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Sobre o neoconstitucionalismo e a teoria dos princípios constitucionais

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Agenda 18/09/2012 às 17:23

No neoconstitucionalismo, a teoria dos princípios constitucionais alcança especial relevância para o discurso jurídico contemporâneo, a ser acompanhada de uma sólida teoria da argumentação jurídica, capaz de assegurar critérios de racionalidade na aplicação daquele sistema aberto.

Resumo: O estudo aborda os contornos do neoconstitucionalismo, modelo teórico que propõe a superação do conjunto de teorias que marcam o positivismo jurídico, a partir da consolidação de um modelo fundado na prevalência da Constituição, na estreita relação entre o discurso jurídico e a argumentação moral, tudo informado pela firme defesa da força normativa dos princípios constitucionais. No neoconstitucionalismo, a teoria dos princípios constitucionais alcança especial relevância para o discurso jurídico contemporâneo, a ser acompanhada de uma sólida teoria da argumentação jurídica, capaz de assegurar critérios de racionalidade na aplicação daquele sistema aberto de princípios constitucionais, essencial fator de legitimação e justificação das decisões (discurso judicial). Estas são algumas das discussões inseridas no presente estudo. Por fim, conclui-se defendendo a relevância da temática abordada, inclusive para a consolidação de uma cultura de defesa da Constituição.

Palavras-chave: Neoconstitucionalismo. Pós-positivismo jurídico. Princípios constitucionais. Argumentação jurídica.


INTRODUÇÃO

A moderna noção de constitucionalismo vem sendo marcada, preponderantemente, pelo movimento de positivação em âmbito constitucional dos princípios gerais de Direito, sobretudo após o advento do chamado Estado social de direito. O movimento migratório dos princípios jurídicos para as constituições, quer pela assunção de princípios reconhecidos pela legislação infraconstitucional, quer pela incorporação de princípios constitutivos do Direito Internacional, acaba se constituindo no traço distintivo dos modelos constitucionais contemporâneos, como serve de exemplo a Constituição brasileira de 1988 – CRFB.

A força jurídica vinculante das constituições atuais passa, de forma destacada, pela idéia de normatividade dos princípios constitucionais. Não se pode mais entender as normas constitucionais como simples ideários, expressões de anseios, aspirações de uma dada sociedade. A força normativa da Constituição é condição inarredável à própria conservação do ordenamento jurídico[1].

O movimento de constitucionalização dos princípios jurídicos coincide com a defesa doutrinária da força normativa e vinculatividade dos princípios, em contraposição às ideias positivistas que dominaram, hegemonicamente, o discurso jurídico até a primeira metade do século XX. O uso dos princípios como fonte normativa subsidiária, conforme defendido pelo positivismo jurídico, já não encontra mais guarida na teoria constitucional contemporânea. Essa é a pauta que informa o chamado pós-positivismo jurídico.


1. O NEOCONSTITUCIONALISMO E A CONSOLIDAÇÃO DO PÓS-POSITIVISMO JURÍDICO

A questão da normatividade dos princípios jurídicos guarda profunda relação com a superação do Estado liberal de direito, pautado pela lógica do positivismo jurídico, e a consolidação do “neoconstitucionalismo”, como expressão do modelo conhecido como “pós-positivismo jurídico”.

A expressão “neoconstitucionalismo” será aqui empregada com relação de sinonímia ao pós-positivismo jurídico, para caracterizar um modelo teórico que vem ganhando expressão e lastro na cultura jurídica a partir da segunda metade do século XX, baseado na superação das idéias que marcam o positivismo jurídico, principalmente no que concerne à relação de tensão entre Direito e moral[2].

Não se pode desvincular as mudanças teóricas que respaldaram a passagem do positivismo jurídico para o pós-positivismo ou neoconstitucionalismo, das profundas mudanças sociais e econômicas do fim do século XIX e do século XX. O positivismo jurídico, aqui entendido como aquela teoria jurídica que encara o direito positivo como o único objeto da “ciência jurídica” e que não admite conexão entre o Direito, a moral e a política, servia a um modelo de sociedade, o modelo liberal-individualista. Em uma sociedade marcada pela homogeneidade política e igualdade formal jurídica, o sistema normativo que melhor garante a propriedade e a liberdade de mercado é, por certo, o sistema de regras.

Com a mudança no cenário social, a consolidação dos movimentos de classe, o fortalecimento de novos atores sociais, o pluralismo político e jurídico, a heterogeneidade política da sociedade, evidencia-se a necessidade de repensar as bases teóricas do Direito. Neste sentido, fala-se em pós-positivismo, aqui entendido como a teoria contemporânea que procura enfrentar os problemas da indeterminação do Direito e sustenta a situação de estreita relação entre Direito, moral e política[3].

No Estado liberal ou “Estado de direito legislativo”, como se refere Gustavo Zagrebelski, o legislador figura como o “senhor do direito”, sendo visível uma total confusão entre lei e Direito. O Direito é o que está na lei e a justiça é o que a lei determina. Assim, o conceito de justiça importa à ordem moral e não à ordem jurídica (ZAGREBELSKI, 1995, p. 21-23). A jurisdição é pautada pela previsibilidade e segurança de um sistema fechado de regras jurídicas, que garante a propriedade privada e a liberdade de mercado para uma sociedade politicamente homogênea, típica do liberalismo clássico[4].

O modelo liberal de Estado de direito, muito embora garanta aos indivíduos um considerável nível de segurança jurídica (sistema de regras jurídicas), padece de um insuprimível déficit de legitimidade, resultado de seu sensível afastamento das preocupações com os postulados da justiça material e da igualdade substancial. A postura teórica de relegar as preocupações com os ideais de justiça e igualdade para a ordem moral, típica do positivismo jurídico, acaba por distanciar o Direito de uma de suas funções primordiais: a consecução da justiça.

O neoconstitucionalismo, por outro lado, caracteriza-se pela prevalência da Constituição. O dogma da sujeição à lei é substituído pela máxima da sujeição à Constituição, como sistema normativo aberto constituído por regras e princípios voltados à consecução da justiça material. A figura do legislador como “senhor do direito”, traço característico do Estado liberal, é superada pelo agigantamento da importância dos juízes, não como novos “senhores do direito”, situação incompatível com a própria idéia contemporânea de constitucionalismo, mas como importantes atores no processo de efetivação e concretização dos direitos fundamentais[5].

Nessa marcha histórico-evolutiva do pensamento jurídico-político, os princípios constitucionais atualmente se constituem em normas que fundamentam e sustentam o sistema, as pautas supremas e basilares do ordenamento jurídico de uma dada sociedade. Não são meros programas ou linhas sugestivas às ações do Poder Público ou dos cidadãos, mas sim vinculam e direcionam as ações daquele em proveito destes, porquanto dotados de eficácia jurídica vinculante.

Os princípios constitucionais funcionam como verdadeiros veículos de justiciabilidade do Direito, na medida em que fomentam o cultivo do sistema jurídico pelas fecundas sementes do discurso prático, da argumentação moral, reinserindo no centro do Direito as preocupações com a satisfação da justiça material. É pela via dos princípios jurídicos que as pautas morais informadoras do discurso prático invadem o ordenamento jurídico, vinculando o Direito a uma inafastável e indubitável preocupação com a justiça material, um fator de considerável mitigação daquele insuprimível déficit de legitimidade, marca indelével do Estado liberal de direito pautado pelo positivismo jurídico.


2. O CONCEITO DE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E A DISTINÇÃO ESTRUTURAL ENTRE AS REGRAS E OS PRINCÍPIOS JURÍDICOS

O conceito de princípios constitucionais passa pela noção de sistema jurídico[6], que se constitui no pilar estruturante da metodologia jurídica contemporânea, servindo de sustentáculo e base conformadora ao neoconstitucionalismo. Sistema jurídico, entendido como um conjunto de regras e princípios jurídicos que orientam determinado espaço territorial, em um dado momento histórico.

A consolidação do neoconstitucionalismo possibilitou a sedimentação da teoria da normatividade dos princípios jurídicos. Sob as bases do novo constitucionalismo, aqueles princípios gerais do Direito, destituídos de força normativa tanto no jusnaturalismo como no positivismo jurídico, correspondem aos princípios constitucionais, espécies normativas dotadas de substancialidade e aplicabilidade[7]. A idéia de princípios constitucionais está intimamente ligada à noção de fundamento, base, pressuposto teórico que orienta e confere coerência a todo o arcabouço lógico e teleológico do sistema jurídico constitucional.

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Os princípios constitucionais são normas que sustentam todo o ordenamento jurídico, tendo por função principal conferir racionalidade sistêmica e integralidade ao ordenamento constitucional. Podem ser expressos mediante enunciados normativos ou figurar implicitamente no texto constitucional. Constituem-se em orientações e mandamentos de natureza informadora da racionalidade do ordenamento e capazes de evidenciar a ordem jurídico-constitucional vigente. Não servem apenas de esteio estruturante e organizador da Constituição, representando normas constitucionais de eficácia vinculante na proteção e garantia dos direitos fundamentais.

A análise dos princípios jurídicos pode ser conduzida tanto sob o prisma funcional como o estrutural[8]. O debate acerca das funções dos princípios constitucionais será empreendido mais adiante, restando por ora o enfrentamento da temática referente à pretensa diferenciação estrutural ou morfológica das normas jurídicas em regras e princípios.

Essa concepção estrutural dos princípios constitucionais e a conformação das regras e princípios como espécies normativas distintas, segundo Robert Alexy (1993, p. 81-82), constitui “o marco de uma teoria normativo-material dos direitos fundamentais e, com isso, um ponto de partida para responder à pergunta acerca da possibilidade e dos limites da racionalidade no âmbito dos direitos fundamentais”.

A distinção das normas em regra e princípios jurídicos pode ser encarada como um dos pilares essenciais do edifício da teoria dos direitos fundamentais. No mesmo sentido, a consolidação da idéia de normatividade dos princípios jurídicos se converte em elemento significativo para uma segura e salutar transposição da teoria formal-positivista, avançando-se para o estabelecimento de uma teoria material da Constituição e dos princípios constitucionais. Resta oportuno examinar se a mencionada distinção forte ou lógica entre regras e princípios jurídicos vem sustentada por uma adequada teoria justificadora.

Sustenta Alexy que regras e princípios são normas jurídicas, porquanto ambos se formulam com a ajuda das expressões deônticas fundamentais, como o mandamento, a permissão e a proibição. Assim, as regras e os princípios jurídicos são espécies de normas que se constituem em fundamentos para juízos concretos de “dever ser”[9].

Um primeiro traço característico que pode ser tomado em conta na distinção entre regras e princípios jurídicos é a característica da fundamentalidade. Por este critério, os princípios são qualificados como as normas fundamentais do sistema jurídico, o fundamento jurídico-político de todo o ordenamento. Os princípios constituem-se nas decisões básicas e nucleares informadoras de todo o sistema, inspirando e dotando de unidade e adequação valorativa o ordenamento jurídico.

Muito embora a fundamentalidade se constitua em traço que inegavelmente sustenta certa distinção entre regras e princípios jurídicos, Prieto Sanchís (1992, p. 58-59) afasta sua utilidade como critério distintivo, sob o argumento de que as disposições fundamentais podem adotar qualquer estrutura e não, necessariamente, a forma de princípios jurídicos. Ademais, os princípios não são obrigatoriamente veiculados por meio das fontes superiores ou constitucionais, podendo até assumir um caráter implícito. Não se quer, contudo, afastar a ideia de fundamentalidade dos princípios jurídicos, apenas reconhecer sua debilidade como traço distintivo com relação às regras jurídicas.

Os critérios de distinção entre regras e princípios são consideravelmente numerosos, cabendo grande ênfase ao “critério de generalidade”, que defende os princípios como normas de um grau de abstração relativamente alto, enquanto as regras ostentam um nível de abstração relativamente baixo[10].

Há que se distinguir, primeiramente, os conceitos de generalidade e universalidade das normas jurídicas. A universalidade de uma norma não depende de sua maior ou menor generalidade, exigindo apenas que a norma seja direcionada a todos os indivíduos de uma classe aberta. Neste sentido, a noção de universalidade opõe-se à individualidade, enquanto o conceito de generalidade resta oponível à noção de especialidade. Uma norma jurídica é sempre ou bem universal ou individual, ao passo que sua generalidade ou especialidade se configura em uma questão de grau. (ALEXY, 1993, p. 83-84)

A partir de uma caracterização linguística, procura-se estabelecer os traços distintivos de generalidade e vagueza dos princípios em face das regras jurídicas. Não se pode olvidar que estes traços distintivos se constituem em “propriedades graduais que não permitem definir categorias fechadas, mas tão-somente ordenar os diversos produtos normativos em uma ampla escala de generalidade e vagueza.” (PRIETO SANCHÍS, 1992, p. 60)

O atributo da generalidade pode tanto estar vinculado ao número de sujeitos submetidos a determinado enunciado normativo como ao número de situações ligadas a certa consequência jurídica. Desta forma, a generalidade não se apresenta como um eficaz critério distintivo entre princípios e regras jurídicas, porquanto as regras também podem ser aplicadas a um número indeterminado de sujeitos e atos ou fatos jurídicos.

Não se pode negar, por outro lado, que, embora as regras possam ser estabelecidas para um número indeterminado de atos ou fatos jurídicos, vinculando a ação de uma universalidade de sujeitos, são marcadas pelo traço da especialidade, no sentido de que não regulam senão aquelas situações jurídicas determinadas. Em contrapartida, os princípios são gerais na medida em que admitem um leque infinito de aplicações.

A questão referente à vagueza da linguagem normativa representa o que se pode chamar de “insuprimível margem de indeterminação semântica”. Esta margem de indeterminação semântica “tanto pode afetar a extensão do enunciado, isto é, os objetos compreendidos dentro do mesmo (denotação) como a sua intensidade ou propriedades caracterizadoras de tais objetos (conotação)”[11].

A vagueza das normas jurídicas surge quando não se pode precisar se determinado caso concreto está ou não regulado pela disposição normativa, dada a abertura[12] e indeterminação semântica do suposto abstrato previsto na norma. Ocorre que os atributos de abertura e indeterminação semântica, embora comuns aos princípios jurídicos, também podem ocorrer nas regras jurídicas, o que afasta o critério linguístico como traço distintivo decisivo entre regras e princípios jurídicos, forçando admitir que os critérios tradicionais não conseguem respaldar uma diferenciação estrutural forte entre regras e princípios jurídicos.

Embora não se tenha, até o presente momento, alcançado parâmetros irrefutáveis sob os quais seja possível respaldar uma distinção estrutural forte entre regras e princípios jurídicos, mostra-se em tudo oportuno aprofundar a análise do pensamento jurídico de dois dos mais importantes e influentes autores contemporâneos que se ocuparam da presente temática.


3. NORMAS, PRINCÍPIOS E DIRETRIZES NA FILOSOFIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN

Desde quando começou a ser apresentada sua filosofia jurídica, na década de 1970, Ronald Dworkin vem sendo reconhecido como o maior e mais implacável crítico do positivismo jurídico. Inegavelmente, seu pensamento constitui-se na mais difundida e inquietante crítica sistematizada às bases teóricas e filosóficas das concepções juspositivistas, o que desencadeou forte reação dos seus defensores, propiciando um fecundo momento de debate para a teoria e a filosofia do Direito.

Partindo da filosofia de John Rawls (1997), sobretudo o conceito de posição original e os dois princípios de justiça, a liberdade e a igualdade, que seriam aqueles eleitos pela comunidade na posição original, Dworkin pretende construir uma teoria geral do Direito que não exclua nem o raciocínio moral nem o raciocínio filosófico, em um modelo baseado nos princípios do liberalismo individualista. Segundo sustenta Albert Calsamiglia (1989, p. 07), a filosofia jurídica dworkiniana deve ser encarada como um interessante ponto de partida tanto à crítica do positivismo jurídico como da filosofia utilitarista[13], sendo que a sua pretensão consiste em fundamentar uma filosofia política liberal sobre bases mais sólidas, progressistas e igualitárias.

No ataque às teses juspositivistas, tomando como ponto de referência o modelo hartiano, considerada a mais depurada versão do positivismo jurídico, Dworkin rechaça a separação entre Direito e moral[14], o modelo de Direito como sistema de regras, a tese da discricionariedade judicial e da impossibilidade de única resposta correta para todos os casos, defendendo a unicidade de solução justa principalmente para os chamados casos difíceis.

A filosofia jurídica dworkiniana está fundada em uma forte teoria dos direitos, que encara os direitos individuais, sobretudo o direito à igual consideração e respeito, como verdadeiros trunfos contra a maioria. Uma teoria individualista e antiutilitarista que não admite a superioridade das diretrizes políticas ou objetivos sociais ante um autêntico direito. O utilitarismo, como teoria que justifica a subordinação dos direitos individuais a finalidades coletivas e objetivos sociais, posiciona-se em sentido contraposto a uma autêntica teoria dos direitos, uma vez que “os objetivos sociais somente são legítimos quando respeitam os direitos dos indivíduos. Uma verdadeira teoria dos direitos deve dar prioridade aos direitos em face dos objetivos sociais.” (CALSAMIGLIA, 1989 p. 17)

Uma das teses centrais à filosofia jurídica de Dworkin é a fusão entre Direito e moral, com a qual o autor ataca frontalmente as bases do juspositivismo.

Esses modelos juspositivistas não ignoram que por trás de cada norma ou disposição jurídica se encontra uma opção moral ou política, nem que existe uma filosofia política anteposta à Constituição e que as decisões judiciais albergam princípios morais. O que ambos defendem é a possibilidade e a necessidade de separação entre as dimensões jurídica e moral. Para ser mais exato, sustentam que as disposições normativas não encontram seu pressuposto de validade em nenhuma filosofia política ou discurso moral, mas sim em outras disposições normativas reconhecidamente válidas, conforme previsto por uma norma hierarquicamente superior, a exemplo da norma fundamental ou da regra de reconhecimento.

Dworkin, por outro lado, afirma a inteira fusão entre Direito e moral a partir de uma teoria forte dos princípios, baseada na existência de uma distinção lógica entre regras e princípios, muito embora essa distinção não seja enfaticamente levada para o âmbito da aplicação do Direito, o que fica claro quando o autor suscita que quando se propõe uma solução para casos difíceis, pode-se também alcançar os casos fáceis.

Discutindo acerca da regra de reconhecimento de Hart e a partir do critério do apoio institucional, que pressupõe um procedimento empírico para a determinação da relevância jurídica de um princípio, Dworkin (1989, p. 128) propõe o seguinte critério de identificação do Direito: “um princípio é um princípio de direito se figura na teoria do direito mais lógica e melhor fundamentada que se possa apresentar como justificação das normas institucionais e substantivas explícitas da jurisdição em questão.”

Neste sentido, sendo admissível que uma teoria do Direito deva proporcionar uma base para o dever judicial, “então os princípios que enuncia devem justificar as normas estabelecidas, identificando as preocupações e tradições morais da comunidade que, na opinião do jurista que elaborou a teoria, fundamentam realmente as normas”[15].

Sobre a relação de justaposição entre Direito e moral na teoria jurídico-filosófica dworkiniana, Prieto Sanchís (1992, p. 79) afirma que a moral penetra no mundo do Direito por meio de um “procedimento um tanto misterioso que dá lugar a uma normatividade um tanto indiferenciada, onde princípios morais e regras jurídicas parecem constituir um sistema coerente do ponto de vista material ou valorativo”. Assim, a moral não deve ser vista como um ordenamento de normatividade apartado do Direito, que o influencia apenas pelas vias institucionalizadas do legislador, do juiz, etc. O discurso moral se apresenta justaposto ao jurídico, de forma que toda decisão jurídica encontra substrato em uma argumentação moral e toda regra institucional está ligada a um princípio moral.

Quando os princípios morais subscritos pelo juiz para justificar as normas explícitas são bons e justos, significa que o Direito em questão resulta moralmente aceitável. Se, por outro lado, estes princípios bons e justos não fazem parte da teoria do Direito mais forte, porque as normas explícitas são tão injustas que não podem ser justificadas mediante tais princípios, e mesmo assim são aplicadas pelos juízes, há que se admitir que os princípios podem ser imorais e também que o sistema jurídico vigente pode ser injusto.

Segundo se extrai da teoria dworkiniana, os princípios jurídicos valem enquanto tal porque se constituem em princípios morais que justificam o ordenamento jurídico; porque são princípios morais bons e justos que se mostram coerentes com um sistema jurídico basicamente justo. Portanto, muito embora seja possível a identificação dos princípios jurídicos válidos do sistema por meio de uma regra de reconhecimento típica do modelo hartiano, há uma sensível diferença funcional que torna incompatível tal expediente: enquanto a regra de reconhecimento serve para descrever o direito vigente e atestar a validade de práticas sociais específicas, segundo uma proposta teórica moralmente neutra e desvencilhada de propósitos de justificação[16], os princípios desenvolvidos por Dworkin servem para justificar a existência de certos deveres jurídicos baseados na existência de regras morais, uma justaposição entre Direito e moral que permite um redimensionamento do conceito de Direito. (PRIETO SANCHÍS, 1992, p. 82-86)

A concepção dworkiniana de Direito e sua justaposição com a moral está fundada em uma teoria forte dos princípios, o que resulta na defesa de uma distinção lógica ou estrita entre princípios e regras jurídicas. Após apresentar em linhas gerais o cerne das concepções positivistas e o edifício teórico que sustenta o conceito de Direito em Hart, o chamado modelo de regras, Dworkin inicia seu “ataque geral contra o positivismo”, partindo da distinção entre normas (regras)[17], princípios e diretrizes políticas.

Em determinados problemas práticos, sobretudo naqueles casos difíceis, quando os profissionais do Direito discutem e arrazoam acerca de direitos e obrigações jurídicas, acabam fazendo uso de pautas (standards) que não desempenham suas funções enquanto regras, funcionando sim como princípios, diretrizes políticas (policies) e outros tipos de standards, que não são devidamente reconhecidos pelo positivismo jurídico (DWORKIN, 1989, p. 72)

A categoria dos princípios jurídicos pode aparecer na filosofia jurídica dworkiniana com sentidos diversos: em uma acepção genérica, com referência a todo o conjunto daqueles standards que não se constituem em regras; em um sentido mais preciso, quando o termo princípio resta distinto das diretrizes políticas. As diretrizes políticas, ou simplesmente diretrizes, são aquelas pautas que estabelecem objetivos a serem alcançados, no mais das vezes ligados a aspectos econômicos, políticos ou sociais da comunidade. Os princípios, por outro lado, são pautas que devem ser observadas porque correspondem a um imperativo de justiça, de equidade (fairness) ou outra dimensão da moral positiva, e não porque potencializam ou asseguram uma situação econômica, política ou social desejável.

Voltando à distinção lógica entre princípios e regras jurídicas, Dworkin sustenta que as regras são aplicáveis à maneira de um “tudo ou nada” (all-or-nothing), ou são completamente aplicáveis ou não possuem nenhuma aplicação. Dito de outra forma, atestado que determinada questão prática atende aos pressupostos fáticos hipoteticamente previstos pela regra, sendo a mesma válida, deve ser aplicada com todas as suas consequências jurídicas. Os princípios, por outro lado, constituem-se em razões para decidir, não sendo aplicáveis automaticamente quando satisfeitas as condições previstas como suficientes a sua aplicação, característica que os confere a qualidade de critérios que devem ser levados em conta quando da decisão judicial[18].

Segundo expõe Prieto Sanchís (1992, p. 33-34), a caracterização defendida por Dworkin pode ser assimilada de duas maneiras distintas. Primeiramente, pode-se entender que, enquanto as regras são sempre aplicáveis à maneira de um “tudo ou nada”, os princípios estão limitados a orientar uma interpretação normativa duvidosa, jamais oferecendo a solução ao problema prático e sim norteando a interpretação de outras regras mais conclusivas. Assim, os princípios não possibilitariam uma resposta categórica, mas simplesmente controlariam as soluções possivelmente dedutíveis, a partir do conjunto das regras. Embora possa parecer uma interpretação até certo ponto aceitável da teoria de Dworkin, deve-se rechaçá-la não só por ser destoante dos modelos de Direito positivo contemporâneo, mas principalmente por se afastar da sua proposta teórica.

Outra forma de interpretar a distinção lógica proposta por Dworkin não leva em conta que, quando da aplicação no caso concreto, as regras são conclusivas e os princípios não, mas sim que a priori é possível discernir com precisão os casos que impõem seja observada uma regra, porquanto o ordenamento prevê todas as possíveis exceções a sua aplicação, ao passo que os princípios não podem dispor de uma cláusula desse gênero. Não se pode precisar ou catalogar as situações em que tem aplicação determinado princípio, muito menos a sua intensidade e influência na solução do caso concreto[19].

Em sentido bastante semelhante, Atienza e Juan Ruiz Manero (1991, p. 108) defendem que os princípios em sentido estrito configuram o caso de forma aberta, enquanto as regras de forma fechada. Enquanto nas regras as propriedades que conformam o caso constituem um conjunto fechado, resta impossível a formulação de uma lista completa das propriedades que constituem as condições de aplicação para os princípios. Não se trata apenas de maior ou menor espaço de vagueza, mas sim de diferentes tipos de indeterminação que afetam princípios e regras jurídicas, ainda que entre as duas espécies normativas possam existir zonas de penumbra.

Partindo da primeira qualidade distintiva que defende a aplicação das regras à maneira de um “tudo ou nada” e dos princípios enquanto razões para decidir, Dworkin sustenta outro traço distintivo caracterizado pela dimensão do peso ou importância, típica dos princípios. Quando para a resolução de determinado problema uma pluralidade de princípios se coloca em posição de conflito, há que se considerar o peso relativo de cada um deles, conferindo-se prevalência ao que apresentar maior densidade, o que não enseja a invalidação dos demais. As regras, por outro lado, não possuem a dimensão do peso ou importância e quando postas em conflito, da aplicação de uma decorre necessariamente a invalidação das demais a ela contrapostas. Os critérios para a invalidação das regras jurídicas podem variar dependendo de cada ordenamento jurídico (CRISTÓVAM, 2011, p. 222-230), podendo ser conferida prevalência à regra hierarquicamente superior, a mais recente, a mais específica ou fundada nos princípios mais importantes. (DWORKIN, 1989, p. 77-78)

Certamente, a valoração acerca do maior peso ou importância de determinado princípio em contradição com outras pautas, todos explícita ou implicitamente reconhecidos pelo ordenamento jurídico, é evidentemente inexata e amplamente controvertida. Nada obstante, Dworkin sustenta que as discussões acerca da dimensão do peso ou importância de cada princípio integram a própria essência do conceito de princípio.

A este traço distintivo Prieto Sanchís (1992, p. 40-41) apresenta algumas oposições. Argumenta que não fica muito claro se o peso dos princípios deve ser decidido em abstrato, mediante algum critério de ordenação hierárquica, ou deve levar em conta as circunstâncias do caso concreto. Sustenta, ainda, a possibilidade de uma antinomia total entre dois princípios, o que exigiria a invalidação de uma deles, à semelhança do que ocorre no conflito entre regras.

Essas críticas não conseguem invalidar as proposições dworkinianas. Ao que parece, Dworkin defende algo aproximado à relação de precedência condicionada sustentada por Alexy, afastando a idéia de uma ordenação hierárquica abstrata preestabelecida que fatalmente engessaria a dinamicidade própria dos princípios. Quanto à possibilidade de antinomia total entre princípios, o que exigiria a invalidação de umas das pautas, ainda que teoricamente possível, esse argumento não tem o condão de afastar a densidade como critério distintivo entre regras e princípios.

Outra crítica mais consistente levada a efeito por Prieto Sanchís parte da seguinte indagação: se as regras não dispõem da propriedade do peso ou importância, no caso de conflito uma deve ser necessariamente declarada inválida ou resta vedada a aplicação de ambas ao mesmo tempo? Aceitando-se a primeira assertiva, coerente com a teoria de Dworkin, não se poderia tomar a propriedade do peso como critério distintivo entre regras e princípios, uma vez que em tese estes também são passíveis de invalidação. A segunda hipótese é muito mais corrente naqueles ordenamentos em que vigora o critério da conservação das normas. Por este parâmetro pretende-se estabelecer distinções parciais nos âmbitos de aplicação das regras com sentidos deônticos contraditórios, dissolvendo a contradição a partir de um critério de especialidade ou de uma cláusula de exceção, o que se aproxima muito da dimensão do peso ou importância defendida como traço típico dos princípios[20].

Não se pode desconsiderar que a teoria forte dos princípios defendida por Dworkin (1989, p. 78-79) abre caminho para críticas consistentes, fundadas em argumentos capazes de desacreditar a pretensa distinção lógica ou estrutural entre regras e princípios jurídicos. O próprio autor admite textualmente que a forma de um standard nem sempre deixa estreme sua qualidade de princípio ou regra jurídica, havendo casos em que ambos podem desempenhar funções muito semelhantes, quando a distinção acaba se consubstanciando quase que exclusivamente em uma questão de forma.

Sobre o autor
José Sérgio da Silva Cristóvam

Professor Adjunto de Direito Administrativo (Graduação, Mestrado e Doutorado) da UFSC. Subcoordenador do PPGD/UFSC. Doutor em Direito Administrativo pela UFSC (2014), com estágio de Doutoramento Sanduíche junto à Universidade de Lisboa – Portugal (2012). Mestre em Direito Constitucional pela UFSC (2005). Membro fundador e Presidente do Instituto Catarinense de Direito Público (ICDP). Membro fundador e Diretor Acadêmico do Instituto de Direito Administrativo de Santa Catarina (IDASC). ex-Conselheiro Federal da OAB/SC. Presidente da Comissão Especial de Direito Administrativo da OAB Nacional. Membro da Rede de Pesquisa em Direito Administrativo Social (REDAS). Coordenador do Grupo de Estudos em Direito Público do CCJ/UFSC (GEDIP/CCJ/UFSC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRISTÓVAM, José Sérgio Silva. Sobre o neoconstitucionalismo e a teoria dos princípios constitucionais . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3366, 18 set. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22634. Acesso em: 24 nov. 2024.

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