Resumo: Este artigo pretendeu, a partir da relação entre prevenção e retribuição proposta pelo art. 59, do Código Penal, e aceita como norte para a individualização da pena criminal, e ainda, partindo de uma compreensão constitucionalmente adequada, demonstrar a difícil relação havida entre prevenção e retribuição, no interior do sistema penal nacional. Para tanto, fez-se a apresentação sintética dos dois grandes vieses tradicionais de explicação dos fins da pena, o retributivismo e o preventivismo, e apresentaram-se os inconvenientes da ação de um sincretismo entre ambos, conforme se vê no mencionado artigo 59, do Código Penal, importando na difícil – senão impossível – tarefa de combinar-se a reprovação retrospectiva da culpabilidade pela retribuição e a precaução prospectiva da ressociabilidade pela prevenção. Tal sincretismo, já criticado por Günther Jakobs, que apontava para a impossibilidade de sua realização, tenta combinar o incombinável e acaba por tornar esdrúxula a estrutura punitiva nacional. Nesse sentido, tomaram-se de exemplos as novéis Leis 11.464/07 e 12.433/11, a fim de demonstrar como a ausência de norte teleológico para a pena pode levar a situações extremas de incompatibilidade.
Palavras-chave: Direito Penal; Teoria da pena; Preventivismo; Retributivismo.
1. Introdução
Individualizar a pena, tomando por base o dispositivo constitucional do art. 5º, XLVI, e a sistemática advinda do art. 59, do Código Penal, importa em tornar a reprimenda penal adequada ao fato praticado e ao sujeito que o realizou[1]. Nesses termos, a maior ou menor adequação da sanção ao evento[2] importa em uma análise direta de quais as finalidades a se buscar com a cominação, a aplicação e a execução da pena.
E essas finalidades procuradas pela pena estão, em maior ou menor medida, vinculadas às necessidades sociais de punição e, também, às expectativas coletivas de evitamento da criminalidade. Nesse contexto, para que se possam compreender as diversas agruras por que tem passado o direito penal e penitenciário brasileiro recente, torna-se imperioso entender as propostas teóricas e práticas formuladas para a sanção penal e as possibilidades de que esses desideratos possam, no chão da vida, ser realizados.
Este artigo, nas páginas que se seguem, pretende, pois, delinear as razões por que a pena, no direito brasileiro, enfrenta, sistematicamente, uma perplexidade derivada da própria forma de ser do ordenamento jurídico-penal brasileiro.
Neste estudo, esquematicamente, apresentaram-se os contornos da garantia constitucional da individualização da pena, a partir da visão zaffaroniana de que essa precisa dar-se de forma coordenada, em relação a todos os envolvidos nas tarefas institucionais relativas à criminalidade. Parte-se da idéia de que a individualização da pena, considerada a necessidade de tornar a reprimenda penal adequada condições objetivas e subjetivas da infração, deve levar em conta as finalidades a que se destinam as penas.
Nesse sentido, em seguida, serão apresentados os lineamentos necessários para compreender as tradicionais teorias sobre as finalidades da pena, quais sejam, o retributivismo e o preventivismo, em todas as suas variantes, e as teorias unitárias ou de união. Este último viés representa o ponto de encontro entre prevenção e retribuição e será o objetivo específico de estudo deste artigo. Nesse ponto, formular-se-á a proposta, a partir do ponto de vista defendido por Günther Jakobs, da relação problemática que existe quando se tentar encontrar o equilíbrio entre essas duas atuações funcionais da pena. No texto, propõe-se que os critérios utilizados para dosar a pena a partir da retribuição da culpabilidade ou das necessidades politico-criminais de prevenção não possuem um eixo comum, o que torna impossível o equilíbrio e gera incongruências no interior do sistema jurídico.
Ao final, o texto apresenta duas recentes alterações na legislação penal brasileira, especificamente as leis 11.464/07, que alterou a sistemática da progressão de regime para os crimes hediondos; e a lei 12.433/11, modificadora dos critérios relativos à remição da pena pelo estudo, no sentido de demonstrar como cada uma delas encaminha-se em um dos sentidos funcionais da pena e que a relação delas a partir da teoria unitária torna-se de difícil equalização.
2. Individualização da pena
Uma das diversas garantias erigidas constitucionalmente em favor do acusado é aquela insculpida no art. 5º, XLVI, que impõe à lei a tarefa de individualizar a pena criminal[3]. E
Individualizar significa particularizar uma situação ou tornar alguém individual; quer dizer distinguir uma coisa de outra, a fim de poder compreender, exatamente, o conteúdo, o alcance e a extensão do objeto analisado. A pena é a sanção penal destinada ao condenado, infrator da lei penal, cuja finalidade é multifacetada, implicando em retribuição e prevenção pela prática do crime A junção desses termos, constituindo a individualização da pena, é essencial para garantir a justa fixação da sanção penal, evitando-se a intolerável padronização e o desgaste da uniformização de seres humanos, como se fossem todos iguais uns aos outros, em atitudes e vivências. (NUCCI, 2010, p. 159)
Desta forma, a ordem constitucional brasileira impõe ao legislador a tarefa de tornar a reprimenda penal sempre adequada à situação específica a que ela se destina, não podendo, jamais, negligenciar as diferenças existentes caso a caso. Tanto assim, que se tem entendido que a individualização é muito mais que simplesmente achar-se a quantidade devida de pena:
Esta idéia, já tradicional, de individualização da pena, tem necessidade urgente de revisão. A individualização da pena é algo mais que a mera quantificação: a quantificação nos indica de que quantidade de bens jurídicos se pode privar o apenado, ao passo que a individualização nos indica, em vez da medida dessa privação, qual é o tratamento ressocializador a que deve ser ele submetido (quer dizer, indica para que ele é feito objeto dessa privação em concreto). (tradução livre do espanhol). (ZAFFARONI, 1998, p. 272), [4]
De um modo geral na doutrina nacional e de língua espanhola, tem-se afirmado que a individualização da pena faz-se em três fases: a cominação legal abstrata, em que o legislador atribui a um dado modelo típico uma sanção adequada, em qualidade e quantidade; a aplicação, que seria a segunda fase da individualização, atribuída aos órgãos do judiciário que, à vista da pena abstratamente cominada, têm a tarefa de torná-la adequada ao fato concreto, através da sentença condenatória. Já a terceira fase é a de execução da pena, atribuída ao Judiciário com a Lei 7.210/84, que seria o momento de efetivo cumprimento da reprimenda penal.
Zaffaroni, por seu lado, propõe, na seqüência do excerto transcrito linhas atrás, que há uma necessidade de revisão da noção de individualização da pena para que não mais se a compreenda como realizada em três etapas estanques por duas das funções de Estado[5], mas que seja a convergência dessas funções em razão de uma adequada individualização da pena.
Em suas palavras:
Por conseguinte, não há três etapas na individualização da pena, no caso concreto, senão três atividades que convergem em uma mesma tarefa individualizadora. A execução mesma é uma parte da individualização, porém já vimos que seu estudo dá lugar a uma disciplina autônoma, cuja autonomia não se configura por ser atividade administrativa, senão pela matéria especializada que abarca. Isso põe em evidência que o conceito de individualização é tão amplo que excede o marco mesmo do Direito Penal. Por outra parte, se por quantificação da pena entendemos unicamente a quantidade qualidade dos bens jurídicos de que se pode privar o apenado, veremos que ao Direito Penal compete o estudo de algo mais que uma pura questão quantidade, senão que deve se ocupar da “determinação da pena pelo tribunal, dentro do âmbito que a lei deixa para essa decisão”, ou melhor, da “determinação das conseqüências jurídicas de um feito penal pelo juiz, segundo a classe, a gravidade e a possibilidade de execução, à vista da eleição, dentro de uma pluralidade de possibilidades legalmente previstas. (tradução livre do espanhol).[6] (ZAFFARONI, 1998, p. 273/274)
A proposta é coerente: em verdade, tanto a cominação legal da pena ao fato criminoso quanto sua aplicação e execução ao caso e ao indivíduo estão relacionados – e precisam estar – coerentemente, de forma que completem um ciclo que leve a sério a opção constitucional adotada para a criminalidade e para a pena. Ou seja, a forma como a ordem jurídica nacional pretende lidar com a criminalidade espelha a criminalização e apenação de fatos bem como a aplicação e a execução de penas.
Ou seja, cada fato criminoso praticado guarda suas peculiaridades, exigindo daquele que exerce a função jurisdicional levar a sério as elementares que tornam o fato único, tanto no que é pertinente ao indivíduo que comete a infração penal quanto à infração penal cometida pelo indivíduo. Quer dizer, a fim de que a pena seja aquela adequada ao fato concreto, cabe ao órgão da função jurisdicional conhecer todas as circunstâncias do caso, para que a pena possa refletir, de fato, a idéia de individualização e adaptar-se, com a perfeição possível, às condições do sujeito e do fato.
É isto o que disse Juan Bustos RAMIREZ (1997, 165)
Na teoria da determinação da pena têm também vigência todos os princípios garantistas materiais e formais do direito penal pela incidência direta e a especial significação que têm para o sujeito. Isto significa que, na determinação da pena, atuam critérios relativos ao delito (injusto) em que é preeminente o princípio material do bem jurídico, também relativos ao sujeito responsável no que se destaca o princípio da autonomia ética da pessoa e os específicos deste aspecto da teoria penal global que são o da necessidade da pena e o da indenidade pessoal. (tradução livre do espanhol).[7]
Não se pode esquecer, por fim, que para ser adequada ao caso, a pena também deve refletir as funções preconizadas pelo Código Penal. De modo que não basta quantificar a pena, mas é preciso ter em vista as funções que esta pretende realizar no interior da comunidade político-jurídica: se ela pretende relacionar-se apenas e tão-somente com o sujeito criminoso ou se também intenta fazer eco nos mais destinatários do direito positivo.
E, neste aspecto, o Código Penal teria adotado a teoria mista (ou eclética) no que tange às funções da pena, já que, conforme se vê no art. 59, do CP, a pena deve ser suficiente à reprovação do fato criminoso, refletindo a adoção da perspectiva das teses retributivistas; mas deve também ser suficiente para a prevenção de crimes, adotando, à evidência, aquilo que propõem as teses prevencionistas. Desta forma, a pena não está presa, de forma alguma, a uma fórmula simplista de aplicação de circunstâncias, judiciais e legais. Além delas, é necessário sopesar, por força do já citado art. 59, prevenção e retribuição, para chegar-se àquela que se possa considerar adequada ao caso.
2. As teses clássicas das funções da pena
Tradicionalmente[8], costuma-se apontar que a pena criminal, como espécie do gênero sanção, cumpre uma de duas[9] tarefas: punir retrospectivamente o sujeito pelo fato praticado (voltando-se para o passado) ou prevenir, prospectivamente, a realização de condutas desconformes (voltando-se para o futuro).
É a partir dessas duas formas de ver o sentido da punição que surgem os dois grandes blocos teóricos clássicos de justificativa da pena criminal: o retributivismo e o preventivismo.
2.1. O retributivismo
A base do retributivismo moderno, marcado historicamente a partir do surgimento do Estado Moderno, tem como ponto de partida a noção de que a pena é fim em si mesma, esgotando-se na tarefa de punir o autor do fato criminoso por sua ação. À vista disso, sua única tarefa é retribuir o mal do crime com o mal eminentemente simbólico da pena.
Ou, nas palavras de Luigi Ferrajoli,
São teorias absolutas todas aquelas doutrinas que concebem a pena como um fim em si própria, ou seja, como “castigo”, “reação”, “reparação” ou, ainda, “retribuição” do crime, justificada por seu intrínseco valor axiológico, vale dizer, não um meio, e tampouco um custo, mas, sim, um dever ser metajurídico que possui em si seu próprio fundamento. (FERRAJOLI, 2002, p. 204)
Chama-se de retributiva a pena, na medida em que essa funcionará, exatamente, como resposta institucionalizada ao comportamento socialmente visto como indevido. A relação entre crime e pena, retributivamente, é a de prestação e contraprestação, como disse Ana Messuti:
O conceito de retribuição tem uma importância fundamental para a vida social, responde à estrutura do intercâmbio, sem a qual a vida social não existiria. Cada prestação dá lugar a uma contraprestação. E, ao aceitar com toda naturalidade que a prestação qualificada dê lugar a uma contraprestação qualificada como positiva, haveria também que se aceitar que uma prestação negativa dê lugar a uma contraprestação negativa. (MESSUTI, 2003, p. 20)
Não se pode confundir retribuição da pena com reparação do dano causado pelo crime à vítima. A tarefa da pena retributiva não é dar satisfação à vítima, como talvez o pudesse ser num viés retributivo pré-moderno, antes da assunção do poder de punir por parte do Estado, em que a pena se caracterizaria como vingança à ação danosa. E, para não deixar pairar dúvidas sobre o conceito ideal de retribuição, nesse viés teórico, Ana Messuti volta a afirmar que:
Daí que se deva distinguir entre os dois conceitos: reparação e retribuição. A principal finalidade da retribuição parece ser a reafirmação de determinada situação considerada justa, adequada, ou simplesmente desejada, que tenha sido ameaçada ou modificada por um ato não desejado. (MESSUTI, 2003, p. 21)
Klaus Günther (2006) propõe que a origem do retributivismo remonta à ideia de “restituição, de reparação do dano pelo seu causador” (GÜNTHER, 2006, 190). Dessa forma, a pena retributiva é aquela que, de alguma maneira, propõe-se a dar ao causador de um dano um outro dano como forma de expiação. A relação originária da retribuição está, essencialmente, entre autor do dano e vítima. Dessa forma, não existindo possibilidade de que a retribuição dê-se, realmente, no mesmo nível que o dano causado, essa relação, diz Günther, fica no nível do intersubjetivo e, portanto, sofre as mazelas dos sentimentos individuais.
Com a formação da idéia de Estado Moderno, há o afastamento da vítima da aplicação da justiça pública: “o direito de punir é tirado das mãos do prejudicado” (GÜNTHER, 2006, 191). O Estado toma para si o monopólio do uso da força e a punição retributiva passa a ser a aplicação de um mal não pela realização de um dano ao particular, mas pela “violação do direito; do direito geral e público” (GÜNTHER, 2006, 191). A conclusão a que o autor chega é que, com o afastamento da vítima dessa relação dano-punição, a pena retributiva perde sua referência à ofensa que foi concretamente praticada pelo autor.
Diz ele:
Com a generalização e estatização da pretensão punitiva, a retribuição sofreu uma dupla abstração: em vez da ofensa concreta e individual a uma pessoa, a pena passa a compensar a violação de uma norma jurídica geral e, no lugar da igualdade externa de tipo ou de valor da pena em relação à ofensa, ela se apresenta com um simples símbolo da reparação da injustiça. (GÜNTHER, 2006, p. 192)
Enfim, pena retributiva, portanto, é aquela que visa a, simbólica e institucionalmente, retribuir o crime com a pena.
2.2. O preventivismo
Se, pelo viés retributivista, como visto anteriormente, a pena volta-se para o passado, punindo-se o agente pelo ato que já fora praticado, a ideia-forte da pena preventiva é para o futuro. Isto é, se a tarefa do retributivismo é punir por aquilo que já se realizou, no preventivismo a pena cumpriria a tarefa político-criminal de tentar controlar os comportamentos para frente, evitando a renitência e evitando que os destinatários da lei penal possam vir a delinquir.
No interior da tese relativa ou preventivista, é comum falar em prevenção geral positiva e negativa e em prevenção especial positiva e negativa.
Resumidamente, costuma-se falar em prevenção geral, nos casos em que a função político-criminal de evitamento da realização de condutas delitivas se dirigem aos membros da comunidade jurídica como um todo. Assim, a pena, funcionando como espécie de exemplo, dissuadiria a todos da prática de infrações penais.
Fala-se (GÜNTHER, 2006, p. 199) em prevenção geral positiva naqueles casos em que o efeito dissuasivo da pena é buscado pela renovação dos valores sociais representados pela criminalização desta ou daquela conduta. Desta sorte, a pena acaba dirigindo-se aos cidadãos em geral, especialmente aqueles não envolvidos em atitudes criminosas e que são, de fato, crentes nos efeitos sociais da normal.
Segundo Durkheim, a pena tem um importante efeito sobre a sociedade, isto é, sobre os terceiros em realidade não envolvidos no ato, que tampouco necessitam de intimidação em razão de potenciais inclinações à delinqüência, mas que são, ao contrário, respeitadores da lei. “Sua verdadeira tarefa é manter a coesão social, na medida em que conserva a plena vitalidade da consciência coletiva” (idem). Por meio da pena, os bons cidadãos – que, aliás, já partilham valores sociais – comemoram suas convicções axiológicas comuns, na medida em que, com base em um caso exemplar, confirmam e reforçam uns para os outros que estão todos juntos do lado certo, que ainda vale a pena aferrar-se aos valores comuns e que aqueles que se comportam de
modo desviante estão do lado errado. (GÜNTHER, 2006, p. 199)
Lado outro, costuma-se chamar prevenção geral negativa a perspectiva teórica que pretende que a pena exerça sua função dissuasiva a partir do medo, do receio da aplicação da sanção por parte dos destinatários em geral do proibitivo da norma penal. A pena serviria, então, como freio à tentação de delinquir que pudesse ocorrer nas pessoas (MIR PUIG, 1994, p. 120).
Ou, nas lições de Klaus Günther:
A ameaça e a execução da pena devem atuar sobre a coletividade de modo que autores de ilícitos penais em potencial abandonem seus planos – de preferência em razão do medo e do horror provocados pela ameaça da pena e pela experiência da sua execução. (2006, p. 193)
Se a prevenção geral pretende convencer às pessoas em geral do não-cometimento de infrações penais, as teses que advogam a prevenção especial se dirigem para o sujeito que já delinquiu. Dessa forma, a tarefa precípua da pena imposta seria prevenir a reincidência. Fala-se em prevenção especial positiva naqueles casos em que a pena visar ao restabelecimento da sociabilidade do sentenciado. Ou, para usar a referência de Günther Jakobs, a pena servirá para a repessoalização do sentenciado, a partir de sua própria correção, regeneração. De acordo com essa perspectiva, a idéia é que a pena em si mesma exerça no réu a coerção externa necessária para que ele possa voltar a comportar-se com a segurança cognitiva necessária (JAKOBS, 2003)
2.3. As teorias unificadoras
Para a continuidade deste estudo, chamar-se-ão, por inspiração dos textos de Günther Jakobs, unificadoras aquelas teses que propõem a junção de fins preventivos a fins retributivos na pena criminal. Escapa à intenção deste artigo a análise de outras formas de composição de fins da sanção penal, como o fez, por exemplo, Claus Roxin, ao propor diversas finalidades preventivas. Para este estudo, bastará compreender a possibilidade de coexistirem numa mesma noção de individualização da pena fins preventivos e fins retributivos.
Ou, nos dizeres de Roxin:
As teorias mistas ou unificadoras ou da união, que antes eram absolutamente dominantes e que, todavia, hoje são determinantes para a jurisprudência, consistem em uma combinação das concepções discutidas até aqui. Consideram a retribuição, a prevenção especial e a prevenção geral como fins da pena a que se perseguem simultaneamente. (Tradução livre do espanhol). (ROXIN, 1997, p. 93) [10]
Bem como afirma Günther Jakobs, que:
Em sua configuração principal, diz-se que a teoria da união tem de “mediar... entre as teorias absolutas e relativas”, isto é, combinar a retribuição da culpabilidade mediante a pena com a influência reabilitadora, intimidatória ou de garantia no autor concreto e a influência reabilitadora, intimidatória ou de garantia em relação a potencias autores, de tal modo que, no caso ideal, “todos os fins da pena alcancem uma relação equilibrada”. (Tradução livre do espanhol). (JAKOBS, 1998, p. 9)[11]
Em resumo, as chamadas teorias da união visam “misturar o imisturável” (SILVA, p. 139), combinando critérios sustentados na reprovação da culpabilidade com aqueles outros pensados por uma visão de necessidades de política criminal. De forma a que a reprimenda penal precisará equilibrar uma visão retrospectiva como uma prospectiva, uma visão geral e uma visão pessoal, uma visão voltada para o sujeito delinquente e outra apontada para a comunidade em geral.
Pior que isso é que, em qualquer das fases da individualização da pena, seja na cominação, na aplicação ou na execução, esses critérios precisarão combinar-se razoavelmente, de modo a não prevalecer um sobre o outro: eis o problema.
O próprio Jakobs já o tinha percebido e referiu-se da seguinte maneira:
A teoria da união que se acabou de esboçar, junto com suas variantes, não contribui com uma teoria da pena pública. Só se exporão, aqui, duas objeções. Primeiro: a teoria da união vive da suposição de que as legitimações e os fins da pena podem combinar-se – ao menos grosseiramente, mediante adição, quer dizer, precisamente, que podem se unir. Se esta suposição for acertada, do que, evidentemente, partem os representantes desta teoria, dever-se-ia buscar aquele princípio que cria essa harmonia do aparentemente contraposto, quer dizer, que se veja satisfeito tanto por meio de retribuição como por meio de prevenção, mesmo que, por sua vez, este princípio se resuma a algo tão pobre como que “em alguma medida se produza uma reação de rechaço frente ao fato”. (...) Dito brevemente: se é possível a harmonia, a teoria da união não a alcança, já que não identifica o elemento criador de harmonia, inclusive, nem sequer o busca. (Tradução livre do espanhol) (JAKOBS, 1998, p. 12)[12]
A primeira crítica apresentada pelo autor é, portanto, a inexistência desse princípio que seja capaz de fazer a junção entre prevenção e retribuição, produzindo a harmonia necessária entre duas coisas tão díspares e fundadas em razões tão diversas. E mais que isso, as teses da união cingem-se, apenas, em propor o somatório de funções sem, contudo, encontrar, ou ao menos buscar, o ponto de encontro principiológico que fomente a conexão mencionada.
Jakobs ainda propõe existir um segundo problema. Afirma ele que:
Segundo: as suposições de harmonia não só afetam a teoria, senão também a práxis, e mostram seu caráter quebradiço a este respeito de modo especial (mesmo que não só aqui) na tarefa de unir a retribuição de culpabilidade à prevenção especial. Inclusive, se se partisse – o que, sem embargo, seria incorreto, como antes se mostrou – da base de que a retribuição de culpabilidade abre um marco para um tratamento preventivo-especial, uma breve consideração das estatísticas de reincidência desde finais do século passado até os dias de hoje, ensina que – ao menos no direito penal de adultos – não existe uma relação positiva entre a pena das características que são habituais e algum tipo de efeito preventivo-especial, prescindindo do mero efeito de garantia em relação àquele que está encerrado no cárcere. (Tradução livre do espanhol). (JAKOBS, 1998, p. 14)[13]
A segunda crítica é, pois, baseada na práxis, no sentido de que, ao menos na opinião do autor e daquilo que ele vislumbra da prática do direito penal, não existiria demonstração cabal de a pena baseada na reprovação da culpabilidade seja, de fato, capaz de gerar efeitos preventivo-especiais.
Enfim, a proposta que aqui se defende, sustentada na proposta de Jakobs, é a de que não é possível, nem em teoria e nem na práxis, forjar-se um juízo razoavelmente adequado em relação à pena criminal que seja capaz de combinar prevenção e retribuição.
E o problema é que, como já se disse algumas vezes ao longo deste artigo, a ordem jurídica brasileira, ao adotar uma tese da união, abriu a porta para que haja, em nosso direito positivo legislado e na aplicação jurisdicional da pena, discrepâncias e incongruências.