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Globalização: um fato histórico ou um discurso ideológico?

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Agenda 05/08/2012 às 15:00

4.As consequências da globalização

Verificamos que a adesão às regras do livre mercado global representou um ganho político e econômico aos líderes da terceira via. Como apontado, a aderência à doutrina libertária foi, de fato, capaz de atrair o capital internacional, fato este que ocorreu não só no Brasil dos anos 90, mas em diversos países, particularmente nos países europeus. A atração destes investimentos teve efeito positivo sobre o crescimento econômico nacional dos países que aceitaram as regras do capitalismo global.

Se esta adesão, ainda que ideológica, gerou resultados positivos, e se foi possível mesmo associá-la a uma agenda social, a pergunta que se coloca é: qual o problema do discurso da globalização?

Segundo Rodas (2007, p. 120), o processo de globalização tem como resultado uma desigualdade crescente. Os trabalhadores altamente qualificados têm maior possibilidade de conseguir emprego, enquanto que os menos qualificados são menos demandados. Na América Latina, na década de 90, a maior parte da mão de obra urbana aderiu ao trabalho informal. O número de trabalhadores urbanos no setor informal, na América Latina, se elevou de 43,0% a 48,4%. De cada 10 novos empregos criados, 7 foram informais (RODAS, 2007, p. 120).

Ainda que este problema já seja bastante conhecido no Brasil, tal questão merece alguma demonstração empírica. Conforme dados oficiais (MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL, 2010, quadro 1) relativos ao ano de 2008, a população economicamente ativa brasileira é de 99.500.202 de pessoas, da quais 92.394.585 estão efetivamente ocupadas (92,9%). Desta população economicamente ativa, apenas 39.652.510 estão incluídas como contribuintes no sistema previdenciário. Ou seja, apenas 39,85% da população economicamente ativa goza da proteção de um sistema jurídico formal. Os demais, que na verdade são a maioria (60,15% da população economicamente ativa), ou estão desempregados, ou estão em algum tipo de ocupação informal e precária, ou prestam serviços como se fossem uma “pessoa jurídica”, sem vínculo trabalhista. A partir do momento em que se constata que 3/5 da população economicamente ativa está fora do modelo de proteção social e trabalhista idealizado, deve-se começar a se questionar se o modelo atual corresponde à realidade, ou se tal sistema tornou-se ineficaz.

Os dados acima são consistentes com os dados apresentados por Robert Castell (1998, p. 514-515), que, analisando a questão do emprego na França, aponta que 2/3 das novas contratações são feitas segundo formas atípicas de contrato de trabalho, de caráter mais precário.

A precariedade do emprego é um sério problema. O capitalismo globalizado é um capitalismo sem redes de segurança. O elevado nível de informalidade do mercado de trabalho globalizado gera um ciclo vicioso. Como a maior parte da população economicamente ativa está fora do mercado formal, a parcela formalizada arca com um custo tributário elevado, de forma a garantir uma rede de proteção social mínima à totalidade da população. Por sua vez, o alto custo tributário do trabalho formal força que um percentual cada vez maior da população passe a trabalhar no mercado informal. Levado ao limite, esta situação poderá vir mesmo a inviabilizar uma rede protetiva estatal de caráter universal, ante a excessiva sobrecarga tributária imposta ao trabalhador formal.

Por outro lado, as consequências mais dramáticas do alto índice de trabalho informal somente serão visíveis no longo prazo. Estes problemas se tornarão mais evidentes quando a parcela da população hoje excluída do mercado formal atingir idade mais avançada e não mais consiga trabalhar.

Importante questão a ser considerada é que há uma massa de pessoas, com pouca ou nenhuma escolaridade ou educação, que simplesmente não está preparada para competir na economia globalizada, ainda que empregos sejam gerados. Esse grupo de excluídos, desempregados e trabalhadores informais vem servindo de exército de reserva para todo o tipo de atividade ilegal (DUPAS, 2006, p. 155): são os ambulantes do mercado de produtos piratas, fornecem mão de obra barata e abundante para o crime organizado e alimentam as redes de exploração da prostituição, nacionais e internacionais. Na economia global, somente a mão de obra altamente especializada é necessária (RODAS, 2007, P. 121). Temos que considerar, todavia, que o emprego é mais do que uma fonte de renda. É um fator importante na identidade das pessoas (CASTEL, 1998, p. 495-496). O emprego identifica o status do indivíduo e o situa dentro da sociedade, permitindo que com ela se identifique. Ter um trabalho dá um sentido de utilidade e importância ao indivíduo dentro do grupo social.

Ocorre que relevante parcela da população vem sendo excluída deste novo mundo global, não sendo capaz de com ele se identificar. A primeira quebra se dá com a própria ausência de emprego, o que dificulta que o indivíduo se situe e se identifique dentro da sociedade. Além disso, a incorporação ao universo global exige, no mínimo, o domínio do inglês, a proficiência com computadores e nível razoável de educação formal e de renda. Para a parcela da população que não atinge estes requisitos, a globalização é um fato distante, fora das suas realidades. Excluídas do mundo global e do mercado de trabalho formal, estas pessoas buscam sua identidade em outras instituições, como, por exemplo, no crime organizado. Pertencer a uma organização criminosa, mais do que uma fonte de renda, é uma fonte de identidade e de status, permitindo ao indivíduo se sentir uma parte relevante de um grupo que o aceita.

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Outro problema do livre mercado é a desigualdade. Segundo Schwartzman (2004, p. 177-178), o aumento da renda brasileira na década de 90 não correspondeu a uma diminuição da desigualdade. De fato, a desigualdade, expressa pelo índice de Gini, que já era alta no Brasil, permaneceu alta ao longo de toda a década de 90. Os avanços na renda média trazidos pela política de defesa do livre mercado não se transformaram em melhorias no quadro da desigualdade econômica. Ou seja, aumentou-se a renda, mas manteve-se o modelo de injustiça social.

Por fim, outra consequência já bastante clara da adoção do discurso do livre mercado é a alta susceptibilidade a crises financeiras e econômicas. A alta volatilidade financeira, a desregulamentação, o aumento substancial na quantidade de valores negociados, a facilidade no fluxo de capitais, a falta de referências valorativas e o desacoplamento entre a produção material e a geração de valor geram condições para a ocorrência de sucessivas crises em diversos locais do globo (CASTELLS, p. 2008, p. 194-201), com resultados dramáticos para as vítimas da vez.

Estes grandes fluxos financeiros virtuais, ao entrarem e saírem de determinados mercados, possuem um poder destrutivo bem real. A entrada desordenada de ativos financeiros gera “bolhas”, onde os preços dos produtos e serviços passam a não guardar qualquer proporção com a realidade. A saída, por sua, vez, é igualmente dramática, gerando crises de liquidez, crashes e crises financeiras. Estes grandes fluxos de capital têm movimentos aparentemente irracionais e desordenados, motivados por especulação, por aspectos emocionais, por profecias autorrealizáveis e mesmo por um “comportamento de manada”, como descrito no início deste artigo.

Considerando que o Direito é uma ordem de relações intersubjetivas sob a exigência da justiça, especialmente de medida igual para todos (LARENZ, 1997, p. 526), há que se refletir sobre quais medidas devem ser efetuadas para minimizar as consequências negativas da adoção do discurso da globalização, de forma a se obter um nível aceitável de justiça social.

Há que se pensar no papel do Estado na economia global, o qual deve possuir mecanismos legais capazes de diminuir a desigualdade e minimizar os problemas causados pelo desemprego e pela exclusão social. Assim, não podemos concordar com o desmonte inconsequente dos mecanismos estatais de proteção social, como a previdência social e as garantias trabalhistas, eis que provavelmente a tutela social por parte do Estado tenderá a ser cada vez mais exigida ao longo dos próximos 30 a 40 anos. Deve-se, também, pensar em sistemas tributários que repartam os custos do sistema de bem-estar equitativamente por toda a sociedade, conforme a capacidade financeira de cada um, sem que se onere demasiadamente a pequena parcela da população incluída no mercado formal.

E, por fim, há que se repensar os sistemas regulatórios, particularmente em relação ao mercado financeiro. A crise de 2008 do subprime e a crise cambial de 2010 já são o sinal amarelo. Quando um operador da bolsa de valores consegue, com um simples digitar de dedos, causar danos superiores a terremotos e furacões, como ocorreu no caso do Citigroup referido no início deste artigo, algo está profundamente equivocado. Não é possível que tanto poder esteja concentrado nas mãos do mercado sem um controle jurídico, político e social, sob pena da sociedade acabar se tornando refém dos fluxos de capital e das sucessivas crises financeiras. Assim, há que se pensar num novo Estado, apto a lidar com o capitalismo global.


REFERÊNCIAS

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Notas

[1] De acordo com dados da NYSE Euronext, empresa que controla a Bolsa de Nova York, as empresas com ações listadas têm valor de mercado total de 16,7 trilhões de dólares, conforme dados de 31 de dezembro de 2008, respondendo por um volume diário de negócios de aproximadamente 153 bilhões de dólares. Sendo assim, uma queda de 9,2%, como ocorrida no dia 06.05.2010, representa em termos financeiros cerca de 1,54 trilhões de dólares no valor de mercado das empresas listadas. Note-se que este volume somente representa as 8.500 empresas listadas pelo NYSE, não considerando os demais mercados de ações do mundo (NYSE, 2010).

[2] Conforme dados da ONU, os prejuízos econômicos oriundos de desastres naturais em todo o mundo no período de 2008-2009 foram de 262 bilhões de dólares (UNITED NATIONS, 2010, p. 8).

[3]  Grupo dos 7 países mais ricos do mundo (G-7): EUA, Reino Unido, França, Alemanha (à época, somente a Alemanha ocidental), Itália, Canadá e Japão. 

Sobre o autor
Gustavo Augusto Freitas de Lima

Procurador Federal. Mestre em Direito, na linha de pesquisa de Políticas Públicas. Pós-Graduado em Direito Público. Professor de cursos de graduação e pós graduação, nas cadeiras de Direito Administrativo e Direito Constitucional. Membro do Conselho Editorial da Revista da AGU.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Gustavo Augusto Freitas. Globalização: um fato histórico ou um discurso ideológico? . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3322, 5 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22280. Acesso em: 19 nov. 2024.

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