“Eu acredito no respeito pelas crenças de todas as pessoas, mas gostaria que as crenças de todas as pessoas fossem capazes de respeitar as crenças de todas as pessoas” (José Saramago)
O dilema da blasfêmia está em alta. Depois da contundente repercussão mundial decorrente da malsinada e tosca produção norte-americana, a discussão abriu-se mais uma vez. O eterno debate entre a Liberdade de Expressão e o Respeito ao Sentimento Religioso espalhou-se novamente pelo mundo, permeando todo o meio acadêmico e político, as redes sociais e as rodas de amigos. Todas as pessoas têm uma opinião muito bem formada a respeito do assunto e são capazes de apreciar e julgar o episódio de uma maneira bastante simples e pragmática. Afinal, este é um daqueles temas que reclamam muito mais uma experiência empírica e pessoal do que o conhecimento técnico e jurídico.
E o motivo é óbvio. A religiosidade faz parte do ser humano, seja pela fé, ou pela falta dela. A ausência de crença não deixa de ser uma convicção de cunho religioso.
A mim chamou a atenção, além do questionamento meritório em si próprio, um outro argumento: o que recomenda coibir o ato tido por provocativo quando há risco à paz e à ordem pública. E lembrei-me, então, da fórmula de Schenck, do emblemático caso da Suprema Corte Americana de 1919.
Charles Schenck, ocupando o cargo de secretário do partido Socialista Americano, fez distribuir quinze mil folhetos a potenciais soldados a serem recrutados durante a Primeira Guerra Mundial. Basicamente, o texto estimulava os candidatos a se oporem ao recrutamento, sob o argumento de que constituía servidão involuntária e, portanto, contrária à Décima-Terceira Emenda.
O secretário foi condenado com base na Lei de Espionagem e recorreu à Suprema Corte, oportunidade em que sustentou que a condenação violava a Primeira Emenda. Em decisão unânime, o apelo não foi aceito ao argumento de que as circunstâncias de guerra justificavam a permissão de maiores restrições à Liberdade de Expressão do que seria permitido em tempo de paz. No trecho decisório mais famoso dos Estados Unidos, o Juiz Oliver Wendell Holmes, Jr. assim asseverou:
“The most stringent protection of free speech would not protect a man in falsely shouting fire in a theatre and causing a panic. [...] The question in every case is whether the words used are used in such circumstances and are of such a nature as to create a clear and present danger that they will bring about the substantive evils that Congress has a right to prevent”
Em tradução livre, isso representa dizer que não há proteção, sob a ótica da Liberdade de Expressão, àquele que, falsamente, grita “fogo” em um teatrolotado. E aqui nasceu o famoso teste conhecido como “clear and present danger”.
A Jurisprudência americana evoluiu para a menos restritiva fórmula “badtendency”, concernente à possibilidade de incitação ou provocação de atividade ilegal por resultado da manifestação. O standard perdurou até o caso Brandenburg v. Ohio (1969), quando foi substituído pelo paradigma "imminentlawlessaction", que subsiste até hoje, e que abrange três elementos: intenção, iminência e probabilidade de ocorrência de ato criminoso decorrente do discurso.
Como é facilmente perceptível, as decisões de ordem política e judicial acerca da vedação de certos discursos não se exaurem no campo meritório. Em termos abstratos, parece intuitivo que, em tese, determinadas manifestações podem, quanto a seu objeto, ser plenamente justificáveis à luz do Direito, na medida em que a tolerância é via de duas mãos e que a lei, a princípio, também não há de proteger suscetibilidades exacerbadas. Mas não é assim que as coisas têm se resolvido.
Observa-se que, a par da questão moral e filosófica que há de nortear a valoração dos dois bens jurídicos, os agentes públicos têm lançado mãodo critério objetivo de avaliação do risco decorrente da expressão questionada, tudo em nome da garantia da segurança.
Por um lado, é perfeitamente válido e legítimo adotar-se esta opção. Não há quem defenda que, em nome da mera discussão retórica, coloquem-se a perigo a paz, a integridade física e a vida das pessoas.
De outra parte, há que se reconhecer que o recuo diante da iminente ameaça esvazia a própria discussão de mérito e põe freio ao atrito capaz de impulsionar mudança, estimular tolerância e promover o respeito recíproco.
E é por estas razões que se constatam diferentes diretrizes para cada caso concreto. Não se trata de usar dois pesos e duas medidas. Trata-se de incluir na equação um terceiro elemento, que é concernente à tranquilidade social na qualidade de bem a ser garantido e tutelado pelo Estado.
Evidentemente, este breve texto não tem a pretensão de dar respostas conclusivasquanto à solução ideal para cada situação. Com efeito, presta-se ele apenas como um indicador dos motivos para a vedação, ou não, de determinadas formas de expressão em hipóteses individualizadas.
Se a Jurisprudência americana nem sempre se amolda ao ordenamento jurídico brasileiro, é possível dizer-se que, quanto a esta específica matéria, aquele critério é perfeitamente capaz de adequar-se à nossa realidade, pois aqui também se toma em consideração a potencialidade do dano.
E digo isso porque, na mesma semana em que uma revista publicou em sua capa a montagem de um jogador de futebol sobre uma cruz, uma decisão judicial determinou a retirada do filme alusivo a Maomé do “YouTube”. Se as diferentes crenças merecem a mesma proteção estatal, somente mesmo aquele paradigma para explicar este interessante paradoxo.