A primeira turma do STF anulou sentença de pronúncia tendo em vista “excesso na linguagem”, vez que o Juiz teria se manifestado acerca do mérito da causa, apontando que a autoria seria “certa” e que estaria provado ter havido crime de homicídio por motivo fútil (STF, 1ª. Turma, RHC 103.078, rel. Min. Marco Aurélio, j. em 21.08.2012).
A decisão da Suprema Corte é realmente digna de aplausos e faz valer as cláusulas do devido processo legal com relação à imparcialidade do órgão julgador e ao Princípio da Presunção de inocência.
A sentença de pronúncia como mera decisão interlocutória relativa à admissibilidade da acusação perante o Tribunal do Júri não pode converter-se pervertidamente em manifestação de mérito que pode influenciar os juízes de fato no futuro plenário. A pronúncia, portanto, deve reduzir-se ao reconhecimento da existência do crime e de indícios de autoria. Não deve jamais invadir a esfera de mérito para afirmar “certezas” ou “provas” definitivas, eis que este não é sequer o momento adequado para tanto. Essa espécie de “excesso de linguagem”, conforme indica o decisório do E. STF, constitui espúria antecipação de julgamento com reflexos destrutivos no devido processo legal quanto à imparcialidade, à ampla defesa e, especialmente, à Presunção de Inocência. Ao Juiz na pronúncia cabe nortear-se pela devida discrição e comedimento.
Essa lição não é nova nem na doutrina, nem na jurisprudência, inclusive do Pretório Excelso:
“Por isso, não deve a pronúncia conter a exteriorização do convencimento do magistrado acerca do mérito da causa, pois isso certamente irá influenciar o ânimo dos jurados; assim, se, de um lado, está o juiz obrigado a fundamentar, por outro, prescreve a doutrina moderação nos termos empregados, sendo aconselhável consignar na decisão, sempre que houver controvérsias a respeito de pontos fundamentais, que a solução foi inspirada no desejo de deixar ao Júri o veredicto final.
O STF, no julgamento do HC 69.133 – MG, rel. Celso de Mello, concedeu a ordem para anular decisão de pronúncia que ultrapassara o mero juízo fundado de suspeita, expressando certeza de uma sentença condenatória (RTJ 140/917). Essa posição tem sido reiterada pela Suprema Corte, como se vê, por exemplo, no mais recente julgamento do HC 85.260 – RJ, rel. Sepúlveda Pertence: ‘é inadmissível a pronúncia cuja fundamentação extrapola a demonstração da concorrência de seus pressupostos legais (...) e assume, com afirmações apodíticas e minudência no cotejo analítico da prova, a versão acusatória ou rejeita peremptoriamente a da defesa’ (j. 15.02.2005, DJU 04.03.05, p. 23, Boletim IBCCrim, 150/892)”. [1]
Não se conclua, contudo, que a decisão de pronúncia, dada sua importância para o réu, possa ser despida de fundamentação. A fundamentação é uma das principais garantias do indivíduo submetido à persecução criminal. Sem ela inviável o contraditório e a ampla defesa. Mas, essa fundamentação deve limitar-se de acordo com a fase processual e o efetivo conteúdo e alcance da sentença de pronúncia, a qual não ultrapassa um juízo preliminar de admissibilidade de submissão do caso ao Tribunal do Júri que não somente é o Juiz Natural competente, mas também coberto pela soberania de suas decisões. Os contornos da fundamentação da pronúncia são dados pelos seus fins próprios e limitados de acordo com o artigo 413 e parágrafos, CPP. Como bem lembra Bonfim, “se o juiz pronunciante, em vez de proporcionar um juízo de suspeita para os jurados, concluir por um verdadeiro juízo de certeza, viola a cláusula do devido processo legal, ensejando a decretação de sua nulidade”. [2] Então, a sentença de pronúncia deve ser fundamentada e bem fundamentada, mas dentro dos estreitos limites de suas finalidades, cujo extrapolar significa ingressar no campo da nulidade processual absoluta, eis que infratora de princípios constitucionais de altíssima relevância.
Com clareza peculiar, Silva e Freitas sumariam o devido proceder judicial na elaboração da sentença de pronúncia:
“Ao fundamentar a decisão com linguagem prudente, o juiz evita manifestação própria quanto ao mérito da acusação e se abstém de aprofundamento sobre a prova. Com redação sóbria, serena, equilibrada e comedida, influência alguma sobre os jurados exercerá, sob pena de se antecipar ao julgamento, provocando nulidade ao decisório”. [3]
É finalmente interessante destacar que o julgado sob comento aponta para a inocuidade de que após rechear o “decisum” com toda uma argumentação que indica para a certeza de condenação, vir o julgador a afirmar textualmente que se trata de mera deliberação provisória. Ou seja, dizer que “não se trata de julgamento definitivo”, mas discorrer o tempo todo fazendo uma argumentação com conteúdo claramente definitivo é uma contradição que sutilmente induz ao erro.
Como afirma o personagem Settembrini idealizado por Mann, “a palavra” é “o veículo do espírito, o utensílio e o resplandecente arado do progresso”. [4] É verdade, mas também pode ser o véu por trás do qual as mais traiçoeiras e sutis induções se ocultam. O fato também não escapou ao poeta brasileiro Drummond que já consignava no poema intitulado “A flor e a náusea”, que “sob a pele das palavras há cifras e códigos”. [5] Portanto, é possível dizer que uma decisão não é definitiva, burilando as palavras para que ela se apresente sim como tal. E é isso que não pode ser permitido na fase de pronúncia e que o STF garantiu muito bem ao anular a sentença que continha essa mácula. O Pretório Excelso enxergou “sob a pele das palavras”, decifrou suas “cifras e códigos” e aplicou o Direito ao caso concreto para estancar a mensagem ali contida, a qual poderia ferir mortalmente as garantias de um devido Processo legal. Com essa mesma palavra a Corte Suprema foi o “veículo do espírito” do Processo Penal Constitucional, fazendo de sua jurisdição (ao dizer o Direito - “juris” “dictio”) por meio da palavra, “utensílio e resplandecente arado do progresso”. Progresso esse em direção a um Estado Constitucional de Direito, sempre em processo de construção e garantia.
REFERÊNCIAS:
ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião Drummond. 9ª. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978.
BONFIM, Edílson Mougenot. Curso de Processo Penal. 7ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
GRINOVER, Ada Pellegrini, FERNANDES, Antonio Scarance, GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades no Processo Penal. 9ª. ed. São Paulo: RT, 2006.
MANN, Thomas. A montanha mágica. Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
SILVA, Marco Antonio Marques da, FREITAS, Jayme Walmer de. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Saraiva: 2012.
Notas
[1] GRINOVER, Ada Pellegrini, FERNANDES, Antonio Scarance, GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades no Processo Penal. 9ª. ed. São Paulo: RT, 2006, p. 294.
[2] BONFIM, Edílson Mougenot. Curso de Processo Penal. 7ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 628.
[3] SILVA, Marco Antonio Marques da, FREITAS, Jayme Walmer de. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Saraiva: 2012, p. 641.
[4] MANN, Thomas. A montanha mágica. Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 157.
[5] ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião Drummond. 9ª. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978, p. 78.