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A personalidade jurídica dos embriões excedentários e a dignidade da pessoa humana

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Agenda 13/10/2012 às 08:00

O embrião humano produzido por fertilização in vitro e não utilizado no respectivo procedimento é dotado de personalidade jurídica e, portanto, sujeito de direitos, passível de tutela pelo princípio da dignidade humana?

Sumário: INTRODUÇÃO. 1 CAPÍTULO – Bioética, Reprodução Assistida e Embriões Excedentários. 1.1 Bioética: Aspectos Conceituais Introdutórios. 1.1.1 Os Princípios da Bioética. 1.1.1.1 Princípios da Beneficência e da Não-Maleficência. 1.1.1.2 Princípio da Autonomia. 1.1.1.3 Princípio da Justiça. 1.1.1.4 Princípio da Alteridade. 1.2 O Biodireito – A 4ª Dimensão de Direitos. 1.3 Breves Noções de Embriologia Humana - o Início da Vida. 1.4 Evolução Histórica e Noções Gerais sobre as Técnicas de Reprodução Humana Assistida. 1.4.1 Evolução Histórica. 1.4.2 Espécies de Reprodução Humana Assistida – RHA. 1.4.2.1 Fertilização in vivo. 1.4.2.2 Fertilização in vitro. 1.4.2.2.1 Fertilização in vitro convencional (FIV). 1.4.2.2.2 Micromanipulação: Injeção Intracitoplasmática de Espermatozóide (ICSI) e Injeção Subzonal de Espermatozóides (SUZI). 1.5 Quem são os Embriões Excedentários?. 1.6 A Disponibilidade do Embrião Excedentário: possíveis destinações. 1.6.1 Proibição de Supranumerários. 1.6.2 Criopreservação. 1.6.3Destruição pura e simples. 1.6.4 Doação para Pesquisas: Células-Tronco e Clonagem Terapêutica. 1.6.5 Doação para outro Casal e Comercialização de Pré-Embriões. 2 CAPÍTULO – o início da personalidade jurídica do embrião. 2.1 A Retomada Antropológica. 2.2 A Aquisição da Personalidade Natural. 2.2.1 Teoria Concepcionista. 2.2.1.1 Teorias da Singamia e da Cariogamia. 2.2.2Teoria do Pré-embrião. 2.2.2.1 Nidação. 2.2.2.2 Linha Primitiva. 2.2.2.3 Indivisibilidade. 2.2.3 Teoria da Gestação ou da Viabilidade. 2.2.4 Teoria da Personalidade Condicional. 2.2.5 Teoria Natalista. 3 CAPÍTULO – A Normatização da situação dos embriões excedentários. 3.1 Os embriões excedentários nos documentos internacionais. 3.1.1O Código de Nuremberg (1947). 3.1.2A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). 3.1.3Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948). 3.1.4 A Declaração de Helsinke (1964). 3.1.5 Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966). 3.1.6 Convenção Americana de Direitos Humanos (1969) - Pacto de São José da Costa Rica. 3.1.7 Convenção sobre os Direitos da Criança (1989). 3.1.8 A Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos (1997). 3.1.9 Declaração Ibero-Latino-Americana sobre Ética Genética – Declaração de Manzanillo (1996 - 1998). 3.1.10Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos (2003). 3.2 Panorama Legislativo Brasileiro. 3.2.1 A Constituição da República de 1988. 3.2.2 Aspectos destacados da Legislação Civil e Processual Civil. 3.2.2.1 O art. 2º do CC/02. 3.2.2.2 A Presunção de Filiação e as Omissões do Direito Sucessório. 3.2.2.3RA Homóloga e Heteróloga. 3.2.2.4 Da Posse em Nome do Nascituro. 3.2.3O Estatuto da Criança e do Adolescente. 3.2.4 Aspectos Penais. 3.2.5A Lei de Biossegurança – Lei nº 11.105 de 2005. 3.2.5.1 Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.510/2005. 3.2.5.1.1 A Audiência Pública no Supremo Tribunal Federal. 3.2.6 Projetos de Lei de Iniciativa do Senado Federal. 3.2.6.1O Projeto de Lei nº 90/1999. 3.2.7 Projetos de Lei de Iniciativa da Câmara dos Deputados. 3.2.7.1 O Projeto de Lei 2.855/1997. 3.2.7.2 O Projeto de Lei 1.135/2003. 3.2.7.3 O Projeto de Lei 4.555/2004. 3.2.7.4 O Projeto de Lei 4.664/2004. 3.2.7.5 O Projeto de Lei 489/2007. 3.2.8 Orientações Éticas do Conselho Federal de Medicina. 3.2.8.1 Resolução nº 1.358, de 1992, do Conselho Federal de Medicina. 4 CAPÍTULO – O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e a Problemática dos Embriões Criopreservados. 4.1 Evolução Histórica da Noção de Dignidade da Pessoa Humana. 4.2 Conceito e abrangência do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. 4.3 A Tridimensionalidade do Direito e a Dignidade da Pessoa Humana como Valor. 4.4 Proporcionalidade e Colisão de Direitos Fundamentais. 4.4.1 Liberdade Científica versus Dignidade da Pessoa Humana. 4.4.2 Liberdade dos Beneficiários versus Indisponibilidade da Vida e da Integridade Física. 4.5 Embrião Excedentário: sujeito ou objeto de direitos?. 4.5.1 A “Reificação” do Concepto. 4.5.2 O Concepto como Pessoa Humana. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS. glossário. Anexos. Anexo I – Lei de Biossegurança. Anexo II – Projeto de Lei nº 489/2007. Anexo III – Teorias do Início da Vida Passível de Tutela.


INTRODUÇÃO

A produção científica da humanidade na área biotecnológica evolui em ritmo acelerado. Naturalmente, a sociedade precisa estar atenta a esta nova realidade, pois inevitáveis conflitos de interesses tendem a ganhar força. A mitigação destas lides somente dar-se-á a partir de uma reflexão ético-jurídica conjunta e consciente. Nesta esteira, o Direito, como ciência social e multidisciplinar que é, não pode permanecer inerte.

Os avanços da biotecnologia na área da reprodução humana assistida são uma realidade inexorável. A sociedade pós-industrial tem um anseio muito grande pelo “novo”, e cada vez mais capacidade técnica para interferir em aspectos que antes estavam além de sua esfera de ingerência.

Fertilização in vitro homóloga ou heteróloga e criopreservação de embriões são técnicas cada vez mais corriqueiras. Casais que outrora estavam destinados à infertilidade, hoje podem recorrer a estas técnicas para exercer seu direito constitucional ao planejamento familiar.

Contudo, a manipulação extra corporis de embriões envolve uma série de aspectos jurídicos muito delicados, e por vezes inexplorados, especialmente no que tange aos excedentários, ou seja, aqueles embriões que não são implantados de plano no útero ou trompas de falópio da mulher e são preservados através de técnicas especiais de crioconservação para eventual utilização.

Tendo isto em mente, desenvolveu-se a presente pesquisa a partir do seguinte problema: O embrião humano produzido por fertilização in vitro e não utilizado no respectivo procedimento é dotado de personalidade jurídica e, portanto, sujeito de direitos, passível de tutela pelo princípio constitucional da dignidade da pessoa humana?

Precipuamente, as hipóteses levantadas foram as seguintes: O embrião humano criogenado é um ser humano passível de proteção jurídica; a legislação infraconstitucional fornece uma tutela jurídica ao embrião/feto implantado no útero materno divergente daquela oferecida ao embrião criogenado em estado pré-implantatório; o direito civil brasileiro adota a teoria natalista, vinculando a aquisição da personalidade ao nascimento com vida; e, por fim, a teoria natalista não se coaduna com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana que é amplo e irrestrito, atinente a todos os seres humanos pelo simples fato de serem humanos.

A partir de uma metodologia dedutiva delineia-se uma abordagem genérica sobre bioética, reprodução assistida e teorias sobre o início da vida, passando pela análise da personalidade jurídica e legislação específica para, enfim, analisar o tema delimitado, qual seja, o princípio da dignidade da pessoa humana e a problemática dos embriões criopreservados.

Tal encaminhamento almeja investigar a possibilidade do embrião humano excedentário ser dotado de personalidade jurídica e passível de proteção pelo Direito. Eis o objetivo geral da pesquisa em comento.

No que concerne aos objetivos específicos, pode-se mencionar: Conhecer aspectos gerais relativos ao biodireito e à reprodução humana assistida; delimitar conceitos a respeito da nomenclatura técnica envolvida; identificar as circunstâncias jurídicas que norteiam a tutela do embrião excedentário; enumerar as principais teorias a respeito do início da personalidade; verificar a legislação brasileira conexa ao tema, em especial a Constituição da República, o Código Civil e a Lei nº 11.105/2005 - Lei de Biossegurança - no que forem pertinentes; analisar os projetos de lei e as resoluções do Conselho Federal de Medicina atinentes aos embriões que não são imediatamente implantados no útero materno; Comparar a espécie de proteção jurídica fornecida ao nascituro (embrião implantado) e ao embrião em estado pré-implantatório; compreender o conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana e sua aplicação ao embrião em estado pré-implantatório;

É de boa valia mencionar que aspectos relacionados à bioética, à reprodução assistida e aos diferentes destinos dados aos embriões excedentários serão abordados no capítulo inaugural do presente trabalho.

Há, como conseqüência, certa indefinição no que tange à tutela jurídico-constitucional dos embriões que “sobram” nas clínicas de reprodução assistida. A dificuldade começa em definir a partir de que momento inicia-se a vida humana, o que pressupõe a adoção de uma das diversas correntes (critério genético, embriológico, neurológico, entre outros). Definido o marco inicial, há que se investigar se o embrião, ainda que criogenado, é sujeito de direitos e, portanto, passível de proteção constitucional tanto quanto uma criança ou um adulto. Para tanto, o 2º capítulo trata de investigar o início da personalidade jurídica do embrião humano.

Apesar da polêmica que envolve a matéria, em 24 de março de 2005 o Congresso Nacional decretou e o Presidente da República sancionou a Lei 11.105, conhecida como Nova Lei de Biossegurança. O art. 5º da referida Lei autoriza a utilização de embriões excedendários, produzidos por fertilização in vitro, inviáveis ou congelados na data da publicação, quando completarem três anos, para extração de células-tronco embrionárias com fins de pesquisa e terapêuticos, o que implica morte.

A comunidade jurídica precisa estar atenta a certos aspectos temerários do ordenamento jurídico brasileiro no que tange à reprodução assistida, pois o direito deve servir como guia em uma área na qual qualquer desvio de conduta pode por termo a uma vida humana com plenas potencialidades de desenvolvimento.

Neste sentido, o 3º capítulo procura traçar um panorama do que já se produziu em documentos internacionais, bem como no ordenamento jurídico brasileiro relacionado à tutela dos embriões. Ademais, os projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional e as orientações éticas atinentes à matéria serão apresentados neste momento.

Por fim, o derradeiro capítulo 4º trata do princípio da dignidade da pessoa humana. Traçar-se-á a evolução histórica deste princípio de forma a elucidar seu atual significado e abrangência como embasamento para definir se o embrião excedentário é um objeto ou uma pessoa.

Em se considerando que o embrião excedentário é dotado de vida e abrangido pelo princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, é possível admitir que ele seja descartado ou utilizado para pesquisas? Ou por outra, o embrião em estado pré-implantatório é um objeto ou uma pessoa? Procurar-se-á responder a tal questão à luz do princípio da dignidade da pessoa humana.


1. Bioética, Reprodução Assistida e Embriões Excedentários

“Restabelece-se a discussão sobre os limites da técnica e a função da ética nesse contexto, o que repercute finalmente sobre o Direito, pressionando-o a consolidar as reflexões da Bioética, e a dar novos sentidos aos conceitos atingidos pelas descobertas técnico-científicas” (Maria Auxiliadora Minahim).

A análise da problemática que envolve os embriões excedentários não pode ocorrer sem que algumas considerações sejam tecidas sobre a bioética, seus princípios e sua influência informativa em um novo ramo da ciência jurídica chamado Biodireito[1].

Na seqüência, far-se-á uma breve retomada da relação histórica da humanidade com aspectos ligados à (in)fertilidade. Tal panorama é relevante para que se compreenda o contexto em que se inserem as técnicas contemporâneas de Reprodução Humana Assistida – RHA e os conflitos biotecnológicos a ela inerentes.

Por fim, falar-se-á sobre os embriões em estado pré-implantatório e suas possíveis destinações.

1.1. Bioética: Aspectos Conceituais Introdutórios

Muito se tem falado em um novo ramo do conhecimento denominado bioética.

Na verdade, como salienta Giovani Berlinguer (apud Fernandes, 2000, p. 31), apesar da palavra bioética ser relativamente recente, seus temas têm uma longa história. Tal fato é comprovado, por exemplo, pela experimentação em seres humanos, a qual já ocorre há séculos.

Mas afinal, o quem vem a ser a bioética? De acordo com Moreira Filho (2005, sp), o termo bioética surgiu na obra de 1971 do oncologista americano Potter Van Rensselaer, ‘Bioética: ponte para o futuro’, mencionando uma disciplina que seria uma ponte entre a busca de qualidade de vida e os avanços da ciência[2].

“Os conflitos existentes entre a Ética, o Direito e a Medicina são interrogações básicas da Bioética. O ser humano é, ao mesmo tempo, um ser biológico, produto da natureza, e um ser social, produto da cultura” (CATÃO, 2004, p. 28).

Para Lina Saheki e João Cremasco (2007, sp), a finalidade maior da bioética é refletir sobre a influência do avanço da ciência em aspectos morais e sociais. Tal reflexão se faz a partir da análise dos problemas éticos enfrentados pelos envolvidos com a medicina e pesquisas relacionadas com os extremos da vida humana[3].

Volnei Ivo Carlin define bioética como a “regulamentação das novas práticas biomédicas, envolvendo três categorias de normas: deontológicas, jurídicas e éticas, que exigem comportamento ético nas relações da biologia com a Medicina e o Direito” (CARLIN, 2007, sp).

Faz-se relevante mencionar que Cristian de Paul Barchifontain (apud FERNANDES, 2000, p. 35) defende que bioética é um “grito de resgate da dignidade da pessoa humana em face dos progressos técnico-científicos na área da saúde” assim como das condições de vida sócio-econômico-políticas, através de um diálogo multidisciplinar e pluralista”.

Soares e Piñero citados por Minahim (2005, p. 29) afirmam que “enquanto a ética está voltada para a investigação histórico-social do comportamento moral, a Bioética está voltada para orientar atitudes concretas em face de algumas situações humanas”.

A UNESCO, em seu Avant-Projet de déclaration relative à dês normes universelles em matière de bioéthique[4], de fevereiro de 2005, define:

A bioética se refere ao estudo sistemático, pluralista e interdisciplinar e à resolução de questões morais envolvendo a medicina, as ciências da vida e as ciências sociais aplicadas aos homens e suas relações com a biosfera e compreende, ainda, as questões ligadas à disponibilidade dos avanços das ciências e de suas aplicações tecnológicas, assim como à sua acessibilidade (SILVA, 2006, p. 237).

Através de um diálogo multidisciplinar, pluralista e democrático, Christian de Barchifontaine traduz a bioética como “uma resposta consistente na noção de dignidade da pessoa humana contra os avanços biotecnológicos [...]” (GAMA, 2003, p. 39).

O caráter eminentemente pragmático da bioética é trazido à tona por diversos autores[5].

Considerando que a bioética dedica-se a nortear situações concretas, constitui um significativo espaço de diálogo entre religião, direito e moral, permitindo o preenchimento de lacunas jurídico-normativas através de seus princípios.

Explica Ana Paula Clemente (2005, sp) que antes da descoberta do DNA, diagnósticos eram feitos a partir da análise dos cromossomos (contagem, coloração, tamanho) de forma a identificar anomalias nas mitoses e meioses que acarretassem síndromes genéticas. Com isso, dilemas bioéticos começaram a surgir: diante de um diagnóstico de anomalia genética do feto, grande parte das gestantes opta por interromper a gestação, o que juridicamente não deixa de ser aborto.

O debate ficou ainda mais acirrado quando a descoberta de Watson e Crick permitiu que cientistas utilizassem material biológico (cabelos, sangue, sêmen, saliva) para fornecer informações fidedignas sobre uma pessoa. Era a sacralização do exame de DNA que, na década de 1980, causou uma verdadeira revolução nos diagnósticos genéticos (CLEMENTE, 2005, sp).

Por certo tempo o mundo jurídico valeu-se do exame de DNA como prova única e praticamente inquestionável nas investigações de paternidade. Contudo, diante das novas técnicas de reprodução assistida há a necessidade de uma quebra de paradigmas, colocando-se em dúvida inclusive a certeza da maternidade[6].

Tais situações servem para trazer à baila um dos desafios impostos pela biotecnologia na pós-modernidade: a superação do dogma iluminista de que a ciência proporciona o conhecimento absoluto da verdade, pois hoje se sabe que todo conhecimento é transitório e superável (MINAHIM, 2005, p. 23).

Tendo isso em mente, é preciso considerar que a sociedade pós-industrial tem como combustível o anseio pela novidade e a superação do antigo.

Certas situações pontuam a rapidez das transformações e sua repercussão nas normas jurídicas, como ocorreu com a inseminação artificial heteróloga, cuja prática, no código penal de 1969, foi considerada crime punível como pena superior ao adultério. Hoje, não só se anuncia a possibilidade de escolha de caracteres do futuro bebê e o descarte dos não desejados, como se reconhecem como concebidos na constância do casamento, os filhos havidos pelo mesmo procedimento, desde que autorizada a prática pelo marido (art. 1.595 [sic][7] do Código Civil brasileiro, Lei 10.406/2002). As clínicas que geram embriões em laboratórios apresentam-se como aliadas dos casais inférteis, anunciando a qualidade e a diversidade do material germinal que dispõem (MINAHIM, 2005, p. 23, grifou-se).

Contudo, em que pese o alto grau de adaptação das pessoas para com as novidades tecnológicas, a humanidade encontra considerável insegurança e dificuldade em lidar com aspectos ligados à biotecnologia, à medicina e à genética, porquanto colocam em xeque conceitos e valores pré-estabelecidos sobre a própria espécie humana (MINAHIM, 2005, p. 23).

Dessarte, a bioética consolidou-se como uma resposta aos novos paradigmas que a pesquisa científica envolvendo os limites da vida trouxa à tona. “Desde a barbárie nazista, até os recentes experimentos no campo da manipulação genética [...], a discussão bioética foi suscitada quando percebeu-se que o rumo dos acontecimentos [...] poderia levar a conseqüências graves e indesejadas” (SAHEKI; CREMASCO, 2007, sp).

À bioética de fronteira[8] cumpre estar atenta aos avanços biotecnológicos que envolvam os momentos iniciais da vida humana. Antes mesmo de o Direito se manifestar sobre as novas problemáticas oriundas dos avanços científicos, a matéria passa por discussões no campo da bioética. Minahim (2005, p. 29) chama a atenção para o fato de que a ética “sempre foi ponto de encontro de saberes como o Direito, a moral e a religião”.

Marconi Catão (2004, p. 29) comunga do entendimento de que o progresso científico ocorre normalmente adiante do Direito. Para o autor, esta desproporção de avanços origina um vácuo legislativo que dá espaço para reflexão e propostas de filósofos, médicos e juristas.

Em última instância, o Direito não é convocado apenas para prescrever proibições ou estabelecer distinções entre o bem e o mal no uso das novas tecnologias; ele serve para acolher as mudanças e materializar os conceitos norteadores das condutas desenvolvidas no debate bioético (MINAHIM, 2005, p. 29).

As técnicas de reprodução assistida trazem consigo uma grande carga de problemas éticos para os quais o nosso ordenamento jurídico ainda não oferece soluções adequadas. Alguns chegam a afirmar que o progresso científico e técnico no campo da procriação humana pode se traduzir na revolução mais profunda que o direito já sofreu até hoje. Isso porque institutos e conceitos jurídicos como a paternidade, a maternidade e a personalidade serão relativizados, assim como a própria concepção de família (PUSSI, 2005, p. 279, grifou-se).

Tem-se, pois, a bioética como uma ciência informativa apta a auxiliar o direito na difícil função de estabelecer normas que, direta ou indiretamente, tratam de limitar ou permitir intervenções sobre vidas humanas.

1.1.1. Os Princípios da Bioética

O trato com os embriões humanos deve ser norteado pelos princípios gerais da bioética. Desta forma, será possível desenvolver um marco jurídico que atribua aos excedentários tratamento condizente com a dignidade da pessoa humana.

1.1.1.1. Princípios da Beneficência e da Não-Maleficência

Por se tratarem de princípios complementares, abordar-se-ão os princípios da beneficência e da não-maleficência em um único tópico.

O princípio da beneficência está intimamente relacionado com o objetivo maior da medicina, que é promover o bem. O que se almeja, acima de tudo, é o bem-estar do paciente (LOUREIRO, 2006, p. 17).

Porém, não basta buscar o bem, é preciso impedir que seja causado o mal.

“O princípio da não-maleficência significa que jamais se deve causar algum mal ao paciente. É a garantia de que danos previsíveis serão evitados ao embrião” (LOUREIRO, 2006, p. 18).

A bem da verdade, o princípio da beneficência, que corresponde à obrigação hipocrática de fazer o bem (do latim bonum facere), e o princípio da não maleficência, que igualmente corresponde a uma obrigação hipocrática, a de não causar o mal (do latim non nocere), nada mais são do que desdobramentos do reconhecimento da dignidade da pessoa humana no âmbito biomédico (SILVA, 2002, p.174).

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Na prática, os princípios em análise ponderam as opções de modo a escolher aquela que apresenta o máximo de benefícios com o mínimo de prejuízo.

1.1.1.2. Princípio da Autonomia

Autonomia tem a ver com liberdade. Representa a possibilidade do sujeito se auto-determinar, exercendo livremente a opção pelo procedimento que julgar mais adequado, após ser informado de todas as possibilidades.

“O princípio da autonomia diz respeito à liberdade individual da pessoa poder escolher o que é melhor para si, desde que haja a troca de informações entre o médico e o paciente sobre os tratamentos disponíveis” (LOUREIRO, 2006, p, 17).

A liberdade é um dos principais valores inerentes ao ser humano. Em que pese já ter sido reconhecida através dos tempos, foi no século XX que a liberdade colocou-se em evidência. O princípio da autonomia é a manifestação desta liberdade de ação. Considerando que o indivíduo, a partir de suas próprias razões, aja sem causar danos a terceiros, estará exercendo sua autonomia. Trata-se de uma atitude auto-responsável intimamente relacionada com o sistema axiológico de referência, porquanto os homens são movidos pela visão que possuem do mundo (MOTA, 1999, sp).

Por razões óbvias, o embrião não tem discernimento para exercer as prerrogativas que o princípio da autonomia lhe confere. Entretanto, nem por isso deixa de ser abrangido por sua proteção. Compete à sociedade, ao Estado e mais diretamente aos beneficiários e profissionais envolvidos diretamente com o embrião optar pelo procedimento que melhor atenda aos interesses do ser humano em formação.

Outra possível solução para os impasses oriundos da impossibilidade do embrião comunicar sua vontade, segundo Loureiro (2006, p. 17) “seria uma ação judicial na qual o juiz decidiria o que é melhor para a pessoa incapaz de manifestar sua autonomia e autodeterminação”.

Em consonância com o que preconiza o princípio da autonomia, o princípio do respeito às pessoas mencionado no Relatório Belmont[9] abrange ao menos duas convicções éticas: “os indivíduos devem ser tratados como agentes autônomos e as pessoas com autonomia diminuída têm direito à proteção” (DIEDRICH, 2001, p. 219, sem grifos no original).

Nas palavras de Volnei Ivo Carlin (2007, sp, grifou-se):

Autonomia (ou autodeterminar-se) diz respeito à vontade racional humana de fazer leis para si mesmo. Como critério ético, significa a própria emancipação da razão humana; a faculdade de se autogovernar, de ser e agir como sujeito. Repousa sobre as estreitas relações de confiança entre um paciente e um médico (espécie de contrato que opera-se diferentemente entre capazes e incapazes – consentimento livre e consentimento substitutivo). Baseia-se na dignidade da pessoa humana. Impede que uma pessoa explore a outra, impondo a ela sua própria vontade. É o princípio da própria democracia.

De uma forma ou de outra, deve-se sempre ter em mente a observância ao fundamento da República inscrito no art. 1º, III, da CR/88: a dignidade da pessoa humana.

1.1.1.3. Princípio da Justiça

O princípio em comento traz à baila a máxima de Ulpiano: ius suum unicuique tribuens[10]. Neste sentido, a eqüidade é a ordem do dia.

De acordo com este princípio, a justiça “deve ser distributiva, ou seja, todos devem ter acesso aos procedimentos médicos necessários [...] porque todas as pessoas devem ser tratadas de forma igualitária” (LOUREIRO, 2006, p. 19).

Considerando que a justiça em sede biomédica manifesta-se na igualdade de direitos aos serviços de saúde, observa-se na prática uma contradição entre a previsão teórica de tais direitos e sua triste e evidente negação cotidiana[11] (SILVA, 2002, p. 176-177).

Ora só o homem mais forte, que abandona o alimento escasso ao homem mais fraco, pode denominar-se homo moralis, porque tem plena compreensão de que o bem próprio não se realiza divorciado do bem dos demais. Eis o sentido de justiça na perspectiva personalista (SILVA, 2002, p. 176-177, grifou-se).

Infelizmente, no Brasil o princípio da justiça ou eqüidade está longe de se verificar na prática. Inversamente proporcional ao avanço da ciência é o seu acesso igualitário.

Como se pode observar, os diversos princípios bioéticos se interpenetram. Não se pode falar em justiça sem que haja a plena disponibilização de informação para que o sujeito exerça sua autonomia de forma a ponderar entre o bem e o mal que cada procedimento pode lhe causar.

1.1.1.4.Princípio da Alteridade

Alteridade tem a ver com a relação de interdependência estabelecida entre as pessoas, pois o ser humano é um ser social por excelência.

O princípio da alteridade significa respeito pela outra pessoa, de modo que o homem deve agir em relação aos outros como quer que os outros se comportem em relação a ele mesmo. Logo, o respeito à dignidade da pessoa humana é dever de todos em relação a todos: é um princípio que tem aplicabilidade erga omnes (LOUREIRO, 2006, p. 20-21, grifou-se).

Em se considerando o embrião como pessoa, tem ele direito a ser tratado sob a égide do princípio da alteridade.

1.2 . O Biodireito – A 4ª Dimensão de Direitos

A partir da evolução constante da sociedade, as necessidades solidificam-se em direitos que, quando consolidados, deixam marcas na evolução histórico-jurídica das nações[12]. Assim o foi com os direitos individuais, civis e políticos (ou direitos de 1ª dimensão), os direitos sociais (ou de 2ª dimensão) e, finalmente, os direitos transindividuais (de 3ª dimensão) (FERNANDES, 2000, p.24).

Ressalte-se que a divisão dos direitos fundamentais em gerações - ou dimensões como prefere Paulo Bonavides[13] - leva em conta o modelo de Estado então vigente. Trata-se de uma divisão meramente didática que representa um “processo histórico em que os direitos se somam, nunca se excluem” (DINIZ, G., 2003, p. 42).

Durante o século XVIII, as “luzes” iluminaram a Europa. O modelo Liberal ascendeu no contexto da Revolução Industrial e a ordem do dia era a interferência estatal mínima nas relações sociais. Como reação da burguesia ao Estado absolutista das últimas décadas, consolidaram-se os direitos de 1ª dimensão ou direitos negativos, os quais consistiam em um dever de não-intervenção, um não-agir estatal (DINIZ, G., 2003, p. 33).

Com o “avanço lento e gradual da conquista de direitos[14]”, o liberalismo econômico passou a demonstrar-se insuficiente. O impacto causado pela Primeira Guerra Mundial e o “crash” da Bolsa de Nova Iorque, em 1929, contribuíram para alterar irremediavelmente o status quo ante. “Estavam em ebulição os direitos sociais que deram origem ao Estado social: o direito à educação, à saúde, ao trabalho [...]” (FERNANDES, 2000, p.24).

Consolidaram-se, então, os direitos fundamentais de segunda dimensão. Vigia o Estado de bem-estar social, o qual pressupunha uma ação estatal intervencionista, de índole material ou normativa, a fim de promover os benefícios e anseios sociais que o capitalismo liberal não deu conta de suprir (DINIZ, G. 2003, p. 33).

Em evolução constante, a sociedade passou a clamar por direitos em que o titular deixa de ser o indivíduo e passa a ser a coletividade: são os chamados direitos transindividuais, difusos ou coletivos. “Nesta ordem, veio a proteção ao meio ambiente, aos consumidores e [...] ‘os direitos econômicos (salário mínimo, proteção econômica dos menores, devalidos, idosos, etc)’ ” (FERNANDES, 2000, p. 25).

A respeito desta 3ª dimensão de direitos, Geilza Diniz (2003, p. 47) aponta o ideal de fraternidade como dotado de uma amplitude maior que as gerações que o antecederam. Tratam-se de “direitos transindividuais, direitos dos povos e da solidariedade: paz, autodeterminação, desenvolvimento – direitos coletivos e difusos: consumidor, meio ambiente, criança”.

Na seqüência, observa-se que situações práticas geradas pelo avanço biomédico vêm causando preocupações éticas e jurídicas no que tange à proteção dos direitos da personalidade e à própria preservação da espécie humana como tal.

É justamente neste ínterim que surge o biodireito[15], como forma de “realizar a ratio juris e dar conta das inovações que a revolução biotecnológica vem trazendo” (SAUWN; HRYNIEWICZ, 2000, p.46).

Moldaram-se, finalmente, conforme alguns doutrinadores[16], os direitos de 4ª geração[17], que aqui mais interessam, os quais “seriam aqueles ligados ao advento de altas tecnologias e ao avanço científico” (DINIZ, G., 2003, p. 34).

De maneira mais específica, os direitos de quarta dimensão são os “direitos difusos globalizados, concernentes à evolução biogenética, tecnológica e do meio ambiente[18]” (DINIZ, G., 2003, p. 54).

Conforme a doutrina de Tycho Brahe Fernandes (2000, p. 26), a 4ª dimensão de direitos abrange a evolução médico biológica, a qual está originando o biodireito. O autor defende que além de serem direitos coletivos ou difusos[19], os direitos de quarta geração são também individuais, “visto que a aplicação das ciências biomédicas pode trazer dano concreto ao indivíduo enquanto produz dano potencial a toda a Sociedade”.

É que conforme lembra Norberto Bobbio, em “A era dos Direitos” (1992, p.6), a pesquisa biológica tende a causar efeitos cada vez mais traumáticos em função da manipulação do patrimônio genético dos indivíduos e, por conseguinte, da humanidade.

Daí se dizer que os direitos de 4ª geração – ou biodireito – não protegem “o indivíduo, mas sim o membro da espécie de seres vivos” (DINIZ, G., 2003, p. 51).

É necessário mencionar, por medida de cautela, que não é pacífico na doutrina a delimitação – ou mesmo a existência – desta 4ª dimensão de direitos.

A existência da corrente ganha forças nas palavras de Ingo Wonfgang Sarlet:

Ainda no que tange à problemática das diversas dimensões dos direitos fundamentais, é de se referir a tendência de reconhecer a existência de uma quarta dimensão, que, no entanto, ainda guarda sua consagração na esfera do direito internacional e das ordens constitucionais internas. Assim, impõe-se examinar, num primeiro momento, o questionamento da efetiva possibilidade de se sustentar a existência de uma nova dimensão de direitos fundamentais, ao menos nos dias atuais, de modo especial diante das incertezas que o futuro nos reserva. Além do mais, não nos parece impertinente a idéia de que, na sua essência, todas as demandas na esfera dos direitos fundamentais, gravitam, direta ou indiretamente, em torno dos tradicionais e perenes valores da vida, liberdade, igualdade e fraternidade (solidariedade), tendo, na sua base, o princípio maior da dignidade da pessoa humana (SARLET, 2005, p. 59, grifou-se).

Sarlet (2005, p. 59-60) elogia a posição de Paulo Bonavides, segundo a qual a quarta dimensão de direitos seria resultado da globalização dos direitos fundamentais, representando a sua verdadeira universalização. Pondera que, para Bonavides, “esta quarta dimensão é composta pelos direitos à democracia [...] e à informação, assim como pelo direito ao pluralismo”. Conforme Sarlet, a proposta de Bonavides é razoável. Todavia, considera carente de fundamento a argumentação daqueles que objetivam criar uma nova geração de direitos para abordar garantias substancialmente clássicas, tais quais a vida e a liberdade.

Pode-se considerar que entre a bioética e o biodireito há uma unidade de objeto (a vida), estudado a partir de um ponto de vista diferente:

O objeto material da bioética (a vida no sentido mais lato) [...] é comum a todas as ciências que estudam a vida. A bioética estuda, epistemologicamente, o seu objeto sobre o ponto de vista ético. Se o próprio objeto material (a vida) é, por exemplo, estudado do ponto de vista jurídico, temos não a bioética, mas para usar a expressão de Luciano Violante, o ‘bio-jus’ (BELLINO apud GAMA, 2003, p. 41).

Nestes termos, poder-se-ia dizer que a demanda por regulamentações[20] no que tange à problemática do destino dos embriões excedentários, ou supranumerários, seria uma clássica discussão do direito à vida, porém com uma roupagem moderna.

1.3. Breves Noções de Embriologia Humana - o Início da Vida

Diante do panorama até o momento introduzido, questiona-se: em que momento começa a vida humana? Em que momento passa a existir um ser que merece ser tutelado por direitos ou princípios?

Uma das possíveis respostas é: “A vida embrionária se inicia com a fertilização[21]” (O’RAHILLY apud BOLZAN, 1998, p.11).

A absoluta veracidade, ou não, da afirmação supra é de vital importância, pois a partir dela tem-se a legitimidade ou ilegitimidade moral da intervenção humana em embriões, em qualquer estado de seu desenvolvimento (BOLZAN, 1998, p. 11).

A etimologia da palavra vida remonta ao latim vita. Para a biologia, vida é o “estado de atividade funcional dos seres organizados, que impõe o consumo de energia e que tem a sua origem num ato reprodutivo de outro organismo parental, concluindo-se pela morte” (PAZ, 2003, p. 29).

Desde a antiguidade as pessoas se questionam sobre o início da vida. Aristóteles chegou a elaborar uma teoria, a da ‘animação imediata’, segundo a qual algumas semanas após a concepção haveria a junção do corpo com a alma. O cristianismo chegou a adotar esta teoria por um período. Não havia consenso, também, entre os médicos da idade antiga. Hipócrates dava indícios de proteger a vida desde a concepção, pois condenava que se ministrassem remédios passíveis de interromper a gestação (ESCOSTEGUY; BRITO, 2007, p. 56).

Durante o renascimento, René Descartes faz com que a vida passasse a ser pensada como algo intrínseco ao raciocínio humano. (ESCOSTEGUY; BRITO, 2007, p. 56) Sua máxima - ‘Penso, logo existo’ – serviu para subsidiar teóricos posteriores que não intencionavam considerar o embrião em seus estágios iniciais de desenvolvimento como uma pessoa.

A fim de melhor delimitar conceitos reiteradamente utilizados no presente trabalho, é importante tecer algumas considerações sobre o desenvolvimento do ser humano nos dois primeiros meses subseqüentes à concepção.

Contudo, precipuamente é necessário esclarecer que a divisão em fases ou etapas é meramente didática, até mesmo porque não se pode especificar de modo absoluto quando termina um e começa outro estágio[22].

Após a gametogênese[23], tem-se, com a fertilização, o restabelecimento da diploidia[24] típica da espécie humana.

A concepção, tida como o impulso inicial de toda uma jornada humana, é precedida pela fertilização, a qual “ocorre quando apenas um, de aproximadamente duzentos a seiscentos milhões de espermatozóides liberados na ejaculação, consegue atravessar a zona pelúcida do óvulo” (SILVA, 2003, p. 33).

Sobre a fusão dos gametas, Liz Helena Silveira do Amaral (2006, p. 56) aduz que, independetemente de ocorrer in ou ex utero, “verifica-se, dentro da célula-ovo recém-formada, o alinhamento dos pró-núcleos dos gametas, sua condensação, fusão e organização do código genético do novo indivíduo”.

A partir do momento em que o zigoto sofre a primeira divisão mitótica, seguem-se outras sucessivas[25].

Com o início da clivagem, a célula primordial se divide em duas que passam a ser chamadas de blastômeros. “A mórula, do latim morus, amora, é um agregado formado três dias após a concepção, sendo composto por doze ou mais blastômeros envolvidos pela membrana pelúcida do óvulo” (SILVA, 2003, p. 39).

Veja-se como o biólogo argentino Alejandro D. Bolzan explica o processo que vai desde a fertilização até a formação do feto:

1º) Fertilização: Ocorre nas Trompas de Falópio[26] (mulher). Começa com o primeiro contato do espermatozóide com a superfície externa do óvulo e finaliza quando se unem os pró-núcleos – núcleos celulares – masculino e feminino (respectivamente do espermatozóide e do óvulo), mesclando os cromossomos de ambos sobre uma mesma envoltura nuclear. Segundo o visto anteriormente, aqui se inicia uma nova vida humana. A fusão dos pró-núcleos ocorre aproximadamente vinte horas após o início da fecundação.

2º) Estágio de pré-zigoto: Este é um conceito muito recente. Corresponderia a um momento em que, embora o espermatozóide tenha penetrado no óvulo, o material genético de ambos não se misturou. [...]

3º) Estágio de zigoto: corresponde ao óvulo já fertilizado. Ou seja, é o material genético (cromossomos) de ambos os gametas já mesclados, ficando, assim, constituída esta primeira célula ou zigoto de um novo ser [...].

4º) Estágio de pré-embrião[27]: denomina-se assim o indivíduo em desenvolvimento desde a primeira divisão celular (2 células) até o 14º dia após a fecundação (momento em que aparece o primeiro esboço do sistema nervoso = linha primitiva). [...]

5º) Estágio de embrião: Indivíduo em desenvolvimento desde o 14º dia de vida – momento em que, segundo muitos cientistas, se conseguiria a individualização biológica do ser humano [...] – até o 2º mês de desenvolvimento.

6º) Feto: assim se conhece o indivíduo desde o 2º mês de desenvolvimento (amadurecimento funcional dos órgãos) até o nascimento. (BOLZAN, 1998, p. 28-29, grifos do autor).

“Toda vida provém de uma vida pré-existente” (BOLZAN, 1998, p. 28). A questão aqui discutida seria: Quando começa uma nova vida, única e irrepetível?

Elisa Muto e Leandro Narloch (2005, p. 59) apontam cinco respostas da ciência para esta pergunta. Segue na íntegra cada uma delas:

1. VISÃO GENÉTICA. A vida humana começa na fertilização, quando espermatozóide e óvulo se encontram e combinam seus genes para formar um indivíduo com um conjunto genético único. Assim é criado um novo indivíduo, um ser humano com direitos iguais aos de qualquer outro. É também a opinião oficial da igreja católica.

2. VISÃO EMBRIOLÓGICA. A vida começa na terceira semana de gravidez, quando é estabelecida a individualidade humana. Isto porque até 12 dias após a fecundação o embrião ainda é capaz de se dividir e dar origem a duas ou mais pessoas. É essa a idéia que justifica o uso da pílula do dia seguinte e contraceptivos administrados nas duas primeiras semanas de gravidez.

3. VISÃO NEUROLÓGICA. O mesmo princípio da morte vale para a vida.Ou seja, se a vida termina quando cessa a atividade elétrica no cérebro, ela começa quando o feto apresenta atividade cerebral igual à de uma pessoa. O problema é que essa data não é consensual. Alguns cientistas dizem haver esses sinais cerebrais já na 8ª semana. Outros na 20ª.

4. VISÃO ECOLÓGICA. A capacidade de sobreviver fora do útero é que faz do feto um ser independente e determina o início da vida. Médicos consideram que um bebê prematuro só se mantém vivo se tiver pulmões prontos, o que acontece entre a 20ª e a 24ª semana de gravidez. Foi o critério adotada pela Suprema Corte dos EUA na decisão que autorizou o direito do aborto.

5. VISÃO METABÓLICA. Afirma que a discussão sobre o começo da vida humana é irrelevante, uma vez que não existe um momento único no qual a vida tem início. Para essa corrente, espermatozóides e óvulos são tão vivos quanto qualquer pessoa. Além disso, o desenvolvimento de uma criança é um processo contínuo e não deve ter um marco inaugural.

Os adeptos da teoria de que desde a fecundação[28] haveria uma nova vida humana fazem o seguinte raciocínio: se o zigoto resulta da união do material genético de um óvulo e de um espermatozóide, isto lhe confere uma condição genética singular.

Em outras palavras, a partir do início da fertilização começa uma nova vida humana. O zigoto já é, pois, vida humana individual, única e irrepetível. Três argumentos são delineados por Bolzan (1998, p. 14-15) para reforçar tal afirmação. Primeiramente, o zigoto é vida porque possui movimento próprio, é capaz de dividir-se, independente da mãe, dando continuidade ao seu desenvolvimento; em segundo lugar, é vida humana já que provém da união de células humanas; por fim, é vida singular porquanto dotado de genótipo só seu.

Por outro lado, há quem pretenda utilizar os embriões humanos em estado pré-implantatório para experimentação científica[29] ou simplesmente descartá-los por motivos distintos. Argumenta-se, neste sentido, que o embrião recém formado é composto por células indiferenciadas, o que afastaria sua individualidade. O embrião só seria um indivíduo humano com a formação do sistema nervoso rudimentar por volta do 14º dia, quando deixaria de ser um pré-embrião, para ser um ser individualizado. Ademais, a nidação seria determinante para caracterizá-lo como pessoa humana (BOLZAN, 1998, p. 18-23).

Para esta segunda corrente a questão gênica não é fundamental, pois o valor moral atribuído à vida embrionária seria crescente conforme o feto cresce e se desenvolve, sendo que isso só ocorre dentro do ventre materno (TESSARO, 2002, p. 37).

A importância atribuída às idéias sobre o início da vida é muito grande em função das conseqüências e influências delas advindas em uma futura legislação, ou mesmo para a reflexão bioética pura e simples. (LANG in OSELKA, 2005, sp).

Para fins de delimitação de conceitos, faz-se necessário tecer algumas considerações a respeito da nomenclatura que envolve o tema.

Conceptus é um termo generalizado que indica “uma fecundação, que se inicia no momento da concepção e que continua maturando com o mesmo caráter ontológico” (LANG in OSELKA, 2005). Ao se utilizar o termo concepto, estar-se-ia atribuindo valor de vida humana ao que se produz desde o momento da fecundação do óvulo.

Recorrente, também, é o uso do termo nasciturus, ou nascituro, significando os seres cujo nascimento é assegurado; são os destinados a nascer (LANG in OSELKA, 2005, sp).

Apesar de válida, a discussão acerca do inicio da vida humana não leva a conclusões relevantes do ponto de vista jurídico. Considerando a vida como um ciclo, é possível atribuir vida – com características genéticas humanas – a uma única célula (um gameta, por exemplo).

Na seqüência, urge tecer algumas considerações a respeito do panorama da reprodução humana assistida (RHA).

1.4. Evolução Histórica e Noções Gerais sobre as Técnicas de Reprodução Humana Assistida

1.4.1.Evolução Histórica

Desde os primórdios da humanidade, persiste uma intensa preocupação com a fertilidade, diretamente proporcional ao temor da esterilidade[30]. Manifestações artísticas rupestres representam mulheres grávidas com grande destaque para o ventre. São as chamadas Vênus[31], símbolo de fecundidade e de uma nova vida (LEITE, 1995, p.17).

Ilustração 01 – Vênus de Wildedorf (RODRÍGUEZ, 2005, sp)

As representações femininas mostravam um evidente encantamento diante da fecundidade. “Todo o realce das formas é dado ao ventre (origem de um novo ser), nádegas e seios (elemento sensual e de fertilidade) enquanto a cabeça e as pernas não passam de prolongamentos disformes do tronco” (PUSSI, 2005, p. 276).

Este evidente culto à fertilidade ocasionou a consideração da esterilidade como um fator negativo atribuído à cólera dos antepassados, bruxas, ou outras intervenções metafísicas. “A mulher estéril era encarada como ser maldito que precisava ser banida do convívio social. Para os judeus, a esterilidade era considerada como castigo de Deus” (LEITE, 1995, p. 17).

Ao longo de toda a antiguidade e parte da idade média, o desconhecimento do sistema reprodutivo humano atribuía toda e qualquer dificuldade procriativa à mulher.

A procriação medicamente assistida nasceu de uma contingência da vida. Muitos casais após anos de relações sexuais e de constantes tentativas de terem filhos não conseguiam tê-los por apresentarem problemas de infertilidade. Nos tempos remotos, quando a mulher não conseguia conceber, o marido era autorizado a tomar outra mulher e com ela gerar o filho que pertenceria ao casal. Passagem bíblica que bem remonta o mencionado é a de Abraão, que após dez anos vivendo com Sara na Terra de Canaã não conseguia ter filhos, tendo sua mulher lhe dado sua serva Agar, para que com ela tivesse um filho em nome do casal (FERREIRA, 2002, sp).

Há notícias de que Henrique IV e D. Joana de Portugal, já na Espanha do século XV, teriam tentado conceber um herdeiro através de métodos artificiais (PUSSI, 2005, p. 273).

Somente com a invenção do microscópio no final do século XVI o estudo da esterilidade ganhou moldes científicos. Contudo, a idéia de esterilidade conjugal só surgiu no século XVII quando Johamm Ham, em 1677, sugeriu que a ausência ou escassez de espermatozóides poderia determinar o insucesso gestacional (LEITE, 1995, p. 18).

No ano de 1785, Thouret, um decano da Faculdade de Medicina de Paris obteve êxito em fecundar sua esposa infértil[32] através de uma injeção intravaginal de seu próprio esperma (FERNANDES, 2000, p. 50).

Nas últimas décadas do século XIX, descobriu-se que o óvulo também exerce importante papel na fertilização. Finalmente, desconstituíra-se a idéia de que apenas o homem, através de seus espermatozóides, era o responsável pela geração da nova vida. A mulher se libertara do estigma de “mero receptáculo para o novo ser” (PUSSI, 2005, p. 273).

A tecnologia de crioconservação de gametas foi essencial para permitir que as técnicas de procriação artificial se consolidassem após décadas de obstáculos de toda ordem[33]. Até o ano de 1934, a literatura médica noticia apenas 123 casos (OLIVEIRA; BORGES, 2000, p. 11).

Desta forma, apenas no início do século XX, com o desenvolvimento de técnicas de criopreservação de sêmen[34], ampliaram-se os estudos acerca da RHA (FERNANDES, 2000, p. 51).

Passou-se, então, a ter uma certa compreensão do processo de meiose celular, através do qual os gametas haplóides se originavam. O ciclo reprodutivo estaria completo quando, a partir da união dos gametas, restabelecesse-se a diploidia na célula-ovo[35].

Os bancos de sêmen se proliferaram e durante a Segunda Guerra Mundial milhares de crianças foram concebidas e nasceram enquanto seus pais guerreavam (FERNANDES, 2000, p. 50).

O passo seguinte à inseminação artificial foi o desenvolvimento da fertilização in vitro (FIV)[36], a partir dos estudos de Schenk, em 1878[37] (OLIVEIRA; BORGES, 2000, p.11).

“A FIV humana começou em 1944, quando dois biologistas, Rock e Menkin, obtiveram quatro embriões normais a partir de uma centena de óvulos humanos colhidos nos ovários e colocados na presença dos espermatozóides” (LEITE, 1995, p. 41).

A técnica ganhou consistência, em 1947, com a descoberta da possibilidade de congelamento e posterior descongelamento de embriões em estado pré-implantatório, sem prejuízo ao desenvolvimento intra-uterino do embrião (OLIVEIRA; BORGES, 2000, p.12).

Em 1978, o delírio de Aldous Huxley se torna realidade com o nascimento da inglesa Louise Brown, o primeiro bebê de proveta[38] (PUSSI, 2005, p. 274).

A partir deste marco, a biomedicina vêm trazendo à tona questões até então impensáveis. Em que pese sempre terem existido casais estéreis, com as técnicas de reprodução assistida “a resignação deu lugar à esperança” (BOLZAN, 1998, p. 7).

Faz-se necessário admitir que a RHA conturba a concepção tradicional das relações de parentesco. “A fecundação in vitro criou uma situação especialíssima na história da maternidade: pela primeira vez na história da humanidade, o começo da vida humana se encontra dissociado do corpo da mulher geradora (LEITE, 1995, p. 132).

Durante as décadas de 1970 e 1980 a FIV gerou polêmica e discussões em todo o mundo. Apesar de historicamente o debate não se situar em um passado tão distante – até porque o tema ainda é atual –, é preciso levar em consideração que algumas décadas atrás, as pessoas se mostravam mais resistentes às ingerências biotecnológicas no curso normal da vida.

Faz-se necessário considerar que as taxas de integridade embrionárias após o processo de congelamento/descongelamento ainda são baixas (LEITE, 1995, p. 66).

Com base neste argumento, há uma corrente contrária à FIV. De acordo com estes doutrinadores, não há de se admitir que embriões sejam produzidos com finalidade diversa da reprodutiva, pois sabe-se que são dotados de um potencial de vida humana que jamais realizar-se-á. “Se o número de embriões criados é superior ao número que será transplantado, tem-se por moralmente inaceitável deixar morrer os embriões não utilizados” (LEITE, 1995, p. 162-163).

Willmut e Campbel alertam que, ainda atualmente, algumas objeções à fertilização in vitro se mantém. Não será de se estranhar se daqui a 100 ou 500 anos algumas pessoas persistirem contrárias à prática (citados por DINIZ, G., 2003. p. 80).

Através do uso das técnicas de reprodução assistida, o homem passa a ter ingerência em uma esfera de extrema seriedade: o destino de vidas humanas.

O embrião, que por centenas de anos foi um ser desconhecido, envolto em mistério e mitologia, teve seus segredos desvendados e passou a ser conhecido pela comunidade científica. Pior, “passou a ser exposto e mesmo mutilado em experimentos e estudos” (PUSSI, 2005, p. 277).

O manejo de tais técnicas deve-se dar de maneira responsável e consciente. Infelizmente,

cientistas, médicos, biólogos, não querendo reconhecer que o homem é um ser limitado, parecem brincar de aprendizes de feiticeiro, porém não utilizando substâncias materiais, mas vidas humanas, e isso não deve ser negligenciado sob circunstância alguma. [...] Triste exemplo de tudo o que dissemos é a declaração de R.G. Edwards, um dos ‘pais cientistas’ do primeiro ‘bebê de proveta’ em 1982: ‘Acho que a necessidade de saber é superior ao respeito devido ao embrião em seu estado precoce’ (BOLZAN, 1998, p. 8, grifou-se).

Neste contexto, “pode-se afirmar que nefasta não é a ciência, mas o que os homens podem fazer com o que quer que lhes seja posto nas mãos” (MINAHIM, 2005, p. 28, sem grifos no original).

O primeiro bebê oriundo de técnicas de reprodução assistida brasileiro, Ana Paula, nasceu em 1984. (CLEMENTE, 2005, sp).

Desde 1993, funciona no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, o primeiro banco de sêmen brasileiro (PUSSI, 2005, p. 285).

De lá pra cá, milhares de famílias tiveram a oportunidade de realizar seu projeto parental. Contudo, nem tudo é tão simples quanto parece.

Não há no Brasil um controle jurídico efetivo da RHA. “O marketing em revistas tem deixado claro que as clínicas de RHA fazem o que querem, só esquecem de informar que é de 85% a 90% a taxa de fracasso da biotecnologia no bebê de proveta” (PAZ, 2003, p. 77).

Hodiernamente, o quadro é o seguinte:

A incidência de problemas de saúde que comprometem a fertilidade de um casal varia de acordo com a idade. Dados da OMS (Organização Mundial da Saúde) mostram que 1 em cada 15 mulheres com idade entre 20 e 30 anos tem dificuldade de engravidar. Nos casais em que a mulher tem entre 30 e 40 anos, sobe para 1 em cada 8 mulheres. Depois dos 40, 1 entre 4 casais não consegue ter filhos sem a ajuda de tratamentos ou métodos de fertilização (QUANDO..., 2003, sp).

O fato é que o conjunto de procedimentos destinados a contribuir na resolução dos problemas oriundos da infertilidade humana, os quais são chamados de reprodução assistida (RA)[39] (FRANÇA, 2004, p. 244), passou a fazer parte do mundo contemporâneo.

As pesquisas na área da RHA convivem com um contínuo avanço. Atualmente se pode falar em três técnicas principais, as quais serão individualizadas a seguir.

1.4.2. Espécies de Reprodução Humana Assistida – RHA

Em que pese não se tratar do objeto de estudo específico deste trabalho (o foco está voltado para a fertilização in vitro e os embriões excedentes dela originados), é importante tecer algumas considerações, ainda que breves, sobre as principais técnicas de RHA.

1.4.2.1.Fertilização in vivo

De maneira geral, a fertilização in vivo é conhecida como inseminação artificial.

Consiste na “introdução dos gametas masculinos ‘dentro da vagina, em volta do colo, dentro do colo, ou dentro do abdômen’, onde a fecundação ocorrerá” (FERNANDES, 2000, p. 54).

No que tange à inseminação clássica, ou inseminação intra-uterina (IUU), pode-se dizer que é uma técnica de baixa complexidade em que há o acompanhamento do ciclo menstrual da paciente enquanto é preparado o material do doador masculino. No dia da suposta ovulação, transfere-se o material genético do homem através de um cateter até o útero da mulher onde, espera-se, a fecundação ocorra naturalmente in vivo (CLEMENTE, 2005).

Um dos métodos de fertilização intra corporis menos complexos e mais baratos é a IUU. Basta assegurar-se de que a mulher aumente a produção de óvulos sadios (através de medicação) e introduzir o sêmen no útero com o auxílio de um cateter (QUANDO..., 2003, sp).

“Em 1790, o médico inglês John Hunter realizou, com pleno êxito, numa mulher, esta operação pela primeira vez” (FRANÇA, 2004, p. 244).

A IUU é indicada quando o homem sofra de problemas penianos, ejaculação deficiente ou pseudo-hermafrodismo, e quando a mulher tenha más formações congênitas ou adquiridas. O método consiste em colher o esperma e introduzi-lo no útero, observados os cuidados de assepsia e o período fértil da mulher (FRANÇA, 2004, 244).

“Sempre que possível, os médicos recorrem aos métodos de fertilização ‘in vivo’, que têm custo mais baixo e são menos agressivos para a mulher” (QUANDO..., 2003, sp).

No campo das técnicas de reprodução in vivo, destaca-se a transferência de gametas, a qual existe em três modalidades: transferência intra-tubária, intrabdominal e intra-uterina, conforme o local onde os gametas são depositados[40].

Também conhecido como método GIFT[41], a transferência intratubária de gametas “consistente na introdução de gameta, por meio artificial, no corpo da mulher, esperando-se que a própria natureza faça a fecundação” (SILVA in FIÚZA, 2002, p. 1.408).

Trata-se, portanto, de espécie de fertilização in vivo em que, após a coleta, óvulo e espermatozóide são introduzidos laparoscopicamente em uma das tubas uterinas, local onde se espera que a fecundação ocorra de forma natural (QUANDO..., 2003, sp).

Pode-se dizer que a GIFT “oferece ao embrião condições de desenvolvimento, de migração, de nidação mais fisiológicas” (LEITE, 1995, p. 48).

Mandelbaum e Plachot explicam o método de transferência intratubária de gametas da seguinte forma:

Assim que os óvulos estiverem recolhidos, eles são introduzidos em um fino cateter com o esperma do cônjuge que imediatamente é transferido em uma ou nas duas trompas (geralmente um ou dois óvulos, com aproximadamente, cem mil espermatozóides por trompa). A técnica dura apenas meia hora. Os eventuais óvulos excedentes serão fecundados ‘in vitro’ e os embriões obtidos poderão ser congelados e conservados a fim de serem recolocados posteriormente em caso de fracasso da tentativa, ou para uma segunda ou até terceira criança (MENDELBAUM; PLACHOT apud LEITE, 1995, p. 48-49).

Como se pode observar, a partir do método de transferência, os gametas não introduzidos de plano podem vir a ser fecundados in vitro dando origem a embriões excedentários.

1.4.2.2 . Fertilização in vitro

Em se tratando de fertilização extracorpórea, pode-se falar em duas espécies: a fertilização in vitro passiva, e a micromanipulação, ou fertilização não passiva. Esta última subdivide-se em inseminação subzonal (SUZI) e injeção intracitoplasmática (ICSI).

1.4.2.2.1.Fertilização in vitro convencional (FIV)

Trata-se de fertilização extracorpórea passiva.

“Quando a mulher tem as trompas inutilizadas ou quando o sêmen do marido é de baixa qualidade (número de espermatozóides muito baixo), entra em cena a fertilização ‘in vitro’ ” (QUANDO..., 2003, sp).

Pode-se dizer que a FIV é composta por várias etapas: “indução da ovulação, punção folicular e cultura de óvulos, coleta e preparação do esperma e, finalmente, inseminação e cultura de embriões” (LEITE, 1995, p. 44).

Durante o processo, doses hormonais estimulam uma superovulação da mulher. No período fértil, oócitos[42] são coletados através de punção folicular e os mais aptos são colocados em uma placa de Petri juntamente com os espermatozóides. Ocorrida a fecundação, acompanha-se o desenvolvimento do embrião em uma estufa (CLEMENTE, 2005).

Trata-se de técnica complexa em que os gametas masculinos e femininos são retirados dos organismos dos doadores. Em laboratório, de maneira extra-uterina, a fertilização ocorre e a clivagem prossegue até o estágio em que o embrião é transferido para o útero (FERNANDES, 2000, p. 55).

Ilustração 02 – Transferência de Embriões para o Útero (RAMOS, 2007, sp)

Este método de reprodução artificial é conhecido como método ZIFT, “consistente na realização da fecundação fora do corpo da mulher” (SILVA in FIÚZA, 2002, p. 1.408).

Além da discussão a respeito de quantos embriões devam ser transferidos para o útero, a técnica “gera o grave problema dos embriões excedentes ou ‘supranumerários’, igualmente não resolvido, nem pela ética, nem por razoáveis propostas jurídicas” (LEITE, 1995, p. 161).

São embriões excedentários ou supranumerários aqueles não implantados de plano no corpo da mulher quando da utilização da técnica da fertilização in vitro.

1.4.2.2.2. Micromanipulação: Injeção Intracitoplasmática de Espermatozóide (ICSI) e Injeção Subzonal de Espermatozóides (SUZI)

Tratam-se de procedimentos desenvolvidos na década de 1990 a partir da FIV. Tanto a ICSI quanto a SUZI visam permitir a fecundação a partir de um gameta masculino com baixa mobilidade. Não se espera que a fecundação ocorra naturalmente, de forma passiva. O processo consiste em, ativamente, introduzir o “espermatozóide diretamente no interior da zona pelúcida ou do ovócito com o auxílio de uma microagulha e um microscópio” (AMARAL, L., 2006, p. 23).

Enquanto na ICSI o espermatozóide é introduzido dentro da membrana citoplasmática do óvulo, na SUZI tal introdução se faz na zona pelúcida do gameta feminino.

Apenas um único espermatozóide é colocado dentro do óvulo com a ajuda de uma micropipeta. A partir de então, segue-se os passos de uma FIVETE tradicional. “O embrião fecundado é transferido para o útero três a seis dias depois. Esse método é muito usado quando a qualidade do espermatozóide do parceiro é baixa” (QUANDO..., 2003, sp).

Tem-se aqui uma variação da fertilização in vitro convencional em que há a escolha de um espermatozóide que é transferido diretamente para o oócito. Esta técnica permite que homens supostamente inférteis reproduzam-se com seu próprio material genético (CLEMENTE, 2005, sp).

Nessa técnica, espermatozóides imaturos ou até mesmo suas células precursoras são retiradas dos testículos. Uma micropipeta é usada para ultrapassar a membrana plasmática do óvulo e injetar um único espermatozóide diretamente dentro do citoplasma do óvulo. Na maioria dos casos a fertilização é conseguida com sucesso (UZUNIAN; BIRNER, 2001, p. 256).

Trata-se de procedimento em que a fertilização ocorre no exterior do corpo feminino, sendo que ambos os genitores recebem tratamento: “ela, para aumentar a produção de óvulos; ele, para escolha dos espermatozóides mais capacitados” (QUANDO..., 2003, sp).

A abordagem, ainda que sucinta, das técnicas de FIV é útil ao objetivo deste trabalho, pois é a partir delas que “sobram” os embriões chamados de excedentários.

1.5.Quem são os Embriões Excedentários?

A partir da utilização de técnicas de reprodução assistida in vitro, há um alto grau de incerteza a respeito da viabilidade de cada embrião concebido. Por esta razão, vários óvulos costumam ser fecundados, pois apenas os mais aptos são implantados no útero.

Para Tania Salem (2007, sp), “o que está em pauta é o embrião fertilizado e ‘criado’ em laboratório, capaz de sobreviver em estado suspenso de animação (isto é congelado) por tempo indefinido fora do corpo da mulher”.

Neste contexto, “sobram” vários embriões já fecundados que não são implantados de plano no corpo da mulher. Tratam-se dos embriões excedentários – objetos ou sujeitos? – do presente estudo, os quais podem ser criopreservados em nitrogênio líquido conforme ilustração abaixo:

Ilustração 3 – Criopreservação de embriões (RAMOS, 2007, sp)

Existem diversas razões práticas para que todos os óvulos coletados sejam fertilizados simultaneamente, dando origem aos excedentários[43]. Em suma, o armazenamento dos supranumerários representa a economia de “um bom tempo e milhares de dólares” (CARLSON, apud SILVA, 2002, p. 66).

Em que pese argumentar-se cientificamente de que quanto maior o número de embriões transferidos, maior será a possibilidade de sucesso na gestação, a produção excessiva dos supranumerários é preocupante.

“Não se pode olvidar que os bancos de embrião, verdadeiros orfanatos de nascituros, surgem em decorrência da fertilização in vitro, sendo em verdade um problema, não uma solução” (PUSSI, 2005, p. 287).

Situações supervenientes tais quais a morte, separação ou o divórcio do casal, ou mesmo a desistência em função do sucesso na obtenção da gravidez geram um desinteresse do casal que procurou a técnica para com os embriões supranumerários.

São essas hipóteses que geram a expressão ‘pré-embriões excedentes ou supranumerários’, pois eles foram inicialmente planejados, criados com a finalidade única de procriação mas, por algum motivo relevante, não serão transferidos ao casal que os solicitou em tratamento. O que fazer com eles? (OLIVEIRA; BORGES, 2000, p. 69).

Sonia Paz (2003, p. 38) considera a hipótese de um casal que procura uma clínica de RHA com a intenção de armazenar o fruto da fusão de seus gametas para ser implantado futuramente. Porém, considerando a incerteza do futuro, este casal pode se separar e abandonar o embrião, ou então a mulher pode decidir, após separada, implantá-lo. Caso tal gestação se dê sem o consentimento do genitor, será ele considerado o pai biológico da criança? (PAZ, 2003, p. 38).

Como se pode observar, “há uma série de questões entre a medicina e o Direito. A resposta a elas não está ‘pronta’ em lugar nenhum” (PAZ, 2003, p. 39).

Cabe a cada intérprete do direito estar atento ao mundo que o cerca para inferir conclusões sobre o tema.

1.6. A Disponibilidade do Embrião Excedentário: possíveis destinações

A utilização da fertilização in vitro implica muitas vezes no congelamento dos embriões supranumerários.

Todavia, “assustam [...] a frieza e o descompromisso de certas intervenções médicas, as fazendas de embriões, as “adoções” de embriões excedentários e o destino dos que não conseguiram um útero disponível e são descartados” (MINAHIM, 2005, p. 28).

O cerne da questão está em definir o que se fazer com estes embriões quando não interessam mais ao casal.

Seria lícita a utilização de embriões em pesquisas? Que limites deveriam ser impostos à manipulação, à destruição ou à modificação dos embriões in vitro? Como encarar a proposta de descarte dos mesmos? E quanto às proposições de doação de embriões excedentes para pesquisas científicas, e do seu emprego na fabricação de medicamentos, a serem aplicados em técnicas de terapia embrionária? Seria eticamente aceitável seu armazenamento, no aguardo de oportunidades para doação a terceiros? Quem teria sua custódia e a quem caberia a decisão sobre seu destino? (SÁ; TEIXEIRA, 2005, p. 82).

De uma análise do direito comparado observa-se que na Espanha o congelamento é permitido por 5 anos, sendo obrigatória a destruição após este período[44]. Buscando evitar o problema, os dinamarqueses destroem os excedentes logo após a fertilização. Há países, como os Estados Unidos e a Bélgica, que incentivam a doação para pesquisas. A Alemanha, por sua vez, não permite que sejam gerados mais embriões do que os imediatamente implantados (FRANÇA, 2004, p. 247).

Sem a intenção de tecer críticas inconseqüentes ao avanço biotecnológico, há de se considerar que a manipulação extra corporis de embriões humanos traz a tona os seguintes inquietantes conflitos:

Será que poderemos comparar um embrião a um órgão do corpo humano e equipara-lo a um coração ou um rim, o qual se pode transplantar, ceder, conservar ou experimentar? Poder-se-á qualificar o embrião como um órgão, logo, como objeto de propriedade da mulher que o transporta ou, pelo contrário, uma substância de origem humana sujeito de direitos ou de proteção legal? Ou, corroborando a posição legal, ou, corroborando a posiiade da mulher que o transporta ou, pelo contrder-se-o do Comitê Nacional de Ética Francês, como uma potencial pessoa humana? (SILVA apud SÁ; TEIXEIRA, 2005, p. 81).

Passa-se a uma breve análise de cada uma das principais hipóteses levantadas[45].

1.6.1. Proibição de Supranumerários

À primeira vista, a maneira mais simples de tratar o problema é evitar que ele exista. Considerando que é muito complicado e desgastante decidir o que fazer com os embriões excedentes, bastaria não permitir que eles existissem e não haveria o que se discutir.

Para Ferreira (2002, sp) esta é indiscutivelmente a opção mais coerente. Afinal, “a produção excessiva de possíveis vidas humanas, como se fossem objetos de consumo ou meros instrumentos a justificar o desejo dos casais de terem filhos, dá-nos a sensação de que a espécie humana não é nada mais do que um meio e não um fim em si mesmo”.

Como visto, é esta a opção da nação alemã. Os germânicos só fertilizam o número exato de embriões que serão transferidos a fresco. Evita-se, portanto, que surjam os excedentários.

Genival de França (2004, p. 247) lembra que está pode ser a solução mais fácil, porém, se houver fracasso na implantação “não se teria outra coisa a fazer senão começar todo o processo desde o início, com todos os custos, inconvenientes e frustrações”.

Já se mencionou a suposta imprescindibilidade da FIV produzir um número superior de embriões daqueles que serão transplantados de plano. “A superovulação é entendida, pela classe médica, como fundamental para garantir um mínimo de gravidezes, sem o qual, o sacrifício da paciente e o investimento técnico-financeiro seriam inaceitáveis” (LEITE, 1995, p. 162).

Ademais, “todos sabem – por necessidade de ordem técnica, financeira e emocional – o que representa a necessidade de se ter mais embriões fecundados do que os que vão ser implantados” (FRANÇA, 2004, p. 247).

Deste modo, inviabilizar o armazenamento de embriões representaria uma sentença de morte para as técnicas de FIV, prejudicando milhares de famílias que têm nelas suas últimas esperanças de projetos parentais.

1.6.2. Criopreservação

A Criobiologia é o ramo da ciência que estuda a criopreservação de sêmen, oócitos e pré-embriões, em um meio de nitrogênio à temperatura muito baixa, sem prejuízo da potencialidade de desenvolvimento embrionário regular após descongelamento.

A técnica, relativamente nova, anunciada a primeira utilização em 1983 na Austrália, consiste em revestir o pré-embrião de 1 a 3 dias por uma substância crioprotetora (glicerol), que o protegerá dos efeitos do congelamento. Não existe consenso sobre o tempo-limite para a conservação de um pré-embrião criopreservado. (OLIVEIRA; BORGES, 2000, p. 59).

O método de criopreservação é aplicado a partir da exposição do material a crioprotetores, seguido de desidratação e armazenamento em temperaturas abaixo de 100ºC negativos. Assim, interrompe-se a atividade metabólica na tentativa de minimizar os danos causados pelos cristais de gelo. (SILVA, 2002, p. 65).

Muito embora a criopreservação de blastocistos gere uma melhor expectativa de descongelamento eficaz, são os embriões em fase inicial de clivagem que obtém mais sucesso na transferência[46] (SILVA, 2002, p. 65).

Os óvulos fecundados não implantados ficam congelados na expectativa de verificar se a primeira tentativa de implantação foi – ou não – bem sucedida. “Para se ter uma idéia, apenas na França, no ano de 1997 existiam mais de 10.000 embriões congelados sem destino definido” (FERREIRA, 2006, p. 6).

Conforme se verificará no Capítulo 3, quando da análise da legislação e projetos de lei pertinentes, a criopreservação de pré-embriões é lícita quando com fins reprodutivos.

Contudo, não há consenso a respeito do tempo limite para crioconservação[47].

Conforme noticiado pelo Dr. Rodolfo Nunes na Audiência Pública referente à ADI sobre a Lei de Biossegurança, relatos recentes apontam implantações uterinas bem sucedidas após doze anos de congelamento (MESTRE..., 2007, sp).

Fábio Ferreira (2002, sp) afirma que a crioconservação é uma técnica paliativa, pois não resolve, apenas adia, o problema. Além disso, aduz que a criopreservação acarreta outras situações jurídicas conflituosas: supondo o posterior descongelamento e implantação, “qual o momento da aquisição de direitos: o da concepção ou o do nascimento?”.

Destarte, não importa o tempo que o embrião fique criogenado já que no momento em que se optar pelo descongelamento, ter-se-á que decidir sua destinação.

1.6.3.Destruição pura e simples

Para quem não considera o embrião fertilizado in vitro como um ser digno de proteção, não há problemas em simplesmente destruí-lo.

Em função do princípio da legalidade, tem-se que tudo aquilo que não for proibido por lei, é permitido aos particulares em geral. Assim, inexistindo proibição legal expressa ao descarte dos embriões excedentes, os médicos responsáveis não incorrem em crime algum ao destruírem embriões em estado pré-implantatório.

A corrente que “propõe de forma ‘simplista’ a destruição de embriões, filia-se à corrente genético-desenvolvimentista, que parte da idéia de que a gravidez somente se processa no interior do organismo humano” (PUSSI, 2005, p. 317).

Os adeptos da prática do descarte embrionário não consideram o concebido in vitro como um ser humano (PUSSI, 2005, p. 317).

Tanto o é que dados apresentados pela Federação Francesa dos CECOS[48], de 1986 a 1990, 4.498 casais confiaram ao CECOS a conservação de 17.337 embriões. Destes, 15% seguiram o destino escolhido por seus pais: a destruição simples (LEITE, 1995, p. 63-64).

Na Inglaterra, até o ano de 1996, foram destruídos mais de 5.000 embriões pelas clínicas de RHA (PUSSI, 2005, p. 315).

Dois grandes episódios de descartes são conhecidos, um na França, outro na Inglaterra. No primeiro caso a clínica não conseguira renovar sua autorização de funcionamento, razão por que dirigiu uma carta aos casais dando-lhes um mês de prazo para transferir os embriões para outra clínica, após o que tomariam o silêncio como desinteresse pela conservação, o que autorizaria seu extermínio. Na Inglaterra, buscou-se, em situação semelhante, promover a adoção e, como muitos pais não se manifestaram, optou-se por destruir os embriões (MINAHIM, 2005, p. 82).

É bem verdade que a Resolução 1.358/92 veda a destruição ou o descarte dos excedentes[49], mas trata-se apenas de orientação de cunho deontológico, sem vinculatividade jurídica alguma.

Ademais, apesar do texto da resolução, em decorrência da consulta nº 6.065/99, o Conselho Federal de Medicina respondeu: “O descarte de embriões com manifestação expressa dos cônjuges ou companheiros não pode ser considerado contrário à ética e deveria ser autorizado” (apud OLIVEIRA; BORGES, 2000, p. 73).

A resposta do CFM adota claramente o princípio bioético da autonomia como razão de decidir, pois o Conselho considerou indispensável o consentimento anterior dos beneficiários seja para o descarte, adoção ou utilização em pesquisas.

“Enquanto for permitido o descarte de pré-embriões, deverá prevalecer a vontade do casal manifestada de forma expressa em documento de consentimento informado [...], tendo em vista os princípios da bioética, especialmente o da autonomia” (OLIVEIRA; BORGES, 2000, p. 84).

Tem-se, portanto, a aceitação do descarte dos embriões excedentes como uma conduta aceita pelo órgão máximo da medicina brasileira[50].

Apesar disso, os projetos de lei brasileiros em tramitação adotam posições divergentes, não havendo consenso. É o que se verá em detalhes nos itens 3.2.6 e 3.2.7.

1.6.4. Doação para Pesquisas: Células-Tronco e Clonagem Terapêutica

As células-tronco, ou células estaminais, são células indiferenciadas dotadas da capacidade de se diferenciarem em diferentes tipos de tecidos.

A terapia com células-tronco aproveita-se desta capacidade de diferenciação na tentativa de “substituir tecidos lesionados ou doentes, ou células que o organismo deixa de produzir por deficiência” (ESPANHA..., 2004, sp).

O esquema abaixo demonstra bem esta capacidade de multi-diferenciação.

Ilustração 4 – Células pluripotentes (CÉLULA..., 2007, sp)

Há células-tronco adultas[51] e embrionárias.

Como somente as células-tronco embrionárias são totipotentes[52], são elas as mais cobiçadas para experimentos terapêuticos. Em especial aquelas retiradas de embriões humanos em estágio inicial de clivagem, “são consideradas a maior promessa para reconstituir tecidos humanos deficientes ou degenerados, o que pode ajudar na cura de doenças como Alzheimer, diabete e Parkinson” (ESPANHA, 2004, sp).

A discussão em torno da utilização dos pré-embriões envolve a polêmica sobre o momento do início da proteção jurídica à vida humana[53]. Veja-se:

A possibilidade da utilização dos pré-embriões para pesquisa científica traz novamente à tona as discussões em torno do início da vida e dos direitos assegurados aos pré-embriões, mas a tendência atual é considerar o pré-embrião como uma pessoa em potencial, sem contudo conferir a ele status legal, posição que permite a defesa da realização dos estudos. Entretanto, não há consenso, que só se verifica no sentido de que pré-embrião não é coisa e não pode ser objeto de comércio, com divergência ao tipo de proteção que ele deve receber, adotada pela maioria a posição de que não deve ser a mesma destinada àqueles implantados no útero materno (OLIVEIRA; BORGES, 2000, p. 75, grifou-se).

No que tange à pesquisa com embriões humanos para fins de extração de células-tronco, o cirurgião geral Rodolfo Nunes destaca que a tendência é o respeito absoluto ao ser humano. A partir de uma premissa ética, não se compreende como admissível, mesmo em nome do progresso científico, dispor de um ser humano para uma pesquisa que inviabilizará a sua vida (MESTRE..., 2007, sp).

Por ora, vale lembrar que a Nova Lei de Biossegurança – Lei 11.105/2005 – regulamentou a matéria em seu art. 5º, permitindo que células-tronco embrionárias obtidas de embriões excedentes inviáveis ou congelados há mais de 3 (três) anos na data da publicação desta lei, ou que, já congelados quando da publicação, assim que completarem 3 (três) anos de criopreservação, sejam utilizadas para pesquisa e terapia.

Não há consenso a respeito da pesquisa com embriões excedentes no direito comparado. Contudo, nos países onde ela é admitida, o 14º dia[54] após a fecundação é tido como limite.

O Conselho da Europa, por sua vez (1986), permite somente a investigação nos pré-embriões in vitro, quando em benefício do próprio embrião. Outras hipóteses de investigação só serão autorizadas, segundo o Conselho, com o consentimento informado dos produtores dos gametas, com autorização de um comitê de ética, ou ainda para se aperfeiçoar as técnicas de procriação artificial. O limite do décimo quarto dia também é imposto (OLIVEIRA; BORGES, 2000, p. 76).

Em se considerando que uma vida humana única e irrepetível se origina na fecundação, “poderíamos [...] nos questionarmos se é lícito fazer pesquisa com embriões com menos de 14 dias, bem como usar para pesquisa os embriões excedentes das clínicas de RHA que tenham, por exemplo, de 14 a 18 dias de fecundação” (PAZ, 2003, p. 67).

Posicionam-se contra as pesquisas deste tipo aqueles[55] que acreditam que o bem da sociedade não pode se dar a partir da morte de alguns indivíduos, ainda que em fase embrionária. Para esta corrente, a proteção do indivíduo sobrepõe-se ao interesse coletivo de possivelmente se encontrar a cura para determinadas doenças. Pode-se dizer que este tipo de raciocínio remonta ao pensamento de Claude Bernard, que em 1852 afirmou: “O princípio da moralidade médica e cirúrgica é nunca realizar um experimento no ser humano que possa causar-lhe dano, de qualquer magnitude, ainda que o resultado seja altamente vantajoso para a sociedade” (BERNARD apud GOLDIM, 2006, sp).

A dúvida que permeia o presente trabalho é o que fazer com os embriões excedentários. Há quem defenda que, se o descarte já vem sendo sistematicamente utilizado, não faz o menor sentido impedir que, para o bem da coletividade, sejam utilizados para pesquisas médicas.

Nesse conflito entre dignidade da pessoa humana e asseguramento da dignidade da vida, como decidir, quando se sabe que células-tronco retiradas de jovens embriões (período inicial de formação embrionária, durante a qual apresenta blastômeros dispostos em uma única camada, que termina com a fixação no útero, por volta do décimo quarto dia de existência) podem transformar-se em qualquer tecido, surgindo como recurso capaz de curar muitas doenças? (MINAHIM, 2005, p. 81).

Na prática, podem-se obter células-tronco embrionárias a partir da utilização de embriões excedentes oriundos de tentativas de FIV, quando presentes os requisitos legais para tanto[56], ou ainda pela técnica de clonagem terapêutica.

A clonagem terapêutica consiste na “transferência de núcleos de uma célula para um óvulo sem núcleo. O novo óvulo, ao dividir-se, gera, em laboratório, células-tronco” (ESPANHA..., 2004, sp). As células oriundas destas sucessivas divisões conterão o mesmo material genético daquela célula que doou o núcleo. Por esta razão, “o melhor e mais forte argumento a favor da técnica é que será eliminada toda a ameaça de rejeição ou incompatibilidade de órgão, problema muito comum nos transplantes tradicionais” (DINIZ, G., 2003, p. 80).

Ilustração 5 – Clonagem Terapêutica (CÉLULA, 2007, sp)

De acordo com o pensamento de Kant, o preceito máximo da dignidade da pessoa humana fica bem representado pela expressão: o homem é um fim em si mesmo. Assim, não haveria que se admitir a utilização de um indivíduo (pré-embrião) como um meio para qualquer outra finalidade[57], tais quais experimentação com células-tronco ou clonagem terapêutica.

A grande crítica dos oposicionistas à pesquisa baseava-se na morte do embrião fornecedor das células tronco.

Contudo, em agosto de 2006 uma empresa de biotecnologia norte-americana[58] anunciou ter desenvolvido uma técnica que possibilita a extração de células-tronco embrionárias, sem inviabilizar o desenvolvimento do embrião.

Retira-se uma única célula de um embrião de dois dias, que contém cerca de oito blastômeros. Os sete restantes podem se desenvolver normalmente, não implicando morte do embrião. “Pelo método antigo, o material que dá origem à linhagem de células-tronco é retirado do interior de embriões mais desenvolvidos, com cinco dias. Nessa fase, o embrião não resiste à retirada de células de seu centro” (COSTAS, 2006, p. 86).

O novo método foi esquematizado pela revista Nature e disponibilizado no website do jornal The Washington Post:

Ilustração 6 – Célula-tronco sem destruição embrionária[59] (HAMBLING; CLARCK, 2006, sp)

Com a comprovação da possibilidade de se extrair células-tronco sem destruir o embrião, é possível desconstituir o “principal argumento do lobby conservador que tenta atravancar o progresso científico nos Estados Unidos, na Europa e até no Brasil” (COSTAS, 2006, p. 86).

Todavia, os conservadores trouxeram à tona um novo argumento, afirmando que qualquer tipo de manipulação com embriões humanos desrespeita a vida e deve ser proibida. Como diz Ruth Costas (2006, p. 86), “de nada adianta uma lanterna para quem não quer abrir os olhos”.

De qualquer maneira, o que determinará a possibilidade ou não de utilização dos embriões excedentários para extração de células-tronco é o status jurídico a ele atribuído.

1.6.5 .Doação para outro Casal e Comercialização de Pré-Embriões

Pode-se dizer que, ao cogitar a hipótese de adoção, admite-se a incapacidade da ciência em dominar completamente as técnicas de RA.

É que, conforme assevera Eduardo de Oliveira Leite (1995, p. 63),

hipoteticamente, para cada óvulo recolhido e implantado deveria corresponder um novo ser. A prática demonstrou o oposto, obrigando as equipes médicas a coletarem diversos óvulos (o que provoca, normalmente, a obtenção de vários embriões) [...]. Por isso, atualmente as equipes de FIVETE [...] limitaram o número de embriões transferidos a 3 ou 4, de forma que sempre restam embriões excedentes que são congelados, ou são utilizados em pesquisas laboratoriais ou são simplesmente destruídos.

A adoção sem fins lucrativos é uma alternativa interessante para os embriões excedentes criogenados. A exemplo do que acontece com a adoção tradicional, a adoção de embriões deve ser pautada por princípios que visem o melhor interesse da criança ou do embrião.

Pode-se dizer que a adoção de embriões é vantajosa para os embriões criopreservados, posto que podem contar com outras tentativas de implantação (FRANÇA, 2004, p. 247).

É bem verdade que a adoção também apresenta empecilhos de ordem emocional, técnica e econômico-financeira, porquanto os embriões precisam ser mantidos congelados até a implantação e isto gera custo. “Entretanto, esta forma de escolha juntamente com a produção de embriões para uma única implantação seriam as modalidades que não encontrariam os óbices já apontados” (FRANÇA, 2004, p. 247).

A Resolução nº 1.358/92, do Conselho Federal de Medicina, sintetiza a posição majoritária ao determinar que “a doação[60] nunca terá caráter lucrativo ou comercial” (LEITE, 1995, p. 431).

Tycho Brahe Fernandes opina pela proibição de qualquer forma de comercialização de embriões. Contudo, não impõe óbice à adoção gratuita (2000, p. 122).

Embora a questão enseje fervoroso debate, a opção deve se dar em observância à dignidade humana. A este respeito, maiores considerações serão tecidas no Capítulo 4.

Sobre a autora
Gabriela Lucena Andreazza

Advogada, professora de Direito Notarial e Registral.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDREAZZA, Gabriela Lucena. A personalidade jurídica dos embriões excedentários e a dignidade da pessoa humana . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3391, 13 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22778. Acesso em: 22 nov. 2024.

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