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Fundamentação da sentença de pronúncia e excesso de linguagem

Agenda 25/08/2012 às 11:02

A 1ª Turma do STF anulou sentença de pronúncia tendo em vista “excesso na linguagem”, vez que o Juiz teria se manifestado acerca do mérito da causa, apontando que a autoria seria “certa” e que estaria provado ter havido crime de homicídio por motivo fútil.

A primeira turma do STF anulou sentença de pronúncia tendo em vista “excesso na linguagem”, vez que o Juiz teria se manifestado acerca do mérito da causa, apontando que a autoria seria “certa” e que estaria provado ter havido crime de homicídio por motivo fútil (STF, 1ª. Turma, RHC 103.078, rel. Min. Marco Aurélio, j. em 21.08.2012).

A decisão da Suprema Corte é realmente digna de aplausos e faz valer as cláusulas do devido processo legal com relação à imparcialidade do órgão julgador e ao Princípio da Presunção de inocência.

A sentença de pronúncia como mera decisão interlocutória relativa à admissibilidade da acusação perante o Tribunal do Júri não pode converter-se pervertidamente em manifestação de mérito que pode influenciar os juízes de fato no futuro plenário. A pronúncia, portanto, deve reduzir-se ao reconhecimento da existência do crime e de indícios de autoria. Não deve jamais invadir a esfera de mérito para afirmar “certezas” ou “provas” definitivas, eis que este não é sequer o momento adequado para tanto. Essa espécie de “excesso de linguagem”, conforme indica o decisório do E. STF, constitui espúria antecipação de julgamento com reflexos destrutivos no devido processo legal quanto à imparcialidade, à ampla defesa e, especialmente, à Presunção de Inocência. Ao Juiz na pronúncia cabe nortear-se pela devida discrição e comedimento.

Essa lição não é nova nem na doutrina, nem na jurisprudência, inclusive do Pretório Excelso:

“Por isso, não deve a pronúncia conter a exteriorização do convencimento do magistrado acerca do mérito da causa, pois isso certamente irá influenciar o ânimo dos jurados; assim, se, de um lado, está o juiz obrigado a fundamentar, por outro, prescreve a doutrina moderação nos termos empregados, sendo aconselhável consignar na decisão, sempre que houver controvérsias a respeito de pontos fundamentais, que a solução foi inspirada no desejo de deixar ao Júri o veredicto final.

O STF, no julgamento do HC 69.133 – MG, rel. Celso de Mello, concedeu a ordem para anular decisão de pronúncia que ultrapassara o mero juízo fundado de suspeita, expressando certeza de uma sentença condenatória (RTJ 140/917). Essa posição tem sido reiterada pela Suprema Corte, como se vê, por exemplo, no mais recente julgamento do HC 85.260 – RJ, rel. Sepúlveda Pertence: ‘é inadmissível a pronúncia cuja fundamentação extrapola a demonstração da concorrência de seus pressupostos legais (...) e assume, com afirmações apodíticas e minudência no cotejo analítico da prova, a versão acusatória ou rejeita peremptoriamente a da defesa’ (j. 15.02.2005, DJU 04.03.05, p. 23, Boletim IBCCrim, 150/892)”. [1]

Não se conclua, contudo, que a decisão de pronúncia, dada sua importância para o réu, possa ser despida de fundamentação. A fundamentação é uma das principais garantias do indivíduo submetido à persecução criminal. Sem ela inviável o contraditório e a ampla defesa. Mas, essa fundamentação deve limitar-se de acordo com a fase processual e o efetivo conteúdo e alcance da sentença de pronúncia, a qual não ultrapassa um juízo preliminar de admissibilidade de submissão do caso ao Tribunal do Júri que não somente é o Juiz Natural competente, mas também coberto pela soberania de suas decisões. Os contornos da fundamentação da pronúncia são dados pelos seus fins próprios e limitados de acordo com o artigo 413 e parágrafos, CPP. Como bem lembra Bonfim, “se o juiz pronunciante, em vez de proporcionar um juízo de suspeita para os jurados, concluir por um verdadeiro juízo de certeza, viola a cláusula do devido processo legal, ensejando a decretação de sua nulidade”. [2] Então, a sentença de pronúncia deve ser fundamentada e bem fundamentada, mas dentro dos estreitos limites de suas finalidades, cujo extrapolar significa ingressar no campo da nulidade processual absoluta, eis que infratora de princípios constitucionais de altíssima relevância.

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Com clareza peculiar, Silva e Freitas sumariam o devido proceder judicial na elaboração da sentença de pronúncia:

“Ao fundamentar a decisão com linguagem prudente, o juiz evita manifestação própria quanto ao mérito da acusação e se abstém de aprofundamento sobre a prova. Com redação sóbria, serena, equilibrada e comedida, influência alguma sobre os jurados exercerá, sob pena de se antecipar ao julgamento, provocando nulidade ao decisório”. [3]

É finalmente interessante destacar que o julgado sob comento aponta para a inocuidade de que após rechear o “decisum” com toda uma argumentação que indica para a certeza de condenação, vir o julgador a afirmar textualmente que se trata de mera deliberação provisória. Ou seja, dizer que “não se trata de julgamento definitivo”, mas discorrer o tempo todo fazendo uma argumentação com conteúdo claramente definitivo é uma contradição que sutilmente induz ao erro.

Como afirma o personagem Settembrini idealizado por Mann, “a palavra” é “o veículo do espírito, o utensílio e o resplandecente arado do progresso”. [4] É verdade, mas também pode ser o véu por trás do qual as mais traiçoeiras e sutis induções se ocultam. O fato também não escapou ao poeta brasileiro Drummond que já consignava no poema intitulado “A flor e a náusea”, que “sob a pele das palavras há cifras e códigos”. [5] Portanto, é possível dizer que uma decisão não é definitiva, burilando as palavras para que ela se apresente sim como tal. E é isso que não pode ser permitido na fase de pronúncia e que o STF garantiu muito bem ao anular a sentença que continha essa mácula. O Pretório Excelso enxergou “sob a pele das palavras”, decifrou suas “cifras e códigos” e aplicou o Direito ao caso concreto para estancar a mensagem ali contida, a qual poderia ferir mortalmente as garantias de um devido Processo legal. Com essa mesma palavra a Corte Suprema foi o “veículo do espírito” do Processo Penal Constitucional, fazendo de sua jurisdição (ao dizer o Direito - “juris” “dictio”) por meio da palavra, “utensílio e resplandecente arado do progresso”. Progresso esse em direção a um Estado Constitucional de Direito, sempre em processo de construção e garantia. 


REFERÊNCIAS:

ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião Drummond. 9ª. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978.

BONFIM, Edílson Mougenot. Curso de Processo Penal. 7ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

GRINOVER, Ada Pellegrini, FERNANDES, Antonio Scarance, GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades no Processo Penal. 9ª. ed. São Paulo: RT, 2006.

MANN, Thomas. A montanha mágica. Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

SILVA, Marco Antonio Marques da, FREITAS, Jayme Walmer de. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Saraiva: 2012.


Notas

[1] GRINOVER, Ada Pellegrini, FERNANDES, Antonio Scarance, GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades no Processo Penal. 9ª. ed. São Paulo: RT, 2006, p. 294.

[2] BONFIM, Edílson Mougenot. Curso de Processo Penal. 7ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 628.

[3] SILVA, Marco Antonio Marques da, FREITAS, Jayme Walmer de. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Saraiva: 2012, p. 641.

[4] MANN, Thomas. A montanha mágica. Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 157.

[5] ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião Drummond. 9ª. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978, p. 78. 

Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Fundamentação da sentença de pronúncia e excesso de linguagem. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3342, 25 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22496. Acesso em: 22 dez. 2024.

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