BRASIL. Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del4657.htm Acesso em: 16/11/2011
CARVALHO NETTO, Menelick de. A hermenêutica constitucional sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. Jurisdição e hermenêutica constitucional. Coordenação de Cattoni. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004.
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à Ciência do Direito. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo.26 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009.
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo.25 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005.
WARAT, Luis Alberto. Mitos e teorias na aplicação da lei. Porto Alegre: Síntese, s.d.
Nota
[1] Anteriormente chamada de Lei de Introdução ao Código Civil, teve sua ementa ampliada e alterada pela Lei nº 12.376, de 30 de dezembro de 2010.