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Aspectos destacados da exordial acusatória perante o processo penal brasileiro

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Agenda 24/07/2012 às 14:10

O Ministério Público, diante dos elementos contidos no inquérito policial, ou mediante outras peças informativas, verificando a existência de fato que, em tese, caracteriza crime e indícios de autoria, forma sua convicção, denominada opinio delicti, iniciando a ação penal pública com o oferecimento da peça inicial, definida no art. 24 do CPP como denúncia.

Sumário: Noções introdutórias; 1.1 Conceituação; 1.2 Requisitos; 1.2.1Descrição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias; 1.2.2 Qualificação do acusado; 1.2.3 Classificação jurídica do fato criminoso; 1.2.4 Rol de testemunhas; 1.2.5 Requisitos intrínsecos;  1.3 Rejeição; 1.3.1 Rejeição da denúncia anterior a Lei 11.719/2008; 1.3.2 Rejeição da denúncia posterior a Lei 11.719/2008 1.4 Omissões; CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAs BIBLIOGRÁFICAS.


Noções introdutórias

O Ministério Público, diante dos elementos contidos no inquérito policial, ou mediante outras peças informativas, verificando a existência de fato que, em tese, caracteriza crime e indícios de autoria, forma sua convicção, denominada opinio delicti, iniciando a ação penal pública com o oferecimento da peça inicial, definida no artigo 24[1] do Código de Processo Penal como denúncia.[2]

Todavia, imperioso se faz demonstrar a distinção entre a denúncia e a queixa-crime no âmbito do processo penal, haja vista que ambas possuem como escopo maior a inauguração de uma ação criminal em face de um suposto agente causador.

Com relação a esta distinção, Fernando Capez assim escreve: “A denúncia é a peça acusatória inaugural da ação penal pública (condicionada ou incondicionada) (CPP, art. 24); a queixa, peça acusatória inicial da ação penal privada.”[3]

Verifica-se, assim, existirem mais de um tipo de ação penal no direito brasileiro. As regras básicas em torno de sua classificação estão previstas no caput do artigo 100[4], e seus parágrafos, do Código Penal Brasileiro, levando-se em conta a “qualidade do sujeito que detém a sua titularidade.”[5]

Segundo este critério, Fernando Capez ensina que “as ações penais poderão ser publicas ou privadas, conforme seja promovida pelo Ministério Público ou pela vítima e seu representante legal, respectivamente.”[6]

Dentro dos casos de ação penal pública, cuja titularidade é exclusiva do Ministério Público, existe ainda outra subdivisão. Alexandre Cebrian Araújo Reis e Vitor Eduardo Rios Gonçalves, em breve síntese, expõe que a ação pública pode ser subdividida em:

a) Incondicionada – é a regra do direito penal. O oferecimento da denúncia independe de qualquer condição específica. No silêncio da lei, o crime é de ação pública incondicionada (art. 100, caput, do CP).

b) Condicionada – quando o oferecimento da denúncia depende da prévia existência de alguma condição específica. A ação pública pode ser condicionada à representação da vítima ou à requisição do Ministro da Justiça. A titularidade da ação continua a ser do Ministério Público, mas este somente poderá oferecer a denúncia se estiver presente a representação ou a requisição, que constituem, em verdade, autorização para o início da ação. Em face disso, representação e requisição do Ministro da Justiça têm natureza jurídica de condição de procedibilidade.[7]  

Já a ação penal privada, cuja titularidade é do ofendido ou seu representante legal, ensinam os respeitados autores e promotores de justiça, que esta se subdivide em:

a) Exclusiva (art. 100, §, 2º, do CP) – a iniciativa incumbe à vítima ou a seu representante legal. Em caso de morte do ofendido antes do início da ação, esta poderá ser intentada, desde que dentro do prazo decadencial, de seis meses, por seu cônjuge, ascendente, descendente ou irmão (art. 100, §, 4º, do CP). Se a morte ocorre após o início da ação penal, poderá também haver tal substituição, mas dentro do prazo de sessenta dias, fixado no art. 60, II,[8] do Código de Processo Penal. Nos crimes de ação privada exclusiva, o legislador, na própria parte especial do Código Penal, expressamente declara que na apuração de tal infração ‘somente se procede mediante queixa’.

b) Personalíssima – a ação só pode ser intentada pela vítima e, em caso de falecimento antes ou depois do início da ação, não poderá haver substituição para a sua propositura ou seu prosseguimento. É o caso, por exemplo, do crime de induzimento a erro essencial ou ocultação de impedimento para casamento, em que o art. 236[9], parágrafo único, do Código Penal estabelece que a ação penal só pode ser iniciada por queixa do contraente enganado. Dessa forma, a morte do ofendido implica extinção da punibilidade dos autores do crime, uma vez que não será possível a substituição no pólo ativo [...]

c) Subsidiária da pública – o Ministério Público, ao receber o inquérito policial que apura crime de ação pública (condicionada ou incondicionada), possui prazo para oferecer a denúncia. Entretanto, findo esse prazo, sem que o Ministério Público tenha se manifestado, surge para o ofendido o direito de oferecer queixa subsidiária em substituição à denúncia não apresentada pelo titular da ação.[10]

Por fim, muito acertadamente expõe Fernando da Costa Tourinho Filho que o início da ação penal não pode ser confundido com o seu ajuizamento. “Aquele se dá com o oferecimento da peça acusatória [...] Já o ajuizamento se dá quando o Juiz profere despacho determinando a citação”[11], ou seja, após o recebimento da denúncia.  Deste modo, conclui o renomado autor que “com o recebimento da denúncia, estava o pedido ajuizado; com a oferta da denúncia, estada a ação iniciada...”[12]

De acordo com a nova sistemática introduzida pela Lei 11.719, de 20 de junho de 2008[13], assevera Andrey Borges de Mendonça[14] que ao ser oferecida à denúncia, primeiramente deve o magistrado analisar se há algumas das situações ensejadoras de rejeição liminar. Caso ela esteja formalmente em ordem, depois de verificados os pressupostos processuais, as condições da ação e a justa causa, urge seja o réu citado para apresentar sua defesa inicial por escrito.

Contudo, a questão que na visão do nobre autor será objeto de intensos debates será sobre qual o momento do recebimento da denúncia: “após o seu oferecimento, caso não seja a hipótese de rejeitá-la liminarmente, ou após a apresentação da defesa por escrito?”[15]

Segundo o autor, tal questionamento não é despido de interesse prático, pois interfere diretamente no marco interruptivo da prescrição, nos termos do artigo 117, I[16], do Código Penal.

Como opinião ao questionamento levantado, entende o mencionado autor[17] que após o oferecimento da denúncia, caso não seja a hipótese de rejeição liminar da acusação, deverá o juiz recebe-la, determinando posteriormente a citação do acusado para apresentar defesa inicial por escrito.

Este parece ser o entendimento mais adequado, especialmente pela interpretação sistemática das alterações introduzidas com a reforma do Código de Processo Penal, sobretudo pela nova redação do artigo 396[18].

1.1 conceituação

Etimologicamente, a palavra denúncia, ou seja, a “peça inauguratória de ação penal, de iniciativa do Ministério público”[19], advém do verbo denunciar, do latim denuntiare, significando anunciar, “fazer denúncia de; acusar, delatar”.[20]

Em sentido estrito, na técnica do Direito Penal, para o memorável autor De Plácido e Silva, cuja obra tornou-se referência para o esclarecimento de vários vocábulos jurídicos, “diz-se denúncia o ato mediante o qual o representante do Ministério Público formula sua acusação perante o juiz competente a fim de que se inicie a ação penal contra a pessoa a quem se imputa a autoridade de um crime ou contravenção”.[21]

Dentro deste contexto de direito penal e processual penal, vários são os conceitos utilizados atualmente para a descrição da denúncia, variando-se de acordo com a preferência de cada autor. Fernando da Costa Tourinho Filho conceitua a denúncia como:

[...] o ato processual por meio do qual o Representante do Ministério Público leva ao conhecimento do Juiz, respaldado em provas colhidas no inquérito ou em outras peças de informação, a notícia de uma infração penal, diz quem a cometeu e pede seja instaurado o respectivo processo em relação a ele.[22]

O referido autor expõe ainda que “a denúncia, na técnica processual brasileira, significa a peça inaugural da ação penal, quando promovida pelo Ministério Público”[23]. E, mais adiante, conclui seu conceito da seguinte forma:

Assim, a denúncia é o ato processual por meio do qual o Estado-Administração, pelo seu órgão competente, que é o Ministério Púbico, dirige-se ao Juiz, dando-lhe conhecimento de um fato que reveste os caracteres de infração penal e manifestando a vontade de ver aplicada a sanctio júris ao culpado.[24]

Comungando do mesmo entendimento, porém de forma um pouco mais abrangente, Hidejalma Muccio formulou o seguinte conceito de denúncia:

A denúncia constitui o ato processual escrito ou oral do órgão do Ministério Público que, em nome do Estado-Administração, nos crimes de ação penal pública, seja incondicionada, ou condicionada à requisição do Ministro da Justiça, ou à representação do ofendido ou de quem legalmente o represente, desde que presente a condição (representação ou requisição), invoca perante o Estado-Juiz a prestação da tutela jurisdicional, deduzindo-lhe com observância dos requisitos previstos no art. 41 do Código de Processo Penal e demais outros decorrentes do próprio ordenamento jurídico processual penal, a pretensão punitiva, dano início à ação (ao processo) contra o autor da infração penal, objetivando sua responsabilização e a aplicação do Direito Penal objetivo.[25]

Deocleciano Torrieri Guimarães conceitua a denúncia como sendo o “ato de imputar a alguém a prática de uma infração penal”.[26]; [27]

Para Julio Fabbrini Mirabete:

A denúncia é uma exposição, por escrito, de fatos que constituem em tese um ilícito penal, ou seja, de fato subsumível[28] em um tipo penal, com a manifestação expressa da vontade de que se aplique a lei penal a quem é presumivelmente seu autor e a indicação das provas em que se alicerça a pretensão punitiva.[29]

Utilizando-se de analogia ao Direito Civil, José Frederico Marques explica que “a denúncia está para a ação penal pública como a petição inicial para a ação civil. Uma e outra constituem o instrumento formal da apresentação do pedido em juízo para ser dado início à ação”[30], instaurando-se, após a citação do acusado, a instância ou relação processual.

Segundo o nobre autor, a denúncia seria, portanto “o ato processual em que se formaliza a acusação, ou ato instrumental para início da actio poenalis[31] de caráter público.”[32]

Por fim, de forma concisa e não mesmos precisa, Fernando Capez[33] ensina que a denúncia é a peça acusatória iniciadora da ação penal, contendo a exposição, por escrito, dos fatos que, em tese, constituem ilícito penal, além da manifestação expressa da vontade de que se aplique a lei penal ao presumível autor dos fatos e a indicação das provas em que se alicerça a pretensão punitiva.

1.2 Requisitos

A denúncia, exordial acusatória impulsionadora da ação penal, deve ser elaborada de forma simples e direta, sem fazer constar detalhes supérfluos, exigindo para tanto uma técnica mais apurada quando da sua elaboração.

“Assim, apesar de sucinta, a denúncia deve conter todos os dados para que seja possível ao leitor entender o que se passou, bem como as circunstâncias através das quais o delito foi cometido.”[34]

O Código de Processo Penal, em seu artigo 41[35], expõe os requisitos indispensáveis para a elaboração da denúncia. De acordo com o mencionado artigo, a denúncia deve conter “a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.”

De acordo com o promotor de justiça e professor Hidejalma Muccio[36], dentre os requisitos previstos no mencionado artigo 41, há os essenciais e os que não são essenciais. Salienta ainda que o ordenamento jurídico-processual penal, ao ser analisado como um todo, recomenda a observância de outros requisitos.

Segundo o mencionado autor, são requisitos essenciais: a exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias, bem como a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo. Os não essenciais são: a classificação do crime e o rol das testemunhas. Já os demais requisitos decorrentes do ordenamento jurídico-processual, os quais são essenciais como os primeiros, são: endereçamento ou cabeçalho, requerimento de citação e condenação do acusado, ser a inicial escrita em vernáculo, ser subscrita em pelo promotor de justiça com atribuição legal.[37]

Contudo, para melhor analise dos requisitos para a elaboração da denúncia, utilizar-se-á a seguinte divisão:

-  descrição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias;

-  qualificação do acusado com dados que possibilitem sua identificação;

- classificação do crime;

- rol das testemunhas; e

-  requisitos intrínsecos.

1.2.1 Descrição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias

Como é cediço, é na denúncia que inicialmente o órgão do Ministério Público pede a condenação do acusado, ora denunciado. E para pedi-la, conforme assevera Fernando da Costa Tourinho Filho[38], obviamente lhe deve imputar a prática de uma fato criminoso. Tal fato, segundo o respeitado autor, torna-se a razão do pedido de condenação, ou seja, sua causa petendi.

Não se concebe, por absurdo, uma peça acusatória sem que haja a causa petendi. Para que exista a ação é preciso que se deduza uma pretensão e, ao mesmo tempo, que se aponte o seu fundamento, a sua razão de ser. Como bem dizia Bonucci, a ação penal é ‘la richiesta o pretesa, da parte dello Stato, della protezione giurisdizionale penale di un rapporto giuridico violato’ (L’accusa, p. 14).[39]

Este requisito atende à necessidade de se possibilitar o acesso ao acusado, logo de início, ao exercício da ampla defesa. “Conhecendo com precisão todos os limites da imputação, poderá o acusado a ela se contrapor o mais amplamente possível, desde, então, a delimitação temática da peça acusatória, em que se irá fixar o conteúdo da questão penal.”[40]

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A descrição do fato deve ser precisa, não se admitindo a imputação vaga e imprecisa, que impossibilite ou dificulte o exercício da defesa. O autor deve incluir na peça inicial todas as circunstâncias que cercaram o fato, sejam elas elementares ou acidentais, que possam, de alguma forma, influir na apreciação do crime e na fixação e individualização da pena. Se a deficiência na narrativa não impedir a compreensão da acusação a denúncia deve ser recebida. A omissão de alguma circunstância acidental (não constitutiva do tipo penal) não invalida a queixa ou a denúncia, podendo ser suprida até a sentença (CPP, art. 569).[41]

Portanto, indispensável que na denúncia esteja descrito, ainda que sucintamente, o fato delituoso atribuído ao acusado, conforme leciona Julio Fabbrini Mirabete[42]. Ressalta ainda o respeitado autor que não pode ser recebida a exordial acusatória que contenha uma descrição vaga ou imprecisa, de tal forma lacônica que torne extremamente difícil ou até impossível ao denunciado entender de qual fato esta sendo acusado.

Outrossim, a correta delimitação do tema, ou a imputação do fato, conforme assevera Eugênio Pacelli de Oliveira[43], presta-se a viabilizar a aplicação da lei penal, permitindo ao órgão jurisdicional dar, ao fato narrado na exordial acusatória, a justa e adequada correspondência normativa, o que, na linguagem chiovendiana, quer dizer a vontade concreta da lei.

Quanto as circunstância do fato criminoso, Hélio Bastos Tornaghi apud Hidejalma Muccio, ensina importante lição com relação as indagações que devem ser feitas para o seu esclarecimento:

As circunstancias estão admiravelmente reunidas no verbo latino: Quis? Quid? Ubi? Quibus Auxiliis? Cur? Quomodo? Quando?

A primeira Quis, “quem”, refere-se à pessoa do agente, seus antecedentes e personalidade. A segunda Quid, “que coisa”, diz respeito aos acidentes do evento (lato sensu), do acontecimento histórico. A terceira relaciona-se ao lugar, Ubi, “onde”. Quibus auxiliis, a quarta, relaciona-se aos partícipes e aos instrumentos. A quinta, Cur, “por quê”, alude à razão do crime. Quomodo, “de que maneira”, a sexta, reporta-se a forma de execução e, finalmente, a última, Quando, “quando”, considera o tempo em que foi cometida a infração (Curso de Processo Penal, 6ª ed., vol. 1, p. 43). [44]

Tais circunstâncias previstas em qualquer fato criminoso (local do fato e local da consumação, hora, dia, mês, ano, causas e efeitos, pessoa do criminoso, modo de execução etc) são de grande importância para a ação penal, “pois podem influir na classificação do crime, na existência de qualificadoras, agravantes, atenuantes, causas de aumento e diminuição de pena”[45], além de “envolver problemas de prescrição e competência”[46].

1.2.1.1 Concurso de agentes

Na hipótese de crimes praticados por mais de um agente, ou seja, concurso de agentes, a denúncia deve especificar a conduta de cada um, devendo o membro do Ministério Público atentar-se o máximo possível na individualização das ações atribuídas aos acusados, quando as condutas não forem praticadas por todos de modo uniforme.[47]

Assim, quando se cuidar de imputação de autoria e também de participação, distinguindo-se uma e outra modalidade pelo critério formal-objetivo, segundo o qual “[...] somente o autor realiza a conduta típica. A atividade do partícipe não é típica em si mesma’ (RAMOS, 1996, p. 62), é preciso que a peça acusatória delimite, com precisão quais seriam as ações praticadas pelos autores e aquelas pelos partícipes. É importante lembrar, no ponto, que na participação - adotando-se qualquer teoria que pretenda conceituá-la - a conduta é diversa dos atos de execução do fato criminoso. Por isso, quando não houver a correta delimitação da modalidade de contribuição para a prática do fato (autoria ou participação), ao juiz outra solução não restará senão a absolvição do partícipe, bastando que se comprove não ter ele realizado atos de execução, mas sim, e por exemplo, de direção da atividade criminosa.[48]

Nem sempre é possível ser individualizada a conduta de cada um dos coautores e partícipes. Para tanto, Fernando Capez aduz que os tribunais têm admitido a narração genérica da conduta desses agentes, devendo, entretanto, o autor deixar bem clara a existência das elementares do concurso de agentes.[49] Segue, o nobre autor, expondo o atual entendimento dos tribunais superiores acerca deste assunto:

No caso dos crimes de autoria coletiva, o Superior Tribunal de Justiça vem entendendo que, quando a acusação não tem elementos para especificar a conduta de cada co-autor e partícipe, a fim de não viabilizar a persecução penal, é possível fazer uma narração genérica do fato, sem descrever a conduta de cada um, uma vez que a inaugural poderá ser emendada até a sentença condenatória[50] [...] Na mesma linha, o Supremo Tribunal Federal vem se posicionado, sob o argumento de que a impunidade estaria assegurada se se reclamasse do Ministério Público, no momento da denúncia, a individualização das condutas, dada a maneira como os delitos de autoria coletiva são cometidos[51] [...] Convém frisar, no entanto, que a peça acusatória não pode, a pretexto de ser genérica, omitir os mais elementares requisitos que demonstrem estar presentes as indispensáveis condições para a causa petendi. A atuação do rigorismo do art. 41 do Código Penal, não implica em admitir-se denúncia que nem de longe demonstre a ação ou omissão praticada pelos agentes, o nexo de causalidade com o resultado danoso ou qualquer elemento indiciário de culpabilidade[...][52]

O caso mais comum de emprego de narração genérica das condutas de cada agente ocorre nos crimes societários de autoria coletiva, que, pela própria natureza da conduta delituosa, não se pode exigir que a denúncia individualize e especifique os atos de cada um. 

Segundo Julio Fabbrini Mirabete[53], existindo a descrição única e homogênea da conduta dos agentes, os quais não tenham praticado atos isolados e distintos, deve ser a denúncia recebida. Porém, é indispensável que se afirme haver ocorrido um prévio ajuste entre eles, não bastando a condição de sócio para justificar a condenação pelo crime praticado por meio da sociedade.[54]

Manoel Pedro Pimentel, apud Fernando da Costa Tourinho Filho[55], adverte que “se a responsabilidade penal é subjetiva, não pose recair indistintamente sobre todos os diretores, mas apenas sobre os que tiveram participação efetiva no fato delituoso”.

Por fim, quanto a esse controvertido tema, Fernando da Costa Tourinho Filho opina escrevendo o seguinte:

Na verdade, a prática de incluir todos os sócios ou diretores de uma empresa em acusação criminal relacionada ao desempenho dessa empresa é mais que uma ilegalidade: é um equívoco que desserve a própria Justiça Criminal, e é equívoco de muitas faces[56].

1.2.1.2 Denúncia alternativa

Assunto relevante e muito discutido na doutrina e jurisprudência pátrias é a possibilidade de ser oferecida denúncia alternativa, ou seja, “aquela que atribui ao réu mais de uma conduta penalmente relevante de forma alternada, de modo que, se uma delas não ficar comprovada, o réu poderá ser condenado subsidiariamente pela outra.”[57]

Esse tipo de denúncia ocorre, geralmente, nos casos em que o representante do Ministério Público, ao analisar as provas colhidas no inquérito para formar sua opinio delicti, tem dúvida entre duas ou mais condutas a serem imputadas ao indiciado, valendo-se, para tanto, da alternatividade de acusações durante a elaboração da exordial acusatória.

Esclarece bem Afrânio Silva Jardim, citado por Julio Fabbrini Mirabete:

Diz-se alternativa a imputação quando a peça acusatória vestibular atribui ao réu mais de uma conduta penalmente relevante, asseverando que apenas uma delas efetivamente terá sido praticada pelo imputado, embora todas se apresentem como prováveis, em face da prova do inquérito.[58]

Exemplificando o assunto, Fernando Capez expõe o seguinte:

[...] o agente, indiciado por roubo, nega esse crime, mas confessa ter adquirido a res, sabendo de sua origem ilícita. Neste caso, a denúncia alternativa descreve o roubo, afirmando que, na hipótese de o mesmo não ficar provado, o indiciado deverá ser condenado por receptação dolosa, a qual vem narrada na petição de modo subsidiário, ficando como uma segunda opção para o juiz.[59]

A partir deste exemplo, pode-se perceber que o acolhimento de uma das imputações ao acusado implicará, necessariamente a rejeição da outra, e vice-versa, abrindo-se ao magistrado um leque de alternativas, devendo-se mencionar, entretanto, “que a coisa julgada se estenderá sobre todos os delitos imputados alternativamente, sendo impossível novo processo pelo delito no qual operou-se a absolvição”.[60]

Duas são as correntes que se confrontam acerca do assunto: a dos que aceitam a denúncia alternativa e a dos que não a admitem. A primeira corrente, adotada por Afrânio Silva Jardim, Julio Fabbrini Mirabete, entre outros[61], defende que deve ser admitida no processo penal a imputação alternativa, sustentando, para tanto, que não há qualquer vedação legal nem confronto com o sistema processual e seus princípios.[62]

No entanto, a segunda corrente, majoritária no momento e a mais coerente, adotada por Ada Pellegrini Grinover, Fernando Capez,  Fernando da Costa Tourinho Filho etc., defende que a denúncia alternativa não pode ser aceita, pois acaba tornando a acusação incerta e dificultando muito o exercício da defesa, até mesmo inviabilizando-a.[63]

Fernando Capez, defendendo seu posicionamento quanto ao assunto, aduz que “para que se realize a ampla defesa não se concebe uma pluralidade de acusações alternativas, impossibilitando o réu de saber do que está sendo acusado”.[64];[65]

Neste mesmo sentido posiciona-se a Súmula 1[66];[67] das Mesas de Processo Penal, realizadas na Faculdade do Largo de São Francisco, sob a coordenação de Ada Pellegrini Grinover, concluindo que: “A acusação deve ser determinada, pois a proposta a ser demonstrada há de ser concreta. Não se deve admitir denúncia alternativa, principalmente quando haja incompatibilidade lógica entre os fatos imputados.”

1.2.2 Qualificação do acusado

“Na denúncia, o órgão do Ministério Público deve fixar a relação de causalidade entre o fato criminoso e o suposto culpado,”[68] para então individualizar a pessoa do acusado, contra quem incidirá o processo.

Trata-se de requisito essencial para a propositura da denúncia, na visão de Hidejalma Muccio, cuja inobservância acarreta sua inépcia, pois “o fato criminoso só pode ser imputado ao suposto culpado. Logo, na denúncia, deve o autor da ação penal estabelecer essa relação de causalidade”.[69]

Qualificar, conforme leciona Fernando Capez, “é apontar o conjunto de qualidades pelas quais se possa identificar o denunciado, distinguindo-o das demais pessoas.”[70] Esta qualificação somente é prescindível se for possível obter-se a identificação do acusado, seja por identificação datiloscopia, exame de DNA, reconhecimento pessoal da vítima, ou mediante outros dados.

De acordo com Hélio Bastos Tornaghi, citado por Hidejalma Muccio, “qualificação é o ato de qualificar, isto é, de apontar o conjunto de qualidades que individuam a pessoa.”[71]  Segundo o autor, nela se incluem:

a) o nome, isto é, a locução substantiva composta do prenome (profesor, doutor, tenente); nome stricto sensu (José, João, Pedro); o sobrenome (Carlos, Henrique); o cognome ou nome de família ou apelido (Silva, Freitas); o agnome ou alcunha (“Sete Dedos”, “Carne Crua”), e até o pseudônimo, nome diverso do patronímico, usado para fins culturais; b)o estado de família, que inclui não apenas a situação de casado ou solteiro, mas ainda filiação; c) a cidadania, nacional ou estrangeira; d) o estado físico, isto é, idade, sexo. (Curso de Processo Penal, 6ª ed., vol. 1, p. 43).[72]

Para Julio Fabbrini Mirabete, “Qualificar é apontar o conjunto de qualidades que individuam a pessoa, nele se incluindo o nome, o cognome, nome de família ou apelido, pseudônimo, estado civil, filiação, cidadania, idade, sexo, estado físico”.[73]

A ignorância a respeito de algumas dessas características não cria nulidades à propositura da peça vestibular, que pode expor outros elementos e dados particulares como características físicas, alcunhas, sinais de nascença etc, que auxiliem na individualização e identificação do acusado.

A problemática referente à qualificação do suposto acusado é de suma importância, conforme ensina Fernando da Costa Tourinho Filho, “porquanto, em se tratando de qualidade personalíssima, não pode ser atribuída a outra pessoa que não a verdadeira culpada.”[74]

Contudo, ante a dificuldade em se qualificar de modo completo o acusado, deve-se levar em conta os vários sinais singulares que possam individualizá-lo, sempre tendo em vista que, caso essa qualificação não seja possível, a denúncia será rejeitada por desrespeito ao seu aspecto formal.[75]

1.2.3 Classificação jurídica do fato criminoso

Dar a classificação do delito ou a tipificação da infração penal é, segundo Hidejalma Muccio, “dizer em que dispositivo da Lei Penal o autor do fato se acha incurso”.[76]

Esta classificação, prevista no artigo 41[77] do Código de Processo Penal, nada mais é do que a indicação do dispositivo legal que descreve o fato criminoso.[78]

De acordo com Fernando Capez, “O juiz só está adstrito aos fatos narrados na peça acusatória”[79]. Acerca do assunto, segue o autor expondo que:

O autor deverá indicar o dispositivo legal em que se subsume o fato imputado, não bastando a simples menção ao nomem iuris da infração. O demandado defende-se dos fatos a ele imputados, não a sua tipificação legal. Por isso, a classificação jurídica da conduta pode ser alterada até a sentença (quer por aditamento da peça inicial – CPP, art. 569 - quer por ato do juiz – CPP, art. 383 e384).

Contudo, Julio Fabbrini Mirabete ensina que “A eventual alternatividade na classificação jurídica do fato não torna inepta a denúncia, porque não vincula o julgador.”[80] Assim, o juiz não tem poderes para alterar a classificação do crime na exordial inicial, apenas o dominus litis o pode fazer.

Por fim, muito bem explica Eugênio Pacelli de Oliveira que:

[...] a correta delimitação das condutas, além de permitir a mais adequada qualificação (tipificação) do fato, no que a exigência neste sentido estaria tutelando a própria efetividade do processo, presta-se também a ampliar o campo em que se exercerá a atividade de defesa, inserindo-se, portanto, como regra atinente ao princípio da ampla defesa.[81]

1.2.4 Rol de testemunhas

De acordo com Julho Fabbrini Mirabete, o rol de testemunhas é mera faculdade do dominus litis, “embora quase sempre seja indispensável a prova testemunhal que, na maioria dos casos, comprova a autoria do crime e muitas de suas circunstâncias.”[82]

Assim, o arrolamento de testemunhas é facultativo, haja vista à possibilidade de inexistir testemunhas que presenciaram o fato criminoso, ou ainda, não terem sido as mesmas identificadas, inexistindo, desse modo, testemunhas a serem arroladas.

Seguindo este mesmo entendimento, Hidejalma Muccio[83] afirma que o arrolamento de testemunhas não é requisito essencial da denúncia, sendo, pois, mera faculdade que se confere à parte. Em sua justificativa, argumenta o referido autor que o Ministério Público pode desprezar este tipo de prova, valendo-se apenas da pericial e documental, por exemplo.

Todavia, é o da propositura da ação o momento adequado para fazê-lo, não podendo essa omissão ser suprida depois, pois incide aqui, o fenômeno da preclusão. O máximo que se poderá fazer nesses casos será apontar ao juiz as testemunhas relevantes e esperar que ele se digne de ouvi-las como sendo suas[...] [84]

Contudo, “não há inépcia na denúncia pela ausência do rol de testemunhas já que, quanto à prova não vigora qualquer limitação, a não ser no que se refere ao estado das pessoas.”[85]

1.2.5 Requisitos intrínsecos

Além dos requisitos acima elencados e extrinsecamente previstos no artigo 41[86] do mencionado dispositivo legal, Fernando Capez[87] assinala outros que ainda deverão ser observados como: o pedido de condenação (não precisando ser expresso, bastando que esteja implícito na peça), o endereçamento da petição (mesmo que equivocado, tal endereçamento não impede o recebimento da denúncia, tratando-se de mera irregularidade sanável com a remessa ou recebimento dos autos pelo juízo competente), o nome, cargo e posição funcional do denunciante e a sua assinatura (cuja falta não invalida a peça, se não houver dúvidas quanto à sua autenticidade).

Do mesmo modo, Fernando da Costa Tourinho Filho[88] afirma existir outras exigências de ordem formal para a propositura da denúncia embora silencie o referido artigo 41. Dentre elas está o cabeçalho (no qual se indica o Órgão Jurisdicional com competência para o julgamento da pretensão) e a forma escrita em vernáculo. Também menciona outras exigências como a denúncia ser subscrita pelo órgão do Ministério Público que possui atribuição perante o juízo do qual invocar a prestação jurisdicional, além do pedido de citação do réu para defender-se em juízo da acusação que lhe foi imputada.

Quanto ao pressuposto de ser a denúncia escrita em vernáculo, embora não haja qualquer norma direta e expressa em nesse sentido, tal obrigatoriedade decorre do ordenamento jurídico-processual penal pátrio, que através de várias disposições legais, conforme ensina Hidejalma Muccio[89], “determina que os atos processuais sejam praticados em português, que é a língua pátria.”

1.3 Rejeição

A denúncia, na sistemática anterior a vigência da Lei 11.719, de 20 de junho de 2008[90], era rejeitada quando o fato narrado evidentemente não constituía crime, quando estivesse extinta a punibilidade pela prescrição ou outra causa, ou, finalmente, quando estivessem ausentes quaisquer das condições exigidas pela lei para o exercício da ação penal,[91] conforme dispunha o artigo 43[92] do Código de Processo Penal.

Todavia, tal artigo foi revogado expressamente pelo artigo 3º da mencionada Lei Reformadora, modificando-se, inclusive, as causas de rejeição da denúncia.  De acordo com a atual redação dada ao artigo 395[93] do Código de Processo Penal, a denúncia será rejeitada quando for inepta, faltar qualquer pressuposto processual ou condição da ação penal, ou ainda faltar justa causa para o exercício da ação penal.

O professor Andrey Borges de Mendonça[94], ao comentar em sua obra sobre tal modificação, afirmou que tal reforma ocorreu com o escopo de se afastar equívocos da anterior redação, além de integrar as contribuições da doutrina sobre as causas de rejeição.

Contudo, pode-se perceber claramente que há semelhanças entre as duas redações, permanecendo a atual mais abrangente que a primeira.

1.3.1 Rejeição da denúncia anterior a Lei 11.719/2008

1.3.1.1 Fato narrado não constitui crime

É evidente que somente se pode iniciar a ação penal quando for imputada ao acusado a prática de um fato típico, antijurídico e culpável, que se amolde à descrição abstrata contida na legislação penal[95], conforme preceitua o princípio da legalidade, previsto no artigo 5°, inciso XXXIX[96], da Constituição Federal e no artigo 1°[97] do Código Penal.

Neste sentido, Julio Fabbrini Mirabete vai além, afirmando que “Se o fato não se reveste de tipicidade não há imputação de crime e a denúncia ou queixa deve ser rejeitada.”[98] Do mesmo modo, não há que se falar em imputação de crime se o fato narrado na denúncia, mesmo que em tese, contém o relato de ter o agente “agido ao abrigo de uma das causas excludentes da ilicitude prevista na lei penal”. [99]

Entretanto, “caso o fato narrado aparentemente configure fato típico e ilícito, a denúncia deve ser recebida, pois nessa fase, há mero juízo de prelibação.”[100] Não deve o magistrado efetuar um exame apurado de prova, devendo o mesmo ocorrer por ocasião da sentença, tendo em vista que “a existência ou não de crime passará a constituir o próprio mérito da demanda, e a decisão fará, por conseguinte, coisa julgada material.” [101]

Contudo, caso o fato narrado evidentemente não constitua crime, seja por falta de tipicidade, seja por excludente de ilicitude, a denúncia não deve ser recebida, inexistindo a possibilidade jurídica do pedido, sendo desnecessário aguardar todo o trâmite processual, para que o juízo fatalmente decida pela absolvição.

1.3.1.2 Já estiver extinta a punibilidade, pela prescrição ou outra causa

Restando comprovado nos autos que houve a ocorrência de uma das causas extintivas da punibilidade[102], previstas no artigo 107[103] do Código Penal, ou em outros dispositivos, deve o magistrado rejeitar a inicial, declarando qual o fundamento legal. “A menção expressa à ‘prescrição’ é despicienda, já que é ela uma das causas extintivas da punibilidade.”[104]

Ao ocorrer uma dessas causas, conforme ensina Fernando Capez, há “falta de interesse de agir, pois o autor não tem qualquer razão para recorrer à tutela jurisdicional de um direito que já pereceu.”[105]

No entanto, caso haja dúvidas acerca da ocorrência de qualquer causa extintiva, deve o magistrado receber a inicial, declarando a extinção da punibilidade, quando for comprovada, de ofício e em qualquer fase do processo.[106]

1.3.1.3 For manifesta a ilegitimidade da parte

“Trata o dispositivo, em primeiro lugar da hipótese de ausência de uma das condições da ação, a falta de legitimidade ad causam (legitimidade para agir).”[107]

O Ministério Público, como órgão estatal incumbido de promover a persecução penal em juízo, detém a legitimação ordinária para a propositura da ação penal pública, enquanto o ofendido é o legitimado extraordinário para a ação penal privada, atuando como verdadeiro substituto processual (verdadeira parte legítima é o Estado). Caso o Ministério Público ofereça queixa em ação privada, ou o ofendido denuncie alguém, na ação pública, a peça acusatória não será recebida, em face da impertinência subjetiva da ação.[108]

1.3.1.4 Falta de condição de procedibilidade exigida por lei

Ao mencionar as condições de procedibilidade, exigida por lei para o exercício da ação penal, refere-se o dispositivo as condições da ação gerais ou especiais: legitimatio ad processum (capacidade processual para estar em juízo), interesse de agir, outras condições de procedibilidade, pressupostos processuais, bem como os requisitos exigidos pela própria denúncia.[109]

Trata-se de um dispositivo de aplicação mais genérica, abrangendo qualquer uma das condições exigidas por lei para a persecução da ação penal.

Ressalta-se, ainda, que, atualmente, tem-se incluído como causa de rejeição da denúncia, conforme escreve Julio Fabbrini Mirabete, “a falta de condição exigida pela lei (falta de interesse de agir) a inexistência de elementos indiciários que amparem a acusação.”[110] Assim, é imprescindível que a exordial esteja acompanhada de um mínimo de prova, que demonstre ser ela viável, ou seja, é preciso que haja o chamado fumus boni iuris, para que a demanda criminal possua condições de viabilidade, amparada sob prisma da justa causa, o que, caso contrário, não existiria.[111]

1.3.2 Rejeição da denúncia posterior a Lei 11.719/2008

Conforme comentado inicialmente, as causas de rejeição da denúncia estão atualmente previstas no artigo 395[112] do Código de Processo Penal.

Desse modo, a denúncia será rejeitada quando for inepta (inciso I), quando faltar qualquer pressuposto processual ou condição da ação penal (inciso II), ou ainda faltar justa causa para o exercício da ação penal (inciso III).

1.3.2.1 Denúncia manifestamente inepta

A denúncia será inepta quando não preencher os requisitos formais mínimos para o seu processamento, conforme explica o professor Andrey Borges de Mendonça[113].

Segundo o autor[114], a correta elaboração da acusação é deveras relevante, pois permite ao acusado tomar conhecimento do fato criminoso que lhe esta sendo imputado, possibilitando, assim, o exercício da sua defesa com maior amplitude. Por este motivo deve a denúncia preencher tanto os requisitos extrínsecos presentes no artigo 41[115] do Código de Processo Penal, como os intrínseco, anteriormente já analisados.[116]

Eugênio Pacelli de Oliveira[117] afirma que em atenção ao principio da ampla defesa, caberia a rejeição da denúncia por inépcia, na medida exata em que esta não atendesse aos requisitos previstos no citado artigo 41.

Neste norte, a descrição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias é um dos principais requisitos, sendo inclusive o núcleo da imputação. Segundo Fernando da Costa Tourinho Filho[118], “o fato criminoso, pois, é a razão do pedido da condenação, a causa petendi”, ou seja, sua causa de pedir.

“Este é o núcleo da imputação, a causa de pedir, devendo-se delimitar com precisão os fatos narrados para que seja possível o exercício da ampla defesa.” [119]

 Outro requisito essencial para a propositura da denúncia, na visão de Hidejalma Muccio, cuja inobservância acarreta sua inépcia, é a qualificação do acusado, pois “o fato criminoso só pode ser imputado ao suposto culpado. Logo, na denúncia, deve o autor da ação penal estabelecer essa relação de causalidade”.[120]

Acerca de todos os requisitos para a correta elaboração da denúncia, Fernando da Costa Tourinho Filho[121] assevera o seguinte:

Alguns desses requisitos são indispensáveis: a exposição do fato criminoso, a individualização do culpado, a escrita em vernáculo, a assinatura do Promotor de Justiça, o pedido de citação do réu, a indicação do Juiz ou Tribunal a que é dirigida. Outros, com o rol de testemunhas e classificação da infração, não se revestem de tanta importância.

Por fim, muito acertadamente conclui Andrey Borges de Mendonça[122] que a “inépcia está ligada a não-observância de aspectos formais essenciais da peça acusatória (especialmente a descrição do fato com todas as suas circunstâncias e a qualificação do acusado).”

1.3.2.2 Falta de pressuposto processual ou condição para o exercício da ação

Inicialmente, é oportuno salientar que existe grande discussão na doutrina sobre a delimitação e diferenciação dos pressupostos processuais e das condições da ação no âmbito do processo penal.

Conforme ressalva Fernando da Costa Tourinho Filho, este tema é inquietante e tem desafiado a angústia dos doutrinadores. “Sem embargo das profundas, velhas e revelhas especulações científicas, ainda não se logrou, no particular, alicerce bem caldeado.” [123]

Contudo, pode-se caracterizar os pressupostos processuais como os “requisitos necessários para a existência e validade da relação jurídica processual (pressupostos de existência e validade)”. [124]

Para o professor e Promotor de Justiça Hidejalma Muccio[125], “Por pressupostos processuais se entendem os requisitos exigidos para que a relação jurídico- processual surja validamente”.

Ressalta o referido autor que sobre o assunto existe grande dissenso na doutrina.

Uma das correntes doutrinárias entende que os pressupostos processuais são as condições mínimas para a existência da relação processual, que são: um órgão investido de jurisdição, o pedido e as partes. Presente essas condições, a relação processual existe. Ada Pellegrini Grinover vai mais além e sustenta que, na verdade, o único pressuposto de existência é o Órgão Jurisdicional. Assim, para que o processo exista, basta que haja uma pessoa realmente investida do poder de julgar. A falta de capacidade da parte ou do pedido apenas torna nula a relação processual existente (O Processo, cit., p. 170). Uma outra corrente doutrinária não se contenta com os chamados pressupostos de existência, porque não basta que a relação processual seja constituída; é preciso que ela, uma vez existente, se desenvolva validamente. Falam, então, nos pressupostos de validez. Sustentam que, sem os de existência, haverá um “não-processo”, enquanto que a ausência dos pressupostos de validez “implica na existência do processo, porém, inválido, ineficaz...” São, assim, pressupostos de validade tudo quanto é exigido para a validade da relação processual constituída, como um órgão jurisdicional competente, não suspeito ou impedido, a existência de coisa julgada ou de litispendência, a ausência de nulidade etc.[126]

Já as condições da ação, “são os requisitos essenciais para que possa exercer o direito de ação e, assim, ter direito ao julgamento do mérito.”[127]

Estas, segundo a maior parte da doutrina, estão divididas em três condições:

a) possibilidade jurídica do pedido;

b)legitimidade da parte (legitimatio ad causam) ou legitimidade de agir; e

c) Interesse de agir ou interesse legítimo.

A possibilidade jurídica do pedido, para Andrey Borges de Mendonça[128], “significa tipicidade da conduta descrita”.

A doutrina, em grande parte, entende por possibilidade jurídica do pedido, como o próprio nome está a indicar, deva o autor, ao promover a ação, solicitar ao Juiz uma providência que tenha existência no nosso ordenamento jurídico, isto é, o autor deve pedir algo abstratamente admissível segundo as normas vigentes no ordenamento jurídico nacional. [129]

Atente-se para a importante lição de Arruda Alvim apud Fernando da Costa Tourinho Filho[130]: “Possibilidade jurídica do pedido significa o exame que deve ser feito, pelo Juiz, da ação posta em juízo, no sentido de examinar se há, ou não, viabilidade jurídica do mesmo, em função do ordenamento jurídico positivo.”

Desse modo, no âmbito do direito penal, aquilo que esta sendo pedido deve ser juridicamente possível, ou seja, a conduta do agente deve estar revestida de tipicidade e antijuridicidade.

Por sua vez, a legitimidade ad causam ou legitimidade para agir, ou seja, para propor a ação,  é, na sugestiva expressão de Alfredo Buzaid apud Fernando da Costa Tourinho Filho[131],  a pertinência subjetiva da ação. “Esta somente poderá ser exercida pelo titular de uma situação jurídico-material. Em suma: é a parte legítima para promover a ação o titular do interesse em lide.” [132]

Desse modo, o legitimado para figurar no pólo ativo é o indicado pela lei (Ministério público nas ações públicas e ofendido ou seu representante legal, nas privadas). E o legitimado passivo é o indigitado autor da infração penal.[133]

Por fim, a terceira condição da ação é o interesse de agir. Este, segundo ensinamentos de Andrey Borges de Mendonça,

[...] significa a necessidade de vir a juízo (necessidade esta presumida no processo penal, pois o direito de punir é de coação indireta, ou seja, somente se aplica por meio do processo) e a utilidade/adequação do provimento jurisdicional para realizar a pretensão punitiva estatal (se estiver extinta a punibilidade, por exemplo, não há nenhuma utilidade do processo, uma vez que será impossível a aplicação do ius puniendi).[134]

Ressalta-se que o interesse de agir não se confunde com o interesse substancial, conforme explica Fernando da Costa Tourinho Filho[135]. “Aquele é de natureza eminentemente processual; este, de natureza material” Salienta, ainda, o renomado autor que “quando ocorre uma infração penal, o interesse substancial ou primário outro não é senão a própria pena, porquanto o interesse material ou primário constitui o núcleo do direito subjetivo material – jus puniendi.”

1.3.2.3 Faltar justa causa para o exercício da ação penal

A falta de justa causa para o exercício da ação penal, é uma das inovações trazidas pela Lei 11.719, de 20 de junho de 2008[136].

Embora grande parte da doutrina e da jurisprudência[137] já tivessem elevado-a como elemento indispensável para o exercício da ação penal, tal condição não era prevista expressamente na antiga redação do artigo 43[138] do Código de Processo Penal.

O Estatuto Processual Penal apenas fazia referencia em seu artigo 648[139], indicando haver coação ilegal na liberdade de ir e vir das pessoas quando não houvesse justa causa para a ação penal.

Majoritariamente entre os doutrinadores, a justa causa era reconhecida, ou melhor, confundida com o interesse de agir. Seguindo este entendimento, José Frederico Marques[140] afirmou que “a ausência de interesse de agir torna inepta a acusação, por faltar, em tal hipótese, justa causa para a persecutio criminis.” Ao defender seu entendimento, o respeitado autor esclareceu o seguinte:

Certo é que o Código de Processo Penal é, a esse respeito, pouco claro, uma vez que não traz texto expresso exigindo, como condição do direito de ação, o legítimo interesse. Fácil é demonstrar, porém, que tal condição se encontra imanente ao sistema legal em vigor [...] A não-existência de texto expresso sobre o legítimo interesse é suprida pela referência à justa causa contida no art. 648, nº I, do Código de Processo Penal, uma vez que o interesse se confunde com a própria causa de direito de ação. [141]

Maria Thereza de Assis Moura apud Andrey Borges de Mendonça[142], ao comentar o anteprojeto, agora transformado na Lei 11.719, de 20 de junho de 2008[143], ensina que: “o legislador não disse de forma explícita o que considera justa causa para o exercício da ação penal, embora possa se verificar, desde logo, que, de acordo com o texto, justa causa não se identifica com ‘pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal”.

Asseverou, ainda, a nobre autora, que “infelizmente mais uma vez perdeu-se boa oportunidade para pôr fim à divergência existente quando quanto ao conceito de justa causa”. [144]

De qualquer sorte, explica Andrey Borges de Mendonça [145] que a jurisprudência é contumaz em entender que inexiste justa causa para a ação penal nos seguintes casos:

a)  quando o fato for manifestamente atípico;

b)  quando já estiver extinta a punibilidade;e

c)  quando a imputação não vier lastreada em um mínimo suporte probatório, a demonstrar a sua viabilidade e seriedade da acusação.

Neste sentido, colhem-se os seguintes julgados:

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 168, §1º, III, DO CP. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. FALTA DE JUSTA CAUSA. ATIPICIDADE DA CONDUTA. AUSÊNCIA DE DOLO.      I - O trancamento de ação por falta de justa causa, na via estreita do writ, somente é viável desde que se comprove, de plano, a atipicidade da conduta, a incidência de causa de extinção da punibilidade ou ausência de indícios de autoria ou de prova sobre a materialidade do delito, hipóteses não ocorrentes na espécie (Precedentes). II - In casu, se a recorrente não foi a destinatária da ordem judicial, constata-se, prima facie, que não agiu com dolo, de modo que deve ser trancada a ação penal contra ela instaurada pela suposta prática do delito de desobediência. Recurso provido. [146]

PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ART. 297 DO CÓDIGO PENAL. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. FALTA DE JUSTA CAUSA. ALEGAÇÃO DE ATIPICIDADE DA CONDUTA DESCRITA NA DENÚNCIA E DE EQUÍVOCO NA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DO FATO. I - O trancamento de ação por falta de justa causa, na via estreita do writ, somente é viável desde que se comprove, de plano, a atipicidade da conduta, a incidência de causa de extinção da punibilidade ou ausência de indícios de autoria ou de prova sobre a materialidade do delito, hipóteses não ocorrentes na espécie (Precedentes). II - O delito previsto no art. 301, § 1º, do Código Penal não é próprio, podendo qualquer pessoa ser seu sujeito ativo. (Precedentes) III- In casu, se o objeto da falsidade material foi certidão negativa de débito, o delito imputado ao paciente na exordial acusatória deve, em atendimento ao princípio da especialidade, ser desclassificado do art. 297, caput, para o art. 301, § 1º, do Código Penal. IV - Se pena máxima cominada ao crime de falsidade material de atestado ou certidão é de 2 (dois) anos, e, entre a data do fato e o recebimento da denúncia transcorreu o referido lapso temporal, operou-se a prescrição da pretensão punitiva, ex vi dos arts. 107, IV e 109, V, do Código Penal. Recurso parcialmente provido. [147]

Contudo, com o fito de evitar confusões entre os conceitos de justa causa e condições da ação, o professor Andrey Borges de Mendonça[148] após o advento da nova disciplina legal, entende que “apenas quando não houver um mínimo de lastro probatório para a acusação é que se deve falar em falta de justa causa”.

Por fim, ressaltou que a extinção da punibilidade e a ausência de tipicidade, as quais eram consideradas pela jurisprudência dominante como hipóteses de falta de justa causa para a ação penal, estariam ligadas respectivamente ao interesse de agir e a possibilidade jurídica do pedido.[149]

1.4 Omissões

Consoante dispõe o artigo 569[150] do Código de Processo Penal, as omissões da denúncia poderão ser supridas a todo o tempo, até a sentença final.

Conforme leciona Eugênio Pacelli de Oliveira:

Por omissões, devem-se entender aqueles dados não essenciais não constantes na denúncia ou queixa, passíveis apenas de esclarecimentos quanto à matéria de fato e de direito, e desde que não impliquem a modificação da imputação, o que ocorreria, por exemplo, se se permitisse a inclusão de fatos e co-autores e partícipes novos, somente possível por meio do aditamento, ou [...] da mutatio libelli, providência adotada pelo magistrado, por ocasião da fase decisória, diante da constatação da existência de circunstância e/ou elementar não contida na peça acusatória (art. 384, CPP).[151]

Entretanto, “Reconhece-se pacificamente ao Ministério Público o direito não só de corrigir as falhas e omissões da denúncia, de acordo com o artigo 569 [...] como de promover seu aditamento, a qualquer tempo, durante a instrução.”[152]

Desse modo, o artigo em análise confere ao Ministério Público, conforme aduz Fernando Capez, “além da prerrogativa de retificar dados acidentais da denúncia, o direito de aditá-la a qualquer momento, até a sentença, para incluir no processo novos acusados ou para imputar aos existentes novos delitos.”[153] Segue o nobre autor expondo que:

Em qualquer caso, providências deverão ser tomadas para assegurar a observância de todas as garantias do devido processo legal, tais como nova citação, reabertura da instrução, quando esta já estiver concluída, ou mesmo abertura de vista à parte para manifestar-se a respeito de algum documento que se tenha juntado.[154]

Quanto ao assunto em discussão, Hidejalma Muccio[155] ressalta que a correção da data e do local do fato pode ocorrer a qualquer tempo do processo, como põe o artigo 569 supra citado, pouco importando se a omissão ocorreu por negligência, ou porque a circunstância era desconhecida.

É possível dizer que na descrição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, há elementos que são indispensáveis e outros que são secundários, periféricos, por isso mesmo chamados de circunstâncias acidentais. A falta dos elementos essenciais, sendo dessa natureza a descrição típica da infração penal, torna inepta a inicial, possibilitando sua rejeição. A ausência de elementos secundários, ou de circunstância acidental (dia, hora, mês, ano e local), já não tem o condão de impedir a instauração da ação penal. Não inviabiliza o processo, podendo a denúncia ser aditada a qualquer tempo para corrigir a omissão, quer tenha sido fruto de negligência, quer porque a circunstância era desconhecida (art. 569 do CPP). Frisa-se, contudo, que se a ausência das circunstancias secundárias for tão acentuada a ponto de não se poder dar a descrição tipifica da infração penal, compreendê-la, é evidente que tornará inepta a inicial. [156]

Do mesmo modo, com relação a qualificação do acusado, o referido autor ensina que se a instrução processual foi iniciada contra pessoa certa, o erro quanto ao seu nome ou qualquer dados de sua qualificação não invalida o processo, podendo ser a denúncia aditada a todo tempo para a correção do nome ou qualquer qualidade que individualize a pessoa do acusado[157].

Acerca do aditamento da denúncia, que inclui novos ilícitos penais ao acusado ou amplia a acusação, inserindo coautores ou partícipes pela prática do delito objeto da denúncia, em decorrência do surgimento de elementos probatórios durante a fase instrução processual, Julio Fabbrini Mirabete assevera que sua existência fundamenta-se “[...] não só em decorrência do artigo 569[158], como das regras de competência por conexão ou continência dos artigos 76[159] e 77[160], que obrigam como norma geral a unidade de processo e julgamento.”[161]

E, ainda, se pode o Ministério Público aditar a queixa, conforme o teor do artigo 45[162] do Código de Processo Penal, com maior razão poderá aditar a denúncia, tendo em vista ser o titular da ação.

Contudo, oferecidas às alegações finais e encerrada a instrução processual, o aditamento da denúncia seguirá regra especial, prevista com a mutatio libelli esculpida no artigo 384 do mencionado dispositivo legal, atualmente com nova redação dada pela Lei 11.719, de 20 de junho de 2008[163].

Sobre o autor
Mario Cesar Felippi Filho

Bacharel em Direito pela Fundação Universidade Regional de Blumenau (2007). Pós-graduado em nível de Especialização (com habilitação para o Magistério Superior) em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade do Vale do Itajaí, em convênio com a Associação Catarinense do Ministério Público (2008). Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI (2013). Professor Universitário na área de Direito Penal e Processual Penal junto ao Centro Universitário - Católica de Santa Catarina (2009/atual). Conselheiro Estadual da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional de Santa Catarina (gestão 2013-2015). Advogado militante nas áreas Civil e Criminal.<br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FELIPPI FILHO, Mario Cesar. Aspectos destacados da exordial acusatória perante o processo penal brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3310, 24 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22269. Acesso em: 22 nov. 2024.

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