As normas penais podem ser completas e incompletas. Completas são as que definem o delito de maneira precisa e determinada, não necessitando de nenhum complemento. Ex.: Pedro, dolosamente, mata José. O fato se enquadra imediatamente no art. 121, caput, do CP, que descreve o crime de homicídio doloso. Leis penais incompletas, também denominadas "cegas", "abertas" ou normas penais em branco, são disposições incriminadoras cuja sanção é certa e precisa, permanecendo indeterminado o seu conteúdo. Este é completado por um ato normativo, de origem legislativa ou administrativa, em geral de natureza extrapenal, que passa a integrá-lo.[2] Ex.: nos termos do art. 168-A do CP,[3] que define a apropriação indébita previdenciária, constitui delito o fato de "deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e na forma legal" (ou convencional; itálico nosso). Qual é o prazo? A norma não o menciona, cumprindo buscá-lo na Lei de Custeio da Previdência Social (arts. 30, I, "b", V e 31). A sanção vem determinada,[4] ao passo que a definição legal do crime é incompleta, condicionada a dispositivos extrapenais. De modo que, nesses casos, a adequação típica depende do complemento de outras normas jurídicas ou da futura expedição de certos atos administrativos (regulamentos, portarias, editais etc.). A pena é imposta à transgressão (desobediência, inobservância) de uma norma (legal ou administrativa) a ser emitida no futuro.
A doutrina costuma classificar as normas penais em branco em:
a) normas penais em branco em sentido lato (impróprias ou homogêneas);
b) normas penais em branco em sentido estrito (próprias ou heterogêneas).[5]
Normas penais em branco em sentido lato são aquelas em que o complemento é determinado pela mesma fonte formal. O órgão encarregado de elaborar o complemento é o mesmo órgão editor da lei incriminadora em branco (homogeneidade de fontes). Ex.: o art. 178 do CP incrimina o fato de "emitir conhecimento de depósito ou warrant, em desacordo com disposição legal" (segundo itálico nosso). Que disposição legal? O conteúdo incriminador não se apresenta preciso. O complemento é a "disposição legal" que regula os institutos do conhecimento de depósito e do warrant. As fontes formais são homogêneas, uma vez que também compete à União legislar sobre Direito Comercial.
São normas penais em branco em sentido estrito aquelas cujo complemento está contido em norma procedente de outra instância legislativa ou administrativa (fontes legislativas heterogêneas). Exs.:
1.º) a Lei n. 8.137, de 27.12.1990, impondo sanção criminal a quem vende ou oferece à venda mercadoria por preço superior ao oficialmente tabelado, subordina a tipicidade do fato à subseqüente expedição de portarias ou editais administrativos com as tabelas de preços (art. 6.º, I);
2.º) o processo de adequação típica do crime de tráfico de drogas[6] depende de complemento,[7] uma vez que somente é considerada substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica a que estiver: 1) especificada em lei; ou 2) relacionada pelo Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina e Farmácia do Ministério da Saúde. Não se encontrando a substância especificada em lei ou relacionada em portaria etc., o fato é atípico;[8]
3.º) o art. 359-A do CP, mandado introduzir pela Lei n. 10.028, de 19.10.2000, em seu par. ún., I, considera delito o fato de ordenar, autorizar ou realizar operação de crédito, interno ou externo, com inobservância de limite, condição ou montante estabelecido em lei ou em resolução do Senado Federal. De maneira que o tipo pode ser completado por simples resolução do Senado da República.
Na segunda espécie de normas penais em branco, verifica-se que, havendo possibilidade de o complemento ser elaborado por autoridades municipais e estaduais, e anotando que só a União pode legislar sobre Direito Penal, excepcionalmente o conteúdo da lei penal incriminadora pode ser integrado por fonte ou órgão que não aquela. A observação é relevante, tendo em vista que as normas penais em branco causam considerável indeterminação no conteúdo do tipo, enfraquecendo sua função de garantia, pois fazem às vezes depender de órgão ou fonte que não a União a própria existência do fato punível.[9]
Na doutrina espanhola e alemã, dividem-se os autores em três correntes sobre a extensão das leis penais em branco: extensiva, restritiva e intermediária.[10]
De acordo com a posição extensiva, o conceito de norma penal em branco abrange todos os casos em que "uma disposição não consigna em si mesma seu pressuposto de fato, incluindo a hipótese em que o complemento necessário se encontra em outro preceito da própria lei à qual remete de forma explícita".[11]
Para a tese restritiva, somente configura norma penal em branco a que remete o aplicador a uma instância legislativa inferior, seja penal ou extrapenal.[12]
A corrente intermediária[13] considera leis penais em branco as que apresentam complemento situado fora do tipo, independentemente da questão da homogeneidade ou heterogeneidade de instâncias legislativas.[14] Nelas, o complemento é fornecido por outras leis, regulamentos e atos administrativos.[15]
Preferimos a posição intermediária, mantendo a classificação bipartida, uma vez que inexiste razão para considerar norma penal em branco somente aquela em que o complemento procede de instância legislativa ou órgão administrativo inferior. Além disso, como ensina GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, todas as questões relacionadas com o erro sobre o conteúdo e alcance da norma extrapenal e sobre a retroatividade da lei mais favorável recebem o mesmo tratamento, solução possível na tese eclética, que não discrimina a natureza e classe do complemento.[16]
Foi Binding quem pela primeira vez usou a expressão "lei em branco" para batizar aquelas leis penais que contêm a sanctio juris determinada, porém o preceito a que se liga essa conseqüência jurídica do crime não é formulado senão como proibição genérica, devendo ser completado por outra lei (em sentido amplo).[17] Na Alemanha, recorda PEDROSA MACHADO, esse conceito foi empregado para permitir ao Código Penal do Reich deixar "a determinação da hipótese de fato nas mãos dos Estados federados (Länder) ou dos municípios".[18] De modo que, historicamente, a norma penal em branco caracteriza-se pela circunstância da delegação ou autorização de uma instância legislativa superior para que um órgão inferior a complete. Daí a qualificação em branco, dando a entender que o órgão superior outorga carta branca ao inferior no sentido de completar o tipo incriminador. Esse fundamento histórico, porém, não se mostra suficiente para impedir que se reconheça como norma penal em branco a que remete a outra lei ou disposição da mesma fonte legislativa.
A norma penal em branco não se confunde com o tipo aberto, aquele que não apresenta a descrição típica completa e exige uma atividade valorativa do Juiz. Nele, o mandamento proibitivo inobservado pelo sujeito não surge de forma clara, necessitando ser pesquisado pelo julgador no caso concreto.[19] São hipóteses de crimes de tipo aberto:
a) delitos culposos: neles, é preciso estabelecer qual o cuidado objetivo necessário descumprido pelo autor;
b) crimes omissivos impróprios: dependem do descumprimento do dever jurídico de agir (CP, art. 13, § 2.º);
c) delitos cuja descrição apresenta elementos normativos ("sem justa causa", "indevidamente", "astuciosamente", "decoro", "dignidade", "documento", "funcionário público" etc.): a tipicidade do fato depende da adequação legal ou social do comportamento, a ser investigada pelo julgador diante das normas de conduta que se encontram fora da definição da figura penal.
Assim, diferenciam-se normas penais em branco e elementos normativos do tipo (c). Nestes casos, não se cuida de uma complementação do tipo por meio da aplicação de outro mandamento derivado da mesma instância ou inferior, como nas normas penais em branco, e sim da compreensão da existência ou não de violação do dever de agir ou de não agir em face de regras legais e de cultura.
Neste tema, cumpre não esquecer o princípio fundamental de "conformidade à Constituição":[20] é necessário, seja o tipo aberto ou remetido, haja elemento normativo ou se apresente caso de norma penal em branco, que a interpretação e a aplicação da lei se realizem obedecidos os princípios constitucionais, sob pena de atipicidade do fato.
Notas
1.A idéia de escrever este pequeno artigo surgiu da leitura do trabalho "Breve confronto entre normais penais em branco e tipos abertos", de MIGUEL PEDROSA MACHADO, Livro de Estudos Jurídicos, Rio de Janeiro, Instituto de Estudos Jurídicos, 1995, 11:147. Vide sobre o assunto: ANTONIO DOVAL PAIS, Posibilidades y límites para la formulación de las normas penales. El caso de las leyes em blanco, València, Universitat de València, 1999.
2.LUIZ REGIS PRADO, Curso de Direito Penal Brasileiro, Parte Geral, São Paulo, RT, 1999, p. 93.
3.Disposição introduzida pela Lei n. 9.983, de 14.7.2000.
4.Reclusão, de 2 a cinco anos, e multa.
5.No Brasil, por todos: MAGALHÃES NORONHA, Direito Penal, Introdução e Parte Geral, atualiz. por Adalberto José Q. T. de Camargo Aranha, São Paulo, Saraiva, 2000, p. 48; DELMANTO & DELMANTO, Código Penal comentado, Rio de Janeiro, Renovar, 2000, p. 9.
6.Art. 12 da Lei n. 6.368, de 21.10.1976.
7.Nesse sentido: RT, 522:361 e 566:283; STF, HC n. 68.904, RTJ, 139:216; STF, HC n. 69.904, 2.ª T., RTJ, 139:216; TAMG, ACrim n. 120.413-5, RJTAMG, 46:413; STJ, ROHC n. 9.800, 5.ª T., Rel. Min. Félix Fischer, DJU 29.5.2000, p. 66 e 67.
8.Nesse sentido: STF, HC n. 69.411, RTJ, 143:208 e 210; RT, 672:308; TJSP, RT, 670:280 e RJTJSP, 130:496; TJSP, ACrim n. 105.382, RT, 682:307; JTACrimSP, 62:182; Jurisprudência Mineira, 105:231.
9.FRANCISCO MUÑOZ CONDE e MERCEDES GARCÍA ARÁN, Derecho Penal, Parte General, València, Tirant lo Blanch, 1996, p. 38.
10.ANTONIO GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Derecho Penal, Introducción, Madri, Universidade Complutense, 2000, p. 258, n. 4.
11.ANTONIO GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, op. e loc. cits. No mesmo sentido: RODRÍGUEZ DEVESA, Derecho Penal español, Parte General, p. 153.
12LUZÓN PEÑA, Curso de Derecho Penal, Parte General, 1996, p. 148.
13.Vencedora na doutrina espanhola.
14.MIR PUIG, Derecho Penal, Parte General, 5.ª ed., p. 34 e 35.
15.MIR PUIG, op. cit., p. 35.
16.Op. cit., p. 261; MIR PUIG, p. 34 e 35.
17.Vide sobre o assunto: SOLER, Derecho Penal argentino, Buenos Aires, TEA, 1976, I:122.
18.Idem, p. 149.
19.No Brasil, nesse sentido: MIRABETE, Manual de Direito Penal, Parte Geral, São Paulo, Atlas, 1998, p. 50.
20.MIGUEL PEDROSA MACHADO, idem, p. 151.