Mesmo após 19 anos de vigência da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, Lei Nacional de Licitações e Contratos – LNLC, alguns temas ainda são polêmicos e outros se tornaram polêmicos pela evolução da legislação ou da jurisprudência.
Mais recentemente tornou à baila a discussão sobre a possibilidade de inversão de fases na licitação e a simplificação de procedimentos. Amplia-se a discussão para conhecer os limites jurídicos de lei não-federal disciplinar o tema, ou outra norma, expedida com base no poder regulamentar deferido pela própria LNLC, poder fazê-lo.
1.Competência Legislativa
Na ciência jurídica, em especial, a brasileira, a definição de competência para regular uma matéria é estabelecida segundo rigorosa hierarquia vertical. A competência se define pelos grandes gêneros, na Constituição Federal, e vem sendo criteriosamente dispersada nos níveis infraconstitucionais e infralegais, até se permitir a regulamentação detalhada pelos órgãos públicos.
Em razão dessa mesma hierarquia, o ordenamento jurídico invalida não só a norma expedida por órgão/agente incompetente, como fulmina de nulidade a norma em sua integralidade, ou algum trecho específico, que contrariar normativo superior dentro do escalonamento vertical.
Repartindo a competência legislativa, a Constituição Federal elencou, no art. 22, aquela que deve ser exercida, em caráter privativo, pela União. Nos temas do Direito Administrativo, discriminou, especificamente, a área de atuação do Congresso Nacional em vários subtemas, v.g., desapropriação, águas, radiodifusão, serviço postal, competência da polícia federal etc. Em dois assuntos do rol desse artigo, a Assembleia Nacional Constituinte fez preceder a expressão “normas gerais”. Assim dispôs no art. 22, incisos XXI e XXVII:[1]
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
[...]
XXI - normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação e mobilização das polícias militares e corpos de bombeiros militares;
[...]
XXVII - normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e, para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1º, III.
A competência privativa da União, nos termos elencados no art. 22, inadmite, em regra, competência legislativa concorrente de outras esferas de governo. Só mediante lei complementar da União é que os Estados poderão legislar sobre questões específicas. Essa regra é uma condição suspensiva, imposta no parágrafo único do art. 22, que demonstra, a toda evidência, que a competência do Estado-membro para legislar sobre os assuntos desse artigo não é regra, mas exceção.[2]
Esse aspecto leva ao questionamento dos conceitos jurídicos possíveis de serem atribuídos à expressão “normas gerais”.[3]
A melhor exegese do inciso XXVII do art. 22 da Constituição Federal é aquela que assegura à expressão “normas gerais”, conteúdo diverso do que é utilizado segundo o art. 24 da CF.
Admite-se a competência legislativa dos Estados apenas para normatizar “questões específicas”, nos casos em que a matéria “privativa” elencada no art. 22 seja precedida da expressão “normas gerais” e, ainda assim, só após a expedição da lei complementar referida no parágrafo único.
Nesse âmbito das “questões específicas”, a competência legislativa está contida até o advento da lei complementar referida. Até esse momento, as unidades da federação só possuem competência supletiva. Não concorrem, nem complementam o texto legal em condições de igualdade com a esfera federal.
Em princípio, faz-se necessário distinguir entre o que o constituinte considerou como “questões específicas” (no parágrafo único do art. 22) e a possibilidade do exercício da competência legislativa de natureza supletiva. Esse último termo diz respeito a edições de normas que visem a suprir as omissões do texto legal, regulamentando os detalhes imprevistos, e sempre o fazendo sem contrariar a norma genérica. Se a regulamentação de “questões específicas” depende da edição da norma complementar, a edição de normas supletivas pode ser feita sob o pálio do art. 118 da própria Lei nº 8.666/1993. Nesse caso, os Estados-membros, o Distrito Federal e também os Municípios podem dispor sobre o campo no qual esse diploma legal expressamente admitiu ou foi omisso, sem afrontá-lo, sendo dispensável prévia lei complementar autorizadora.
2. A regulamentação da Lei nº 8.666/1993
A lei expedida pela União pode disciplinar o tema, transferindo parte de matéria da sua própria competência que por razões superiores da política nacional não foram disciplinadas na lei de caráter geral, desde que defina com precisão:
a)os limites da competência;
b)qual órgão ou entidade exercerá a competência;
c) quais matérias serão reguladas.
Nesse ponto é necessário verificar como dispôs o texto da própria lei, para compreender adequadamente a aplicação dessa divisão dinâmica. Para facilitar, destaca-se, após cada dispositivo, a ideia central.
3. Estados, Distrito Federal, Municípios e respectiva administração indireta
Art. 118. Os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e as entidades da administração indireta deverão adaptar suas normas sobre licitações e contratos ao disposto nesta Lei.
Para as unidades federativas a lei permitiu a adaptação das normas de licitação e contratos.
4. Poderes e assemelhados
Art. 117. As obras, serviços, compras e alienações realizados pelos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário e do Tribunal de Contas regem-se pelas normas desta Lei, no que couber, nas três esferas administrativas.
Como a Lei nº 8.666/1993 regula detalhadamente o tema para o Poder Executivo do Governo Federal, permitiu aos demais poderes – onde inseriu, por generosa valorização, o Tribunal de Contas e, pelo mesmo fundamento, se pode incluir o Ministério Público – deixar de aplicar partes. Essa opção legislativa será melhor compreendida adiante, no exame do art. 115.
5. Administração Indireta de todas as esferas
Art. 119. As sociedades de economia mista, empresas e fundações públicas e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União e pelas entidades referidas no artigo anterior editarão regulamentos próprios devidamente publicados, ficando sujeitas às disposições desta Lei.
Parágrafo único. Os regulamentos a que se refere este artigo, no âmbito da Administração Pública, após aprovados pela autoridade de nível superior a que estiverem vinculados os respectivos órgãos, sociedades e entidades, deverão ser publicados na imprensa oficial.
Subjugando ao império geral da Lei nº 8.666/1993, essa mesma norma permitiu a edição de regulamentos próprios para os integrantes da Administração Indireta, controlados direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
6.Regulamentação de procedimentos
Art. 115. Os órgãos da Administração poderão expedir normas relativas aos procedimentos operacionais a serem observados na execução das licitações, no âmbito de sua competência, observadas as disposições desta Lei.
Parágrafo único. As normas a que se refere este artigo, após aprovação da autoridade competente, deverão ser publicadas na imprensa oficial.
Em regra específica aplicada a todas as esferas de governo, em todos os poderes da administração direta e indireta, a lei expressamente permitiu a edição de normas para regular os “procedimentos operacionais”.
7.Processo e procedimento
Como visto, a competência para legislar sobre processo não impede ou sonega a possibilidade de legislação disciplinar o procedimento. Ao contrário, é a própria Lei nº 8.666/1993, constitucionalmente editada e jamais contestada nessa regra, que permite a edição de normas sobre procedimentos.
A distinção entre processo e procedimento vem de longa data até se firmar na doutrina. A origem etimológica do termo processo (pro: adiante; cedei: ir; procedei: ir adiante) não fazia subsumir seu emprego ao exercício da jurisdição para composição de uma lide. Abraçado pela ciência jurídica, ficou restrito ao conjunto de atos ordenados, interdependentes, destinados a solucionar um litígio. O signo processo, porém, experimentou notável trasladação de sentido, passando, na prática, a significar toda autuação interna, no âmbito das organizações administrativas, sendo hoje, segundo os melhores doutrinadores pátrios, tolerado seu emprego, mesmo quando ausente qualquer litígio.
De fato, vulgarmente, esse termo designa qualquer conjunto de papéis, com capa de cartolina numerada, no qual se desenvolva um só assunto de interesse da função estatal ou meramente administrativa. As normas atuais já utilizam o termo com o acréscimo: eletrônico ou virtual.
Apreciando esse fenômeno, o saudoso mestre do Direito Administrativo, Hely Lopes Meirelles, já acederia que, “na prática, toda autuação interna recebe a denominação de “processo”, tenha ou não natureza jurisdicional”.
Buscou o renomado jurista estabelecer a distinção entre processo administrativo propriamente dito, o qual encerraria um litígio entre a Administração e o administrado ou o servidor, e o processo administrativo impropriamente dito, no qual haveria simples registro de expedientes da repartição, sendo-lhe aplicável a expressão sinonímica de procedimento administrativo.[4]
O conceito de processo não pode ser confundido com o de procedimento, pois, o processo é o movimento em sua forma intrínseca, enquanto que o procedimento é esse mesmo movimento em sua forma extrínseca, isto é, tal como se revela aos sentidos humanos. Em sua origem etimológica, o segundo termo, conforme esclarece João Mendes Júnior,[5] é acrescido do sufixo mentem, exprimindo o modo de realizar um ato.
Para corroborar essa distinção, importante é o magistério de Pontes de Miranda, o qual assinala que o fim do processo é “aplicar a regra jurídica ao caso concreto”.[6] Essa nota característica é que revela a magnitude do processo e não a existência de partes ou pretensões contrárias não resolvidas. Assim, na medida em que desconsidera a relação jurídica processual como triangular, atribuída a Adolf Wach, renova o fato de que o processo contém uma relação entre autor e Estado e, na maioria das vezes, entre Estado e réu, como sustentava Konrad Hellwig. Com essa noção, desenvolve a possibilidade da existência de processo com ou sem partes antagônicas, teoria que se harmoniza com a lei processual, a qual reconhece textualmente os processos de jurisdição voluntária, onde não há antagonismo entre os agentes do processo.
No procedimento há uma série de atos ou fatos, com determinados e vários objetivos, mas sem efetivar a aplicação da regra jurídica a um determinado caso concreto. O exercício da jurisdição, seja contenciosa ou graciosa, só pode ser concebido no processo, jamais no procedimento.
O processo não encerra necessariamente um litígio, mas uma pretensão à aplicação de uma regra de ordem jurídica; o procedimento não almeja à prestação jurisdicional.
É consabido que a eficácia da comunicação depende sobretudo do adequado uso do vernáculo, no caso, científico, exigindo do estudioso a percepção do rigor entre teoria e prática, pois se o Direito é ciência, mostra-se inafastável a importância da concepção coloquial de termos científicos para a evolução pela autocrítica.
8.Da contratação direta sem licitação
É preciso indicar que, como compete à União legislar privativamente sobre o processo de licitação, está fora do alcance das demais esferas de governo, poderes ou administração indireta definir exceções à aplicação do processo. Não podem as hipóteses de licitação dispensável ou inexigível serem ampliadas. É também esse o entendimento do Supremo Tribunal Federal em relação ao assunto.[7]
Mesmo em relação a este assunto, valorizando o sistema federativo, a suprema Corte admitiu o advento de lei disciplinando a alienação de bens próprios das respectivas unidades federadas. Eis porque o art. 17 comporta regulação pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, desde que respeitados os limites constitucionais de aplicação e extensão dos princípios republicanos.
9.Da inversão de fases
Expostas essas premissas, cabe analisar se é possível, mantendo a integridade do processo de licitação e os respectivos princípios, alterar a ordem das fases do julgamento das licitações.
Essa pretensão vem de longa data, inclusive tendo por sustentação analogia com normas de organismos internacionais e multilaterais dos quais o Brasil faz parte. O pregão, que tem como caraterística a antecipação da fase do julgamento da proposta à fase de julgamento da licitação, soma argumentação em prol da celeridade e eficiência.
A alteração das fases, como simplificadamente passou a ser denominada, insere-se indubitavelmente na competência para normalizar procedimentos, inclusive podendo ser perfeitamente classificável como procedimento operacional referido no art. 115, da Lei nº 8.666/1993.
A ordenação da precedência das fases é matéria que, na atualidade, frise-se, é reconhecida como indene à efetividade dos princípios gerais e específicos do Direito Administrativo.
Aliás, qual argumento pode vedar a exigência de que com prévia disposição, amplamente conhecida dos competidores, sejam abertos tal ou quais tipos de envelopes? Certamente é direito dos licitantes conhecer previamente a ordem em que as fases serão executadas, até para que analisem a viabilidade de elaborar a proposta para competir efetivamente com os outros licitantes ou, ao contrário, para competir apenas com os que detêm habilitação para a competição.
Não há nenhum argumento oponível à normalização que mude a ordem das fases de julgamento na licitação, exceto unicamente a exigência de cumprir rigorosamente parte da LNLC, olvidando a aplicação dos arts. 115 e 117 a 119. Portanto, como se observa, nem mesmo a Lei nº 8.666/1993 serve de sustentação a este argumento.
10.Inversão de fases obrigatória e a prática
Uma palavra é importante para os entusiastas da mudança de fases: temos reconhecido algum mérito em obrigar a casos restritos a precedência do exame da capacidade técnica dos licitantes, notadamente nas situações em que a verificação da qualidade dos competidores é muito diversificada. Fica muito desconfortável para o pregoeiro, por exemplo, inabilitar dez, vinte ou até trinta licitantes após abrir as respectivas habilitações e verificar que cada um deles, após extenuante trabalho de análise, não satisfazem as condições de competição.
Muito a propósito dessa questão, cabe esclarecer que têm surgido pregões que são antecedidos de pré-qualificação técnica dos licitantes, seguido do exame das propostas e, só depois, o exame dos demais requisitos de habilitação.
Em virtude dessa percepção, e do resultado prático que se vem alcançando, mostra-se mais acertada a normalização que coloca para o prudente arbítrio do gestor público definir em cada edital se a competição deve ser precedida do julgamento da proposta ou da habilitação dos licitantes.
11. Outras simplificações
Qual é o limite para a aplicação de outras simplificações do processo licitatório?
Mesmo admitindo que a licitação é um procedimento, definido por lei como formal,[8] é possível conceber algumas simplificações dos procedimentos. A questão, contudo, necessita ser considerada à luz de alguns balizamentos:
a) integral observância dos princípios elencados na Constituição Federal, referente à Administração Pública;[9]
b) integral observância dos princípios da Lei nº 8.666/1993;[10]
c) manutenção da essência do procedimento, com alterações apenas no modo de execução.
Nesse diapasão, mostra-se possível normalizar para que o futuro edital disponha sobre:
a) restrição do exame da regularidade fiscal aos tributos que incidem na operação sobre o objeto, em cumprimento ao art. 193 do Código Tributário Nacional;[11]
b) permissão da não exigência de documentos disponíveis na internet, vez que são documentos públicos;
c) permissão da realização de tomada de preços, substituindo a fase de habilitação pela comprovação prévia de habilitação no órgão, no prazo de até três dias antes da sessão de recolhimento de propostas;[12]
d) permissão, mesmo na concorrência, de que a Comissão não seja obrigada a examinar todas as propostas, limitando sua análise às três de menor preço, uma vez que se tratam de licitantes que já comprovaram a habilitação;
e) esclarecimento de que a exigência de rubrica dos envelopes e respectivos conteúdos pelos licitantes é facultada pela lei, e não uma imposição obrigatória.
Também é lícito normalizar os seguintes procedimentos operacionais, com fundamento no art. 115 da Lei nº 8.666/1993:
a) dispensa de audiência por parte do órgão jurídico para aprovação de edital quando se trata de instrumento convocatório já padronizado, até porque o conteúdo do termo de referência e do projeto básico não são matérias de cunho jurídico, mas técnicas e/ou econômicas, como regra inacessíveis à ciência do Direito;
b) desenvolvimento do processo de padronização dos objetos;
c) regulação do sistema de estimativas de custos, que deve guiar-se pelo art. 15, inciso V, da Lei nº 8.666/1993 e pelo Acórdão TC nº 1191/2007 - Plenário, do Tribunal de Contas da União, exceto quando absolutamente inviável.
12.Conclusão
A interpretação da Lei nº 8.666/1993 é um processo contínuo que se firma pela intenção dos operadores do Direito em manter uma progressividade constante.
A partir do postulado de que a lei é propositadamente concisa, abre-se amplo espaço à regulamentação legal e infralegal. No exercício da competência privativa de legislar, verifica-se que os arts. 22 e 24 da Constituição Federal diferem entre si, havendo espaço para que a “adaptação”, prevista no art. 118 da Lei nº 8.666/1993, se faça em todos os procedimentos. A riqueza do vocabulário “adaptar” não pode ser amesquinhado a “copiar”, permitindo grau expressivo na inovação, sem ferir, por exemplo, o balizamento do processo de contratação direta – dispensa e inexigibilidade. Para este, nega-se espaço para qualquer adaptação.
A inversão de fases, a instituição de forma eletrônica para execução de outras modalidades, além do pregão, e a simplificação de procedimentos sem ofensa a princípios são permissivos que se apresentam para aprimorar o procedimento de adaptação.