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Acidente de trabalho no transporte rodoviário de cargas: responsabilidade civil objetiva do empregador

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5. Direitos violados com excesso de jornada/tempo de direção

Amauri Mascaro Nascimento destaca a existência de fundamentos econômicos, humanos, políticos e familiares para a limitação da jornada de trabalho:

Há fundamentos econômicos, uma vez que o aumento da produtividade está relacionado com o empenho satisfatório no trabalho; fundamentos humanos, porque a redução dos acidentes de trabalho está vinculada à capacidade de atenção no trabalho; bem como fundamentos políticos, porque é dever do Estado proporcionar condições satisfatórias de vida e de trabalho como meio de plena realização dos objetivos políticos. Pode-se, mesmo, incluir fundamentos de ordem familiar, uma vez que o excesso de jornada de trabalho retira o marido e a mulher do lar, em prejuízo da família[33] (grifou-se).

É evidente o atentado à vida de muitos trabalhadores nas estradas em decorrência das jornadas exaustivas impostas, fato que, além de violador de preceitos constitucionais e trabalhistas, configura condição degradante de trabalho.

Tal sujeição viola outros preceitos constitucionais fundamentais, consagrados no caput de seus arts. 5° e 6°[34], como o direito à vida, à segurança, à saúde, entre outros, expondo, além desses profissionais, toda a sociedade que faz uso das rodovias.

Ressalte-se que quando a Constituição assegura o direito à vida, deve ser interpretada com fulcro na dignidade da pessoa humana, multicitado fundamento da República Federativa do Brasil, consagrado no art. 1°, III, da Carta Maior.

A propósito da repercussão deste princípio constitucional fundamental na seara trabalhista, assevera Melo:

O princípio da dignidade da pessoa humana está consagrado na Constituição Federal (art.1º), estabelecendo que são fundamentos da República e do Estado Democrático de Direito, entre outros, a dignidade da pessoa humana. Essa dicção é complementada pelo artigo 170 da Lei Maior, que, ao tratar da Ordem Econômica, assegura a livre iniciativa, fundada, porém, na defesa do meio ambiente e na valorização do trabalho humano, de modo a se assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.

[…]

Diante disso, o valor ou princípio da dignidade da pessoa humana deve ter sentido de normatividade e cogência e não de meras cláusulas “retóricas” ou de estilo ou de manifestações de bons propósitos. Por isso, é preciso dar tratamento adequado aos instrumentos de efetivação dos direitos que poderão realmente garantir a dignidade do trabalhador e o valor verdadeiramente social do trabalho, como estabelece a nossa Carta Maior[35].

Assim, embora todos tenham direito à existência digna, isto não vem sendo respeitado com aqueles que laboram no transporte rodoviário de cargas. Acidentes de trabalho nas estradas ceifam a vida desses profissionais, normalmente arrimos, bem como de famílias que trafegam e por fatalidade se envolvem nos acidentes com caminhões.

A saúde do trabalhador é premissa indispensável e inarredável à efetivação dos demais direitos referentes à vida, ao lazer, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. E a redução dos riscos inerentes ao trabalho visando à condições mais benéficas para o seu desempenho, também encontra guarida na Constituição (art. 7°, XXII[36]).

A CLT dispõe de capítulo próprio estabelecendo normas protetoras da saúde e segurança, objetivando um meio ambiente de trabalho saudável. Além disso, são minuciosas as disposições insertas nas diversas Normas Regulamentadoras do Ministério do Trabalho e Emprego.

De modo que a promulgação da Lei 12.619/2012, soma agora a este sistema protetor do meio ambiente laboral, ao regular e disciplinar a jornada de trabalho e o tempo de direção do motorista profissional, e ao estipular um arcabouço de direitos e deveres aos motoristas no transporte rodoviário de passageiros e cargas, criando condições concretas para o exercício digno dessa profissão e a proteção a um bem maior: as vidas daqueles que trafegam diariamente pelas rodovias brasileiras.

Dentre tais medidas, que retiram os trabalhadores de um limbo jurídico, no qual estavam privados desses direitos, destacam-se:

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- Rígido controle de jornada pelo empregador e observância, pelo empregado, das normas relativas ao tempo de direção e de descanso[37];

- Duração do trabalho não superior a oito horas diárias, admitida a prorrogação da jornada por até 2 horas extraordinárias, mediante acréscimo previsto na Constituição ou compensação[38];

- Intervalo intrajornada de no mínimo uma hora, intervalo interjornada de onze horas e descanso semanal de 35 (trinta e cinco) horas[39];

- Intervalo mínimo de 30 minutos para descanso a cada 4 horas de tempo ininterrupto de direção nas viagens de longa distância[40]

A proteção conferida no Estatuto do Motorista Profissional assegura condições mínimas a um meio ambiente laboral saudável e humaniza o lucro visado pelo empregador, que não poderá impor metas irracionais para entrega de cargas, nem promover excesso de tempo de direção e jornada.


6. Responsabilidade civil objetiva no transporte rodoviário de cargas: teoria do risco da atividade

Repise-se que a Carta Republicana de 1988 protege o trabalho humano da exploração desmedida do capital, ao erigir como fundamentos da República, no art.1º, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho.

Todos os objetivos fundamentais da República consubstanciados no art. 3º repelem este tipo de prática, e o rol de direitos sociais conferidos ao trabalhador nos arts. 6º e 7º resguardam a proteção mínima a ser dispensada aos que necessitam vender sua força de trabalho para sobreviver.

Desta forma, o lucro fácil obtido na redução indevida de custos da mão de obra mediante precarização das condições de trabalho encontra vedação certa nos princípios constitucionais e direitos sociais aplicáveis ao Direito do Trabalho.

Por muito tempo, a doutrina e jurisprudência se inclinaram pela teoria da responsabilidade subjetiva, na qual incumbia ao trabalhador a prova dos três elementos substanciais conformadores do suporte fático da reparação civil decorrente de acidente de trabalho.

Por esta via, o artigo 7º, XXVIII, da Constituição Federal[41] preconiza que o empregador é responsável pelo pagamento de indenização decorrente de acidente de trabalho quando incorrer em dolo ou culpa. Assim, percebe-se que a Constituição Federal adota, via de regra, a teoria da responsabilidade civil subjetiva do empregador pelo pagamento de indenização decorrente de acidente de trabalho. Hodiernamente, porém, com fulcro no art. 927, parágrafo único, do Código Civil Brasileiro[42], tem-se admitido a responsabilidade civil objetiva do empregador como exceção, nos casos em que há o exercício de atividade perigosa ou de risco acentuado, ou nos casos especificados em lei.

E tendo em vista a situação alarmante no Brasil quanto aos acidentes do trabalho, face ao número absurdo de ocorrências anuais e as dificuldades de fiscalização quanto à segurança no trabalho e, ainda, as dificuldades de prova que acabam causando flagrantes injustiças, para a espécie deve ser aceita a posição mais moderna da doutrina e jurisprudência, que defende a responsabilidade civil objetiva, que se fundamenta na “teoria do risco criado”, ou seja: a reparação do dano é devida em decorrência da criação do risco e não apenas da culpa ou do dolo. No particular, o risco excepcional presente na atividade econômica de transporte rodoviário de cargas acarreta, por si só, o dever de indenizar, em casos de acidentes do trabalho.

Neste sentido, o item 60.26-7, do quadro I, da NR-4 considera a atividade de transporte rodoviário de cargas como de alto risco (grau 3), como também o Decreto 6.042/07, em seu anexo V, itens 4930-2/01 e 4930-2/02, estipula a alíquota máxima (3%) a ser aplicada para o financiamento dos benefícios pagos pela Previdência Social decorrentes dos riscos ambientais do trabalho na atividade em tela.

A própria diversificação das relações de trabalho demonstrou que a prova imposta àquele que não detém melhor aptidão de fazê-lo, em razão da subordinação inerente entre empregado e empregador, é de tal monta onerosa e dificultosa ao trabalhador que praticamente inviabiliza o alcance da indenização a que possa fazer jus, ainda que demonstrados presentes e efetivos o dano e o nexo de causalidade.  Mas é muito mais evidente a impropriedade da responsabilidade subjetiva nos casos em que a culpa é de terceiros, nos acidentes nas estradas, quando restaria inviável a indenização ao trabalhador motorista, embora o risco de exposição ao sinistro, comprometendo o próprio acesso à justiça e a dignidade da pessoa humana.

Atividades como a do motorista profissional impõem ao trabalhador riscos que não podem ser elididos, por maior boa vontade e cuidados que tenha o empregador, pois a possibilidade de acidente é inerente. Por outras palavras, o acidente de trânsito é uma presença constante para quem faz da estrada o seu ganha-pão: por falha mecânica, humana ou de terceiros, é um risco que pode ser atenuado (mediante melhoria das rodovias, manutenção adequada dos veículos, equipamentos de proteção do habitáculo, jornadas razoáveis, tempo de direção limitado, etc.), mas jamais eliminado.

Como na responsabilidade objetiva não se cogita da imputabilidade nem se investiga a antijuridicidade do fato danoso, o que importa para assegurar o ressarcimento é a verificação se ocorreu o evento em função da atividade e se dele emanou o prejuízo. Em tal ocorrendo, o autor da atividade causadora do dano é o responsável.

Uma vez configurada a responsabilidade objetiva do empregador, faz-se dispensável a apuração e/ou a presença de culpa deste, exigindo-se do empregado, tão-somente, a prova do dano e do nexo de causalidade entre o dano (acidente de trabalho) e o trabalho, ressalvada a hipótese de culpa exclusiva do empregado, fato fortuito ou força maior.

Nessa linha, Pontes de Miranda[43] leciona: “Uma vez que o acidente ocorreu 'pelo fato do trabalho' ou 'durante' o trabalho', vinculado fica o patrão a pagar indenização ao operário ou à sua família”.

O art. 14, § 1º, da Lei 6.938/81(Lei do Meio Ambiente), dispõe que o poluidor é obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros afetados por sua atividade[44]. Nesse sentido, é o magistério de FRENEDA:[45]

A degradação no ambiente de trabalho, resultante de atividades que prejudicam a saúde, a segurança e o bem-estar dos trabalhadores, ocasiona poluição, impondo ao poluidor, a obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados, independente da existência de culpa.

O princípio ambiental do poluidor-pagador é plenamente aplicável ao meio ambiente de trabalho, já que este constitui espécie daquele, consoante disposição do art. 200, VIII, da Constituição da República[46]. Sendo o meio ambiente de trabalho do motorista resultante da interação entre a própria estrada e o veículo, o qual detém dimensões e características de potencial lesivo (poluição), ocorrendo acidente de trabalho, também por este fundamento deve responder o empregador de forma objetiva.

Portanto, por múltiplas razões a adequada tutela ao direito de ressarcimento do sinistro na atividade de transporte rodoviário de cargas deve ser instrumentalizada pela responsabilidade objetiva – uma vez decorrendo o dano da própria natureza da mesma é cabível a teoria do ônus pelo bônus, isto é, ante o lucro que obtém o empregador com a atividade, também é dele o ônus de suportar as consequências do risco de causar danos a terceiros, dentre eles, o trabalhador motorista.

De modo que a obrigação de reparar, independentemente de dolo ou culpa, para o empregador do transporte rodoviário de cargas, estará sempre presente, quer se cuide de responsabilidade decorrente de risco criado (falta de manutenção do veículo, por exemplo) ou de risco inerente ou inafastável da própria atividade (v.g., condições inseguras das estradas, potencialidade lesiva dos veículos).

É como se inclina a jurisprudência, conforme as seguintes decisões do Tribunal Superior do Trabalho, iterativas quanto à responsabilização do empregador independentemente de dolo ou culpa, quanto a acidentes do trabalho nas rodovias:

De acordo com a teoria do risco, portanto, é responsável pelo risco aquele que dele se beneficia ou o cria, pela natureza de sua atividade. Na hipótese, Ré contratou o trabalhador para prestação dos serviços de motorista. Entre os riscos inerentes a essa atividade estão envolvimento em acidentes automobilísticos, ainda que causados por outrem. Por esse motivo, em razão da teoria do risco, o empregador deve ser responsabilizado pelos prejuízos causados ao empregado que exerce a função de motorista []. Assim,o envolvimento do trabalhador no acidente que o vitimou decorreu do exercício da atividade de motorista, para as quais fora contratado, e, portanto, encontra-se dentro do risco assumido pelo empregador ao contratá-lo. Nesses termos, o falecimento do empregado relaciona-se umbilicalmente ao risco assumido pela Recorrida ao firmar o contrato de trabalho, sendo ela responsável pela indenização aos herdeiros do empregado. Restando demonstrados o dano moral (morte do empregado) e o nexo de causalidade (dano relacionado com o contrato de trabalho), são devidos os danos morais e materiais. Desnecessário é o exame da culpa, pois na hipótese é aplicável o disposto no art.927, parágrafo único, do Código Civil, sendo a empresa responsável pelos riscos oriundos do contrato de trabalho[47] (grifonosso).

RECURSO DE REVISTA. INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. ACIDENTE DE TRÂNSITO. TRANSPORTADORA. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. Se existe nexo de causalidade entre a atividade de risco e o efetivo dano, o empregador deve responder pelos prejuízos causados à saúde do empregado, tendo em vista que a sua própria atividade econômica já implica situação de risco para o trabalhador. Assim, constatada a atividade de risco exercida pelo autor, não há como se eliminar a responsabilidade do empregador, pois a atividade por ele desenvolvida causou dano ao empregado, que lhe emprestou a força de trabalho. Recurso de revista conhecido e desprovido[48].

Portanto, os trabalhadores do transporte rodoviário de cargas estão inseridos em um ambiente laboral extremamente perigoso e de alto potencial de lesividade (caminhões), fruto da interação entre o meio ambiente dinâmico (veículo) com o estático (rodovias e locais de parada, clima, relevo, etc.), com potencialização geométrica do risco de sinistralidade quando somada a estes fatores a exigência de sobrejornada e excesso de tempo de direção - o que se espera venha a ser reduzido no futuro pelo efeito coibitivo da Lei 12.619/12, tratando-se o problema em sua causa direta e não só na consequência (responsabilização).

E para minimizar consequências no caso de sinistros, ante o alto risco da atividade econômica em questão, o bom senso recomenda, no mínimo, a contratação de um adequado seguro de vida aos trabalhadores para que, em caso de sinistro, o motorista e familiares não fiquem à míngua.

Sobre os autores
Fernando Parabocz

Graduando em Direito pela UNOESC – Universidade do Oeste de Santa Catarina, estagiário do Ministério Público do Trabalho – Procuradoria do Trabalho no Município de Chapecó (SC).

Marcelo José Ferlin D'Ambroso

Procurador do Trabalho da 12ª Região (Santa Catarina), pós graduado em Trabalho Escravo pela Faculdade de Ciência e Tecnologia da Bahia

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PARABOCZ, Fernando; D'AMBROSO, Marcelo José Ferlin. Acidente de trabalho no transporte rodoviário de cargas: responsabilidade civil objetiva do empregador. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3369, 21 set. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22649. Acesso em: 22 dez. 2024.

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