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Tipos penais: princípios ou regras?

Agenda 13/11/2012 às 15:47

Os tipos penais devem ser analisados de acordo com o caso concreto, sendo impossível classificá-los como princípios ou regras de maneira abstrata e desprendida das especificidades de cada situação.

Introdução

A existência de normas é essencial para o convívio em sociedade. Nos primórdios valia a lei do mais forte. Já passamos pela lei de talião (olho por olho, dente por dente), pelo código de Hamurabi etc. Com o passar do tempo, a sociedade foi evoluindo e com ela também evoluíram as leis.

Já vivemos períodos inquisitoriais, absolutistas, feudalistas, ditatoriais  e passamos por duas guerras mundiais. Hoje, todavia, a sociedade mundial vive em razoável harmonia. A partir do iluminismo, que influenciou a Revolução Francesa de 1789, as constituições ganharam força, assim como a vontade da população. Os direitos fundamentais passaram a ser valorizados e foi imposto um limite ao poder do Estado. Desde então, a democracia, de um modo geral, só se fortaleceu.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, ganharam força os tratados internacionais, que vieram com o objetivo de reforçar os direitos humanos e, de certa forma, limitar a soberania dos Estados. A teoria positivista perdeu força, principalmente devido aos absurdos praticados em nome e sob o amparo da Lei. Esta época está emblematicamente ligada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, movimentos que promoveram a barbárie baseados na Lei.

Foi nesse contexto que nasceu o denominado pós-positivismo, na segunda metade do século XX. Dentre as suas principais características, se destacam a importância dada aos valores, à proteção e promoção da dignidade da pessoa humana, elevada a um patamar de valor constitucional supremo.

Nas lições de Luís Roberto Barroso, este movimento “não surge com ímpeto da desconstrução, mas como uma superação do conhecimento convencional. Ele inicia sua trajetória guardando deferência relativa ao ordenamento positivo, mas nele reintroduzindo as ideias de justiça e legitimidade”.[1]

A partir de então, as leis passaram a ser influenciadas e interpretadas com base em valores éticos universais, que estão além da norma jurídica emanada do Estado. Foi com o pós-positivismo que os princípios ganharam força, uma vez que eles caracterizam a síntese dos valores abrigados pelo ordenamento jurídico. Assim, com a ascensão dos princípios, as normas passaram a se dividir em duas espécies: normas-princípios e normas-regras.

Consequentemente, a interpretação e o interprete também ganharam força, pois só assim uma lei consegue evoluir e resistir ao tempo sem sequer ser alterada. Humberto Ávila nos ensina o seguinte:

“Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. Daí se afirmar que os dispositivos se constituem no objeto da interpretação; e as normas, no seu resultado. O importante é que não existe correspondência entre norma e dispositivo, no sentido de que sempre que houver um dispositivo haverá uma norma, ou sempre que houver uma norma deverá haver um dispositivo que lhe sirva de suporte.”[2]

De acordo com o autor, em alguns casos há norma, mas não há dispositivo que lhe dê suporte. Como exemplo, podemos citar o princípio da segurança jurídica ou o princípio da insignificância. Em outros casos, prossegue o autor, há dispositivo, mas não há norma, citando o exemplo do enunciado constitucional que prevê a proteção de Deus.[3]

Por tudo isso, podemos concluir que o interprete não só constrói, mas também reconstrói sentidos, sempre baseado e limitado pelo dispositivo analisado. Daí se dizer que interpretar é construir a partir de algo. A uma, porque tem como ponto de partida os textos normativos, que, por sua vez, oferecem limites à construção de sentidos. A duas, porque manipula a linguagem, à qual são incorporados núcleos de sentidos.[4]

Baseado nessas considerações, o objetivo desse trabalho é discutir a interpretação dos tipos penais e defender a idéia de que eles devem ser analisados de acordo com o caso concreto, sendo impossível classificá-los como princípios ou regras de maneira abstrata e desprendida das especificidades de cada situação.

Tendo em vista que o estudo do Direito Penal e Processual Penal envolve aqueles bens jurídicos tidos como os mais importantes para a sociedade, é imprescindível que a interpretação de seus dispositivos seja efetivada da maneira mais acurada possível, evitando injustiças por parte do Estado. Ao longo deste estudo perceberemos que alguns dispositivos penais e processuais penais classificados como regras, são, na verdade, princípios, e que alguns princípios são, na verdade, regras, ou, ainda, que em um mesmo dispositivo nós podemos encontrar um conteúdo de regra e outro de princípio.

Passemos, então, a este complexo estudo.


Princípios e Regras: distinção

De maneira didática e sintética, Marcelo Novelino nos fornece alguns critérios de distinção entre princípios e regras. [5]

Pelo critério da abstratividade, o pressuposto fático das regras prevê inúmeros casos homogêneos, enquanto o dos princípios caracteriza-se pela possibilidade de abranger uma heterogeneidade. Em outras palavras, a hipótese de incidência de uma regra é mais restrita e delimitada a certas situações específicas. Nos princípios, por outro lado, a hipótese de incidência é mais aberta, o que permite a sua aplicação em casos variados. Por isso costuma-se dizer que os princípios são mais abstratos que as regras.

Já pelo critério da dimensão, a distinção entre princípios e regras não é apenas gradual, mas também qualitativa. Baseado na concepção de Robert Alexy, Novelino ensina que a diferença entre as espécies normativas está no fato de que as regras suscitam apenas problemas de validade, enquanto os princípios, além da validade, suscitam a questão da importância ou valor. No conflito entre regras, uma deve ser excluída por ser inválida. O conflito entre princípios, todavia, é resolvido por meio da ponderação de valores e interesses envolvidos no caso concreto. No confronto de princípios, portanto, não há declaração de invalidade de um deles.

Ao explicar o entendimento de Ronald Dworkin, Humberto Ávila nos ensina que as regras são aplicadas ao modo tudo ou nada (all-or-nothing), o que significa que, se a hipótese de incidência de uma regra é preenchida, ou ela é considerada válida e sua conseqüência normativa deve ser aceita, ou ela não é considerada válida. Os princípios, por outro lado, não têm a mesma capacidade, sendo que seus fundamentos devem ser conjugados com outros fundamentos provenientes de outros princípios. É nesse sentido que se defende que os princípios possuem uma dimensão de peso, uma vez que, em conflito, deve prevalecer aquele que apresentar um maior valor de acordo com o caso concreto, sem que o outro perca sua validade.[6]

Explicando de outra maneira, caso a hipótese de incidência de uma regra seja constatada, ela deve ser aplicada invariavelmente, não sobrando espaços para ponderações do interprete. Diferentemente da regras, os princípios podem ser superados ou derrogados por outros princípios colidentes.

Outro critério de distinção entre as espécies normativas que merece destaque, se refere à natureza do comportamento prescrito. Enquanto as regras descrevem o comportamento a ser adotado pelo seu destinatário, os princípios estabelecem fins a serem alcançados. Nas regras há uma maior exatidão do comportamento devido, enquanto nos princípios o aplicador tem a possibilidade de escolher o comportamento mais adequado para se atingir determinado fim.

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Ao instituir uma regra o legislador prevê a possibilidade de conflito e já impõe uma solução adequada ao caso. Em se tratando dos princípios, não há essa previsão, uma vez que eles buscam um estado ideal a ser alcançado. Desse modo, Humberto Ávila afirma que as regras assumem caráter retrospectivo, na medida em que descrevem uma situação de fato já conhecida pelo legislador; os princípios, ao contrário, possuem um caráter prospectivo, vez que estabelecem um estado de coisas a ser construído.[7]

Diante do exposto neste ponto, já podemos ter uma idéia da distinção entre regras e princípios. Entretanto, somos adeptos das críticas feitas por Humberto Ávila, que desbancam todos os argumentos aqui apresentados e, portanto, merecem ser estudadas de maneira mais detida, especialmente quando relacionadas ao Direito Penal e Processual Penal.


Teoria Crítica de Humberto Ávila[8] e suas Conseqüências no Direito Penal e Processual Penal

No ponto anterior nós estudamos os principais critérios abordados pela maior parte da doutrina para distinguir princípios e regras. Entretanto, todos estes critérios são questionados por  Humberto Ávila no seu festejado livro “Teoria dos Princípios”. É o que passaremos a estudar.

Começamos este ponto analisando o critério de distinção que estabelece que as regras devem ser aplicadas ao modo tudo ou nada, já que não poderiam ser superadas por normas contrapostas, enquanto os princípios poderiam ser superados ou derrogados por outros princípios. Seguindo o escólio de Humberto Ávila, defendemos que tal raciocínio não é exato, especialmente na esfera criminal.

Como exemplo, citamos o artigo 217-A, do Código Penal, que institui o delito de estupro de vulnerável. De acordo com o dispositivo, é crime ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos. Numa análise superficial, podemos concluir que estamos diante de uma norma-regra, uma vez que sua hipótese de incidência é clara e, portanto, sua conseqüência deve ser imposta. Na mesma linha, por se tratar de uma regra, ela não poderia ser superada por uma norma contraposta (aplicação ao modo tudo ou nada).

Há, no caso, uma presunção de violência na relação sexual praticada com menor de 14 anos. Percebam que o tipo penal não prevê qualquer exceção. Contudo, este dispositivo deve ser analisado e interpretado dentro do contexto fático específico, principalmente porque a sua imposição irá atingir um direito fundamental extremamente importante (o direito de liberdade de quem manteve relação sexual com menor de 14 anos).

Nesse sentido, a terceira seção do Superior Tribunal de Justiça decidiu recentemente que a presunção de violência do crime de estupro tem caráter relativo e pode ser afastada diante das especificidades do caso concreto. O entendimento da relatora, Maria Thereza de Assis Moura, foi no sentido de que não se pode considerar crime o ato que não viola o bem jurídico protegido pelo tipo penal – no caso, a dignidade sexual.

A decisão retrata uma situação em que o réu era acusado de manter relação sexual com menores de 14 anos que se prostituíam havia tempos quando do suposto crime. Ora, se as meninas já praticavam o ato sexual desde muito antes do ocorrido, elas, consequentemente, já tinham a perfeita noção do que faziam, o que afasta a presunção de violência prevista na norma.

Conforme mencionado alhures, o direito não é estático e o papel da interpretação e do intérprete é essencial para adequar a aplicação das normas às evoluções da sociedade. Dentro desse contexto, o tipo do artigo 217-A do Código Penal, deve ser analisado de acordo com o caso concreto, não podendo incidir de maneira absoluta e imediata, sem que se realizem as ponderações devidas. Circunstâncias particulares não previstas na norma, como a aparência da vítima, seu histórico de vida, sua conduta social etc. também devem ser considerados no momento da tipificação da conduta.

O exemplo acima deixa claro que a aplicação de uma regra não é absoluta (modo tudo ou nada) e pode ser superada por razões não previstas no tipo penal. Nas lições de Humberto Ávila

“.... no caso da aplicação de regras o aplicador também deve considerar elementos específicos de cada situação, embora sua utilização dependa de um ônus de argumentação capaz de superar as razões para o cumprimento da regra. A ponderação é, por conseqüência, necessária. Isso significa que o trabalho distintivo não é o tipo de obrigação instituído pela estrutura condicional da norma, se absoluta ou relativa, que irá enquadrá-la numa ou noutra categoria de espécie normativa. É o modo como o intérprete justifica a aplicação dos significados preliminares dos dispositivos, se frontalmente finalístico ou comportamental, que permite o enquadramento numa ou noutra espécie normativa”. [9]

Na visão do autor -  com a qual concordamos – mesmo em se tratando de uma regra, será possível a sua superação diante das circunstâncias do caso concreto. O importante, nessas situações, é a argumentação utilizada pelo operador do Direito, que deverá ser muito bem desenvolvida e fundamentada.

O critério do conflito normativo também deve ser avaliado no âmbito penal ou processual penal, senão vejamos. De acordo com a doutrina, a antinomia entre regras deve ser resolvida com a declaração de invalidade de uma delas ou com a criação de uma exceção. Já o conflito entre princípios deve ser solucionado mediante ponderação, sem que um deles seja declarado inválido.

Como já pudemos perceber, a ponderação de valores não é exclusiva dos princípios, podendo ser utilizada também na interpretação de regras. Deve ser superado o entendimento de que quando duas regras entram em conflito, uma delas deve ser declarada inválida. Trata-se de qualidade contingente, mas não necessária. [10]

Para melhor ilustrar o assunto, destacamos o seguinte exemplo. Um motorista é surpreendido por um radar eletrônico trafegando por uma via pública nas imediações de uma escola e em velocidade superior ao limite legal. A norma que institui o limite de velocidade, dentro do critério ora analisado, seria uma regra e, portanto, não poderia admitir ponderações do intérprete. Dessa forma, o motorista do nosso exemplo deveria ser penalizado com uma multa e responder pelo crime previsto no artigo 311 do Código de Trânsito Brasileiro.

Contudo, analisando as especificidades do caso, considerando que o motorista só estava em velocidade incompatível com o local porque seu pai estava tendo um ataque cardíaco, muito embora a hipótese normativa tenha sido concretizada, o Departamento de Trânsito pode deixar de aplicar a multa e o Juiz pode absolvê-lo com base em razões extraídas de outras normas.

Não é outro o magistério de Humberto Ávila:

“As outras razões, consideradas superiores à própria razão para cumprir a regra, constituem fundamento para o seu não-cumprimento. Isso significa, para o que se está agora a examinar, que o modo de aplicação da regra, portanto, não está totalmente condicionado pela descrição do comportamento, mas que depende do sopesamento de circunstâncias e de argumentos.”[11]

Voltando ao exemplo acima, nos parece claro o confronto entre duas regras: trafegar em velocidade incompatível com o local (art.311 do CTB) versus estado de necessidade (art.24 do CP). Entretanto, mesmo em se tratando de um confronto entre regras, uma não será declarada inválida em prejuízo da outra. Na hipótese de relação entre elas, mesmo que o operador do Direito opte pela aplicação de apenas uma, isso não significa que a outra em nada contribuiu para a decisão final, uma vez que ela pode ser utilizada como contraponto valorativo para a interpretação da própria regra aplicável.[12]

Também o critério da dimensão do peso ou valor não se sustenta na distinção entre as espécies normativas, sendo que no âmbito penal ele ganha maior relevância.

Para facilitar o entendimento do leitor, socorremo-nos ao artigo 155 do Código Penal, que descreve o crime de furto. De acordo com o dispositivo, é crime subtrair coisa alheia móvel. A descrição da norma é clara e em sendo constatada a sua hipótese de incidência, ela deve ser aplicada (isso para os adeptos dessa teoria). Assim, se uma pessoa subtrair um único sabonete de um hipermercado, ela deve ser presa em flagrante pelo crime de furto.

Ocorre que, com base no princípio da insignificância, que afasta a tipicidade material do fato, esta conduta tem sido encarada como atípica pela maior parte da doutrina e jurisprudência. Isto, pois, o bem jurídico protegido pelo tipo não sofreu uma lesão significativa a ponto de merecer a proteção do Direito Penal. Baseado nessa argumentação, o interprete pode afastar a incidência do crime em casos específicos.

Na verdade, o princípio da insignificância constitui um exemplo claro de como a argumentação do intérprete pode ser utilizada para afastar a incidência de uma regra. O mencionado princípio nada mais é do que uma criação da doutrina, que foi acolhida pela jurisprudência e tem por objetivo afastar o crime sempre que a lesão ao bem jurídico protegido pelo tipo penal for irrisória. Salta aos olhos, destarte, que o critério da dimensão do peso ou valor não é exclusivo dos princípios, podendo ser aplicado às regras, dependendo, como sói, da argumentação do intérprete.

Outro dispositivo que merece análise é aquele previsto no artigo 313, inciso I, do Código de Processo Penal, que estabelece que a prisão preventiva só possa ser decretada para os crimes cujas penas máximas cominadas sejam superiores a quatro anos de prisão. Numa análise superficial dessa norma, concluímos que se trata de uma regra, haja vista que a sua previsão é clara e não deixa espaço para interpretações. Ou o crime tem pena superior a quatro anos de prisão e está sujeito à decretação desta medida cautelar extrema ou sua pena é inferior, o que impossibilita a sua adoção.

Contudo, se analisarmos esse dispositivo com base nos ensinamentos  propostos acima, perceberemos que a conclusão pode ser diferente. Assim, não temos dúvidas de que, em regra, a prisão preventiva só poderá ser decretada para crimes com pena máxima superior a quatro anos de prisão. Para que fique claro: em regra.

Defendemos que excepcionalmente, atendendo as especificidades do caso concreto, esta medida cautelar possa ser adotada para crimes cujas penas sejam inferiores ao prazo estabelecido no inciso I, do artigo 313. Para tanto, considerando que se trata de uma regra, seu conteúdo só poderá ser superado por meio de uma argumentação extremamente eficiente.

Tomemos o exemplo de um sujeito que já agrediu sua mulher por diversas vezes, sendo que em algumas dessas ocasiões a vítima foi até a Delegacia de Polícia e registrou um Boletim de Ocorrência contra o autor. Os fatos foram investigados, o agressor foi indiciado e posteriormente denunciado pelo Ministério Público. Entretanto, não há contra ele uma condenação com trânsito em julgado e nem sequer foi deferida uma medida protetiva em benefício da mulher.

Ocorre que, nesse ínterim, o agente agrediu novamente a sua esposa. Ora, considerando as circunstâncias do caso, o fato de que a vítima já foi agredida anteriormente e que o agente possui uma péssima conduta social, o Juiz poderá perfeitamente decretar a sua prisão preventiva mesmo em se tratando de um crime cuja pena máxima cominada seja inferior a quatro anos de prisão. Para tanto, ele deve fundamentar sua decisão no postulado da proporcionalidade, justificando que devido aos seus antecedentes e a sua conduta social, o agressor não teria direito a substituição da pena privativa da liberdade por outra restritiva de direito.

Consequentemente, a prisão durante o processo não seria desproporcional, uma vez que ao seu final ele poderia ter sua liberdade suprimida. Ademais, o próprio princípio da inafastabilidade da jurisdição deixa claro que cabe ao Poder Judiciário afastar qualquer lesão ou ameaça de lesão a direito. Sendo assim, se a prisão preventiva se mostrar a medida mais adequada a evitar a reiteração de infrações penais contra a vítima, ela deve ser adotada com base no artigo 282 do Código de Processo Penal, independentemente da pena máxima cominada ao crime.[13]

Para encerrar essa discussão, destacamos mais um caso em que uma regra pode ser superada com base na argumentação do intérprete. Vejamos o artigo 6°, incisos III e IV do Estatuto do Desarmamento. Com base nesta Lei, os integrantes das guardas municipais dos municípios com mais de quinhentos mil habitantes poderão portar arma de fogo em serviço ou fora dele.

O dispositivo é claro e, portanto, sua incidência não deixa margens para interpretações em sentido contrário. Estamos tratando de uma regra que, como tal, deve ser aplicada ao modo tudo ou nada, sem ponderações do intérprete, certo? Errado. As regras também estão sujeitas às ponderações do intérprete e devem ser analisadas com base em outras normas.

Estendemos que a distinção feita pelo legislador baseada no número de habitantes de uma cidade não pode se sobrepor ao bem jurídico que o Estatuto do Desarmamento visa proteger. A função exercida pelo guarda civil de uma capital é, guardadas as devidas proporções, a mesma de um guarda civil de uma cidade do interior. Se o agente da capital pode portar uma arma de fogo mesmo fora do serviço, por que àquele do interior não pode?

Deve-se ter em mente que objeto jurídico protegido pelo Estatuto do Desarmamento é a segurança pública, que é colocada em risco sempre que um indivíduo sai pelas ruas portando uma arma de fogo ilegalmente. O guarda municipal, entretanto, é um agente de segurança pública e deve ser treinado para portar uma arma. Espera-se, desses agentes, que eles estejam aptos a garantir a segurança e não colocá-la em risco. Em muitos casos, aliás, justamente por se tratar de servidores ligados à segurança pública, o porte de arma é essencial para a sua própria proteção.

Nesse sentido, por entender que a distinção feita pelo legislador fere o princípio da igualdade, vez que dá tratamento desigual a membros de uma instituição que possui a mesma finalidade, tendo em vista que o bem jurídico protegido pelo Estatuto não é colocado em risco, entendemos que os integrantes da guarda civil podem portar arma de fogo, ainda que fora do serviço, independentemente do número de habitantes de sua cidade.

Em outras palavras, ou o legislador permite o porte de arma a todos integrantes da guarda civil ou o proíbe. Se a intenção do legislador era limitar o porte devido ao fato de que, em determinados municípios, os guardas não recebem o treinamento adequado, tal situação deveria ser especificada na Lei, inclusive com a previsão de uma solução em nível nacional. O que não concebemos é esta distinção baseada apenas no número de habitantes da cidade.

Para concluir esse debate, salientamos o escólio de Humberto Ávila no sentido de que as regras são um instrumento de justiça geral:

“O grau de resistência da regra deverá ser tanto superior quanto mais a tentativa de fazer justiça para um caso mediante superação de uma regra afetar a promoção da justiça para a maior parte dos casos. E o grau de resistência da regra deverá ser tanto inferior quanto menos a tentativa de fazer justiça para um caso afetar a promoção de justiça para a maior parte dos casos.”[14]

Feitas essas colocações acerca das regras, passaremos a percorrer o caminho inverso, ou seja, veremos que muitas normas tidas como princípios são, na verdade, regras.

O artigo 1° do Código Penal, por exemplo. De acordo com o dispositivo, não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal. Parece-nos que a previsão do legislador foi clara no sentido de que um fato não pode ser tido como criminoso sem que uma lei anterior o defina como tal. Da mesma forma, uma pena só poderá ser imposta se estiver previamente cominada em  lei. Não há, nesse caso, espaço para a ponderação do intérprete e suas hipóteses de incidência são claras.

Tudo isso nos leva a conclusão de que estamos diante de uma regra. Contudo, o mencionado dispositivo é colocado pela maioria da doutrina como expressão do princípio da legalidade. Uma vez mais destacamos que a análise das normas não pode se dar de maneira absoluta, devendo guardar relação com os argumentos utilizados pelo aplicador do Direito, que, por sua vez, deve se pautar por critérios objetivos e limitados pelo ordenamento jurídico como um todo.

Analisemos o dispositivo constitucional que prevê que todos devem ser tratados igualmente. Para a maioria dos intérpretes, estamos diante de um princípio, pois estabelece como devida a realização do valor igualdade. O seu conteúdo, todavia, pode assumir um caráter de regra ao proibir distinção de situações equivalentes. Por fim, ele pode ser visto como um postulado na medida em que estabelece o dever jurídico de comparação a ser seguido na sua aplicação e interpretação, preexcluindo critérios de diferenciação que não sejam aqueles previstos no próprio ordenamento jurídico.[15]

Frente ao exposto, resumimos esse estudo com as lições de Humberto Ávila:

“Enfim, é justamente porque as normas são construídas pelo intérprete a partir dos dispositivos que não se pode chegar à conclusão de que este ou aquele dispositivo contém uma regra ou um princípio. Essa qualificação normativa depende de conexões axiológicas que não estão incorporadas ao texto nem a ele pertencem, mas são, antes, construídas pelo próprio intérprete. Isso não quer dizer, como já afirmado, que o intérprete é livre para fazer as conexões entre as normas e os fins a cuja realização elas servem. O ordenamento jurídico estabelece a realização de fins, a preservação de valores e a manutenção ou a busca de determinados bens jurídicos essenciais à realização daqueles fins e à preservação desses valores. O intérprete não pode desprezar esses pontos de partida. Exatamente por isso a atividade de interpretação traduz melhor uma atividade de reconstrução: o intérprete deve interpretar os dispositivos constitucionais de modo a explicitar suas versões de significado de acordo com os fins e os valores entremostrados na linguagem constitucional.”[16]

Por tudo isso, asseveremos que as lições trazidas pelo professor Humberto Ávila são perfeitamente aplicadas no Direito Penal e Processual Penal, sempre com muito denodo e imparcialidade, cabendo ao aplicador do Direito buscar o fim almejado pela norma, que, em última análise, deve corresponder aos valores que mais interessam à sociedade.


Bibliografia

ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 2ª ed. São Paulo: Método, 2008.

SANNINI NETO, Francisco. Prisão Preventiva e o artigo 313, inciso I do Código de Processo Penal. Jus Navigandi, Teresina. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/20649> .


Notas

[1] BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.p.328.

[2] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. p.30.

[3] Idem.

[4] Op. Cit., p.33.

[5] NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. p.65

[6] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. p.37.

[7] Op. Cit. 76.

[8] Os argumentos apresentados neste ponto foram todos abstraídos do seu  livro “Teoria dos Princípios”.

[9] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. p.49.

[10] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. p.54.

[11] IDEM.

[12] Op. Cit. 56.

[13] SANNINI NETO, Francisco. Prisão Preventiva e o artigo 313, inciso I do Código de Processo Penal. Jus Navigandi, Teresina. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/20649> .

[14] ÁVILA, Humerto. Teoria dos Princípios. p.118.

[15] Op.Cit. 69.

[16] Op. Cit. 34/35. 

Sobre o autor
Francisco Sannini

Mestre em Direitos Difusos e Coletivos e pós-graduado com especialização em Direito Público. Professor Concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo. Professor da Pós-Graduação em Segurança Pública do Curso Supremo. Professor do Damásio Educacional. Professor do QConcursos. Delegado de Polícia do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANNINI NETO, Francisco Sannini. Tipos penais: princípios ou regras?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3422, 13 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23013. Acesso em: 30 abr. 2024.

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