CONCLUSÃO
O ser humano necessita viver em comunidade. Por isso associa-se. Mas esta associação não funciona de forma eficiente se cada indivíduo é livre para agir, para usufruir de seus direitos indiscriminadamente. A condução da vida em comunidade sob esta liberdade absoluta levaria à prevalência de uma só regra: a lei do mais forte, o que implicaria em inevitáveis prejuízos à boa parte dos cidadãos.
Para evitar esta situação, criou-se o Estado. Cada cidadão cede uma parte de sua liberdade, para que o Estado possa curar os interesses de todos e, assim, atingir o bem comum. Neste intento, são garantidas ao Estado prerrogativas, necessárias para o alcance de suas finalidades que, no entanto, são utilizadas para a prática de abusos e arbitrariedades, obrigando aos cidadãos a defender-se do próprio Estado.
Daí surgiu, por meio de revolução, o Estado de Direito. O Estado submetido à lei. Influenciada por um caráter extremamente individualista, a revolução visa garantir direitos de natureza eminentemente particulares. O bem comum neste momento histórico resume-se à garantia de liberdade e propriedade para todos os indivíduos.
Com a evolução da humanidade, este bem comum também evolui. Assume uma feição coletiva. Social. Erige-se o Estado Social de Direito, com reflexos na maioria dos ordenamentos jurídico-constitucionais modernos, inclusive o brasileiro. O bem comum de hoje não é simplesmente a garantia dos direitos individuais, mas, também, a garantia dos interesses coletivos. O interesse público consiste justamente na harmonização entre interesses individuais e coletivos, da forma como moldados pela ordem jurídica, com o objetivo de garantir a satisfação do bem comum.
Sobre essas bases históricas e ideológicas moldou-se o moderno Direito Administrativo, cujas diretrizes, caracterizadas pelo regime jurídico-administrativo, tem por finalidade garantir o equilíbrio entre as prerrogativas e sujeições conferidas à Administração Pública, sob a égide, respectivamente dos princípios da supremacia do interesse público sobre o privado e da indisponibilidade do interesse públicos. O primeiro tem enfrentado questionamentos que, no entanto, não merecem subsistir.
Com efeito, a premissa de que a supremacia do interesse público não consiste em princípio jurídico na acepção do termo aceita atualmente pela Teoria Geral do Direito, e correspondente à terceira fase do princípio, está absolutamente equivocada. Primeiramente porque, conforme demonstrado, ao expor a noção de princípio da supremacia, no contexto do regime jurídico-administrativo, a doutrina majoritária, capitaneada por CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, toma em conta a concepção de princípio relativa à segunda fase do conceito, como mandamento nuclear do sistema, critério para a criação e interpretação das normas que o compõem. Ademais, porque a terminologia adotada em nada abala a importância do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular no seu papel de fundamentar a instituição das prerrogativas necessárias ao cumprimento das finalidades do Estado.
Também o argumento de que o interesse público a prevalecer não se coaduna com o bem comum parte de premissa equivocada. No desenvolvimento do trabalho restou demonstrado que o bem comum, como finalidade do Estado, está definido no ordenamento jurídico-constitucional, e sua configuração no atual contexto da humanidade envolve a salvaguarda dos direitos individuais e, concomitantemente, dos direitos coletivos (estes no sentido amplo). O interesse público consiste na harmonização destas duas dimensões de direitos. Portanto, o que o interesse público visa é justamente garantir o bem comum.
Por fim, constatou-se que a indeterminabilidade do conceito de interesse público não ameaça os direitos fundamentais, tendo em vista que o próprio ordenamento se encarrega de traçar, ao lado das prerrogativas do administrador, as sujeições que limitam a sua atuação. Este, aliás, é o cerne do regime jurídico-administrativo.
Diante da análise realizada, se pode concluir pela subsistência do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado enquanto pilar inafastável do regime jurídico-administrativo. Como visto, regime jurídico consiste em sistema, e é nesta perspectiva que deve ser visto e analisado. Quando se trata do regime jurídico-administrativo, não existem prerrogativas sem sujeições. Não existe supremacia sem indisponibilidade. Raciocínios erguidos contra o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado que não considerem este binômio, não podem ser considerados críticas sérias, nem são suficientes para desconstruí-lo.
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