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A participação e a deliberação democrática frente à globalização

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Agenda 23/08/2012 às 15:15

3.GLOBALIZAÇÃO

André Jean-Arnaud defende o uso da terminologia globalização, que, no seu entendimento, significa mais do que a mera internacionalização, mas não acompanha o conceito de mundialização, mais largo, que diz com relações entre nosso planeta ou mundo e outras galáxias. Nem mesmo com transnacionalização se confunde, posto ter esta significado atrelado ao mero processo de intercâmbio entre Nações.

Nos dizeres desse autor: “Trata-se de uma tomada de consciência de que muitos problemas, nesse fim de século [XIX], não podem ser mais tratados através de uma simples referência aos Estados sem uma referência aos vínculos que passaram a unir as diferentes partes do globo terrestre. (...) a concepção de globalização ultrapassou rapidamente [d]essas questões, que escapavam claramente à gestão pontual e atomizada dos Estados, para dar a sua plena dimensão a uma melhor compreensão dos fenômenos novos que ocorrem no campo do intercâmbio monetário e econômico”[12].

Para tratar da globalização cita uma série de condições[13] que, uma vez preenchidas, podem dar vida ao fenômeno, dentre as quais “uma tendência generalizada em todo o mundo à democratização, à proteção dos direitos humanos, a um renovado interesse pelo Estado de direito”, com o surgimento de “atores supranacionais e transnacionais promovendo a democracia e essa proteção aos direitos humanos”[14], condições essas das quais se pode obter ou deduzir uma pretensão da globalização ao universal.

Nesse sentido, afirma que “os Estados cada vez mais perdem elementos de soberania nacional” em prol de ditas instâncias superiores, formadas em “nível global” e por “acordos regionais (regiões do globo)” interestatais[15].

Há um “encurtamento das distâncias”, ainda mais se tendo em vista o uso dos aparatos eletrônicos, como a ferramenta da Internet, e, em particular, das redes sociais, o que implica em uma necessidade de se repensar a “organização social humana”.

Retratando essa “internacionalização” das realidades, José Eduardo Faria[16] destaca que:

“o que se tem é um cenário interdependente, com atores, lógicas, racionalidades, dinâmicas e procedimentos que se intercruzam e ultrapassam as fronteiras tradicionais, não fazem distinções entre países, costumam colocar enormes dilemas para os governos, não hesitam em desafiar a autoridade dos policy makers quando lhes convém e, em muitos casos, chegam ao ponto de ignorar as próprias identidades nacionais”.

Como decorrência desse processo de globalização, surge a necessidade de “regras para a manutenção da paz universal”. Mas como se chegar a esse patamar frente à diversidade de atores trans e supranacionais, que implicam, por assim dizer, em uma esfera pública de variados matizes, em que a comunicação é o elo e, ao mesmo tempo, a distância se não for bem usada e ajustada nesse multiculturalismo “global” (mundialização das relações)? Quais os reais impactos desse fenômeno sobre a regulação social canalizada através do direito?   

Como visto, o direito é um meio para se fazer a relação entre os sistemas e o mundo da vida. Nesse sentido, ante o impacto da dita globalização nas formas de produção do direito, André Arnaud levanta diversas ponderações sobre o tema, acabando por concluir que seja qual for a forma e análise que se fizer, o importante é que não podemos mais falar em regulamentação social, jurídica, produção normativa/do direito e tomada de decisão política “sem levar em consideração a fragmentação da soberania e a segmentação do poder” que norteiam as sociedades ditas contemporâneas[17].

Nesse sentido, os Estados são instados a “implementar estratégias com base nos interesses dos cidadãos”, mais do que atuar como mero agente do bem-estar social, desenvolvendo atividades de cima para baixo. Seria o que Arnaud chama de “governância”, onde a gestão desses negócios globais deve ser coletiva, de autoridade compartilhada, em que se deixa de lado a soberania estatal (no sentido de onipotência[18]) e se passa à ótica de um governo de gestão, de administração, mantendo-se a identidade da sociedade, que, entre seus componentes, via comunicação, consegue ser partícipe ativo do processo democrático.

Importante transcrever, em sua extensão, as palavras desse autor que nos conduzem a crer que suas ideias se ajustam aos estudos de Habermas sobre democracia dentro da teoria da ação comunicativa:

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“A ação direta é a de grupos constituídos que estabelecem no terreno verdadeiras estruturas de ação, em função de laços, de interesses e de objetivos comunitários. Os movimentos sociais são majoritários na origem dessas estruturas. Sua ascensão eventual (e relativamente frequente) ao rol de organizações não-governamentais lhes permite participar no processo de elaboração das normas de regulação. Estas últimas são jurídicas? A distinção precedente entre governância, políticas públicas, ação direta e resolução de conflitos se confirma útil aqui: o direito, de fato, desempenha um papel mínimo na governância e na ação direta. Ele pode ter um papel mais importante nas políticas públicas e na resolução de conflitos – nas quais, repitamos, os tribunais não desempenham mais hoje o único papel, mesmo se ele permanece ainda aparentemente central nas nossas sociedades. Mas, de qualquer maneira, o direito assim evocado é um direito radicalmente diferente daquele que nos legou nossa tradição cultural, em particular pelo seu modo de produção. Ele associa cada vez mais, neste campo, a sociedade civil ao trabalho de seus governantes.[19]”  

São os novos atores que passam a, via os mais diversos modos de associação e união, impor novo ritmo na atuação dessas forças sociais, implicando na tomada de posição por partes dos indivíduos no processo democrático, exigindo as intercomunicações entre tais grupos e pessoas que se dão das mais diversas formas, dentre as quais, como já destacamos, as redes sociais, que se compõem, nesse sentido, enquanto esferas sociais esporádicas e também organizadas, a depender se compostas para motivos pontuais ou já existentes enquanto foros naturais de discussões.

Essas conversas entre os diferentes grupos e os próprios Estados-Nações, internamente, ou entre si, deve ocorrer, apesar da multiplicidade de atores. A dificuldade é se implementar, pois cada vez mais os processos decisórios se tornam complexos. 

Niklas Luhmann usa o termo “sociedade mundial”, que assevera não ser mais correto falar-se em “multiplicidade de sociedades”, sendo “evidente o fato de um contexto global de interação em escala mundial”, e para tanto cita como exemplos as áreas das relações econômicas, inovações de cunho político, avanços científicos e tecnológicos, planos nos quais há “um rápido crescimento de coerências em escala mundial”[20].

Conforme Celso Fernandes Campilongo, a “unidade do sistema global” não é ofertada em uma estrutura específica; não sendo o capitalismo, o direito internacional ou sequer a rede mundial de informática que lhe dão a unidade do sistema mundial. Essa unidade “está presente na forma de diferenciação funcional da comunicação”[21].

Assim, diferentes vertentes e meios de diálogo se abrem por conta do impacto da globalização, passando a exigir de todos os partícipes uma ativa manifestação, deixando e lado qualquer ranço de passividade.

Essa globalização comunicacional também é destacada por Tércio Sampaio Ferraz Junior, quando identifica os diferentes sentidos desse fenômeno: entremeando-se pelos diferentes sistemas (econômico, político, religioso, jurídico, cultural), pelos diversos meios de atuação (tecnológica, organizacional, comunicacional) e espaços (territorial)[22].

Em suma, não obstante as diferentes concepções ou vertentes pelas quais se possa olhar e formatar a globalização, é claro que se trata de um processo e não de algo instantâneo e pontual, apesar de ser comum atrelá-lo a um conceito mercantilista, focado na ampliação dos mercados de consumo, em virtude da presença de diferentes e grandes empresas, de natureza transnacional, aportando em diferentes localidades mundiais[23].

Mas é um processo que exige mais do que entendimentos sob a ótica econômica, política industrial, financeira e monetária; exige reais esforços de integração e diálogo cultural, humano, social[24].

Nesse ponto, o uso das redes sociais (espaços eletrônicos de encontros) poderia servir para tentar facilitar essa comunicação, visto a sua ampla inserção no mundo real. No entanto, vemos que, para além das alegações de que esse mecanismo poderia servir para isolar os indivíduos[25], cremos que ele representa uma ferramenta de absoluto e difícil controle, que, se por um lado pode ajudar, por outro pode minar qualquer tentativa de real diálogo.

Não obstante, não pode ser mais contida: está aí e não pode ser descuidada; é um campo formador de opiniões, apesar de muitas vezes replicá-la sem a menor atenção e verificação quanto à validade dos fatos postos (e postados)[26]. É nesse universo de globalização, dos mais variados matizes, e de interconexão eletrônica que se deve avaliar se a democracia participativa tem campo de atuação ampliado, posto que a esfera pública foi modificada.

Nos dizeres do professor Eduardo C.B.Bittar, “as redes sociais redefinem o sentido da política, via ciberativismo global”[27], o que implica dizer que não obstante ajustes que eventualmente tenham que ser feitos quanto às informações que circulam em tais redes, é certo que as mesmas ampliaram o espaço de atuação dos diferentes agentes ou atores sociais, exigindo uma atuação “cidadã” com viés menos “nacionalista”, focado nos problemas de uma única Nação mas, antes “transnacional”, com vistas a se ativar o poder político ínsito a esses agentes enquanto entes dotados de poder comunicativo (de agir; da práxis da cidadania ou da autodeterminação), de modo a que passem a exercer uma política globalizada.


4. CONCLUSÕES

Assim, é certo que a esfera pública ampliou-se, mas não simplesmente como mera extensão das esferas públicas dos diferentes Estados Nacionais. Há uma criação de um campo maior, que acaba por compor uma sociedade civil que vive interconectada e que tem uma visão “mundializada” dos problemas e, portanto, busca respostas a essa altura.

Valendo-nos do sentido de globalização enquanto processo, e tomando-se por panorama a necessidade de uma globalização cultural e humanizada, desfocada das premissas únicas e exclusivas do mercado (capitalistas), parece que uma teoria de democracia participativa internacional seria viável.

Para tanto, destacamos o exemplo da esfera das redes sociais eletrônicas enquanto foro periférico, no qual se formam e se debatem diferentes temas afeitos às demandas sociais. Mas deve-se procurar ter cuidado com os temas “debatidos” nesses espaços eletrônicos.

Não obstante, em sendo temas verdadeiros, embasados em fatos reais que necessitam ser levados às instâncias formais para serem debatidos e passarem a fazer parte de uma real agenda política, quais seriam os foros institucionalizados para onde se levariam tais temas para fins dessa deliberação formal?

Talvez entidades como ONU e OMC não se prestassem a esse papel, visto que já possuem campos restritos de atuação, ainda que venham a sofrer mudanças no que tange, basicamente, às suas composições.

Um foro global, ao qual se pudesse levar as demandas sociais globalizadas, com foco nas diferenças culturais e não apenas sob o prisma mercadológico, onde se pudesse exercer plenamente uma democracia mundial. Mas, ainda assim, quais as regras desse jogo democrático globalizado? Como seriam debatidas e criadas tais regras?

Como dito inicialmente, as pontuações acima são fruto de uma pequena reflexão em razão do estudo sobre os dois artigos de Habermas citados no introito deste trabalho, e, por certo, exigiriam mais aprofundamento e estudos, que não comportam os limites deste pequeno ensaio.

Servem, antes, para repensarmos o papel do cidadão “global”, para além dos muros das problemáticas nacionais, com foco no seu empoderamento via atuação comunicativa, de modo a que, real e efetivamente, procedam a modificações sociais (sejam sujeitos ativos), para além das forças do mercado e do poder administrativo, via poder da solidariedade (poder comunicativo).


5. REFERÊNCIAS

ARNAUD, André-Jean. O direito entre modernidade e globalização: lições de filosofia do direito e do Estado. Trad. Patrice Charles Wuillaume. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. 242 p.

BARBOSA, Rubens. Novo cenário internacional, O Estado de S.Paulo, São Paulo, Espaço Aberto, p. A2, 13 mar. 2012.

BITTAR, Eduardo C.B. Democracia, justiça e direitos humanos: estudos de teoria crítica e filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 2011. 268 p.

BLOTTA, Vitor Souza Lima. Habermas e o direito: da normatividade da razão à normatividade jurídica. São Paulo: Quartier Latin, 2010. 351 p.

CAMPILONGO, Celso Fernandes. Diritto, democrazia e globalizzazione. Traduzione di Elisabetta Santoro. Lecce: Pensa Multimedia, 2000. 145 p.

FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. 1ª ed., 4ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores, 2004. 359 p.

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HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. 354 p.

__________________. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. II. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. 352 p.

__________________. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução George Sperber e Paulo Ator Soethe. São Paulo: Loyola, 2002.

IZAMA, Angelo. O problema não é Kony. O Estado de S.Paulo, São Paulo, Internacional, p. A18, 22 mar. 2012.

LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito II. Tradução Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo brasileiro, 1985. 212 p.

RANIERI, Nina Beatriz Stocco. A crise financeira global fará surgir um novo Estado Nação? Sim. Jornal do Advogado, São Paulo, Ano XXXVII, n. 370, mar.2012, p. 12.

REESE-SCHÄFER, Walter. Compreender Habermas. Tradução Vilmar Schneider.3ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2010 (Série Compreender). 183 p.

REPA, Luiz Sérgio, Direito e teoria da ação comunicativa. In: NOBRE, Marcos; TERRA, Ricardo, Direito e democracia: um guia de leitura de Habermas, São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 55-71.

Sobre a autora
Andréa Silva Rasga Ueda

Advogada desde 1994, com atuação por cerca de 12 anos em escritórios e 13 anos em corporações, com grande experiência no consultivo e contencioso civil, comercial, societário, M&A, operações de finanças estruturadas e de mercado de capitais, bem como em transações imobiliárias e questões envolvendo governança corporativa e compliance. De 2007 até hoje criei e gerenciei departamentos jurídicos de empresas nacionais e transnacionais. Forte experiência no regulatório de energia (de 2007 a 2012 e 2019 em diante), de mercado de capitais e de construção de torres para suporte às antenas de empresas de telecomunicações (desde 2013). Professora da Escola Superior da Advocacia (ESA-SP), entre 2001 e 2002, na matéria de Prática em Processo Civil, bem como assistente de professor na matéria Direito Privado I e II, na Faculdade de Direito da USP, durante o ano de 2006, e professora colunista no IBijus desde maio de 2019. Graduada (1993), Mestre em Direito Civil (2009) e Doutora em Direito Civil (2015) pela USP, e Especialização em Administração de Empresas pela FGV/SP (2011). Meu site é: deaalex.wordpress.com. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/6450080476147839

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

UEDA, Andréa Silva Rasga. A participação e a deliberação democrática frente à globalização. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3340, 23 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22476. Acesso em: 22 nov. 2024.

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