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Uma análise crítica do conceito de poder regulamentar difundido pelos administrativistas da "Geração de 60"

Agenda 09/12/2012 às 15:32

Os doutrinadores brasileiros da geração de Celso Antônio – e daqueles que seguiram a sua linha positivista e liberal – apegaram-se em demasia a uma análise dogmática do texto constitucional, em detrimento de uma avaliação crítica e interdisciplinar.

Introdução

O presente ensaio tem o objetivo de proporcionar um exame crítico do conceito de poder regulamentar apregoado pela geração de administrativistas que surgiu na esteira da escola dos publicistas liberais da década de 1950 – na qual se inseriam Oswaldo Bandeira de Mello, Seabra Fagundes e Cretella Jr. Essa nova geração de publicistas, sediados na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP[1] e liderados por Celso Antônio Bandeira de Mello[2] e Geraldo Ataliba, influenciou fortemente,a partir da década de 1970, o pensamento dos juristas brasileiros sobre o direito administrativo, assim como sobre o papel dos regulamentos em face da lei. Era a chamada “Geração de 60”:

“É a “Geração de 60”, que cresce sob o Estado populista e a Constituição de 1946, sofre o trauma do Golpe de 1964, convive duas décadas com o autoritarismo militar, já está madura quando da redemocratização e da Constituinte no final dos anos 80, e ainda testemunhará a “Reforma do Estado” dos anos 90. (SUNDFELD 2004)”


Uma crítica à “Geração de 60”

Muitos dos principais doutrinadores hoje em atuação foram formados por essa dupla, a exemplo de Celso Bastos, Michel Temer, Carlos Ayres Britto, Adilson Abreu Dallari, Lúcia Valle Figueiredo, Diógenes Gasparini, Régis Fernandes de Oliveira, Paulo de Barros Carvalho, Roque Antônio Carraza e Weida Zacanner. Isso sem esquecer da estreita relação que C. A. Bandeira de Mello e Geraldo Ataliba mantiveram com alguns publicistas da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), como Eros Roberto Grau[3] e Maria Sylvia di Pietro (SUNDFELD 2004).

Mesclando a principiologia do liberalismo político ao postulado da neutralidade axiológica proposto pelo positivismo kelseniano, os juristas da “Geração de 60” – também chamados por SUNDFELD (2004) de “Turma de Perdizes” – lograram criticar o autoritarismo do Regime Militar sem se indispor com sua doutrina política:

“Fascinados com o ideal de ciência propiciada pela Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, os juristas da PUC/SP iriam esforçar-se no isolamento das questões jurídicas, que não deveriam ser confundidas com as questões políticas, econômicas ou sociais, sob pena de perda da identidade da ciência jurídica. Na visão do grupo, o jurista, enquanto tal, deveria limitar seu interesse ao mundo jurídico, entendido como conjunto de normas positivas, emanadas do próprio Estado.

(...)

Assim, a censura ao autoritarismo do regime militar adotaria, na Turma das Perdizes, a forma de defesa da ordem constitucional desse mesmo regime. (SUNDFELD 2004)”

Como aponta SUNDFELD (2004), descobrir e denunciar inconstitucionalidades era para a “Turma de Perdizes” o caminho ao mesmo tempo viável, seguro e conveniente de fazer oposição à ditadura militar. Tendo em vista que mesmo as Constituições de 1967 e de 1969 repetiam que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, os acadêmicos da PUC-SP puderam aliar o positivismo jurídico à defesa do Estado de direito à moda liberal.

É certo que o uso da técnica positivista de interpretação das normas jurídicas era já a esse tempo bastante difundido entre os juristas desvinculados do Regime Militar. A análise jurisprudencial da atuação de Victor Nunes Leal enquanto ministro do STF indica que seus votos jamais se afastaram do que se considerava a boa técnica interpretativa, de orientação dogmática.[4] Não se pode esquecer que:

“(...) num regime de exceção, que não aceita o dissenso, o contraditório, decidir com base na impessoalidade, seja quais forem as partes, respeitar a Constituição e proteger direitos civis e políticos dos cidadãos frente ao arbítrio do Estado, pode ser considerado, do ponto de vista dos detentores do poder, uma ameaça. Nessa perspectiva, a atuação de Victor Nunes no Supremo poderia ser considerada desinteressante ao governo militar. (CURI 2010, p. 396)

Assim como em outros momentos da história brasileira, também marcados pela oposição a um recente regime político autoritário, a associação entre a interpretação estrita do princípio da legalidade e a instituição de um Estado democrático de direito voltou à ordem do dia. A supremacia do poder Legislativo sobre o Executivo igualmente recobrou seu status de panaceia das liberdades individuais, alimentando a ideologia dos movimentos em favor da redemocratização, que acabaram por reproduzi-la na elaboração da Constituição de 1988.

Vale remarcar, nesse contexto, a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello sobre a interpretação dos dispositivos constitucionais segundo os quais “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” e ao Executivo compete apenas “expedir decretos e regulamentos para a sua [das leis] fiel execução”:

“Ambos os preceptivos respondem com precisão capilar a objetivos fundamentais do Estado de Direito e exprimem com rigor o ideário e as preocupações que nele se substanciaram. Ambos firmam o chamado princípio da legalidade da administração, o qual, de resto, também está expressamente referido na cabeça do art. 37 da Lei Magna.

2. Com efeito, por meio das disposições mencionadas cumpre-se o projeto de outorgar às pessoas a garantia constitucional de que suas liberdades não serão de nenhum modo coartadas (nem por proibições nem por imposições) senão em decorrência de mandamento proveniente do corpo legislativo.” (C. A. MELLO 1995)

Seguindo o curso dessa linha de interpretação, C. A. Bandeira de Mello estatui a garantia da liberdade como regra, afirmando que, aos particulares, “o que não está por lei proibido, está juridicamente permitido”. No sentido contrário, esse mesmo autor erige ao patamar de “cânone basilar” do direito público brasileiro a máxima segundo a qual “o que, por lei, não está antecipadamente permitido à Administração está, ipso facto, proibido” (C. A. MELLO 1995). É assim que o celebrado administrativista da PUC-SP procura excluir o poder Executivo de qualquer atuação voltada à regulamentação da liberdade e da propriedade dos administrados.[5]

Em seu Curso de Direito Administrativo,[6] ecoando as lições da corrente liberal dos publicistas brasileiros, C. A. MELLO (2008, pp. 43-52) deixa bastante evidente onde buscou as bases ideológicas de seus ensinamentos. Para ele, foi o advento da submissão do Estado ao direito, ao regular a ação dos governantes em relação aos particulares, que inaugurou os direitos dos administrados. Nesse viés, o direito administrativo não teria sido criado para subjugar os interesses dos cidadãos às vontades do Estado. Ao contrário, esse ramo do direito fora engendrado para “regular a conduta do Estado e mantê-la afivelada às disposições legais, dentro desse espírito protetor do cidadão contra descomedimentos dos detentores do exercício do Poder estatal”.

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Sob a ótica de C. A. Mello, em lugar da Administração, é o indivíduo que passa a ocupar o foco central da atenção do direito administrativo, que seria, “por excelência, o Direito defensivo do cidadão” contra o Estado:

“É, pois, sobretudo, filho legítimo do Estado de Direito, um Direito só concebível a partir do Estado de Direito: o Direito que instrumenta, que arma o administrado, para defender-se contra os perigos do uso desatado do Poder. (C. A. MELLO 2008, p. 47)”

Ao enfatizar a influência das ideias de Rousseau e Montesquieu sobre o direito administrativo, C. A. MELLO (2008, p. 49) automaticamente remete o leitor ao evento da Revolução Francesa, que considera ser um “movimento histórico fundamental para as concepções vigentes a respeito de Estado no mundo civilizado”. É na Revolução Francesa de 1789 que Celso Antônio enxerga o nascimento do projeto político de juridicização do Estado, pautado na proclamação da igualdade de todos os homens perante a lei:

“Não é difícil perceber que a supremacia da lei, tão cara à Revolução Francesa, tem sua raiz no princípio da igualdade. Há supremacia porque resulta da formulação da vontade geral, através dos seus representantes, e porque a lei propõe-se a ser geral e abstrata, precisamente para que todos os homens sejam tratados sem casuísmos, embargando-se, dessarte, perseguições e favoritismos. (C. A. MELLO 2008, p. 49)”

Nesse ponto, Celso Antônio estabelece uma associação entre duas ideias até então pouco explorada pelos administrativistas brasileiros das gerações anteriores: a supremacia da lei e a manifestação da vontade geral da nação. Sendo a lei expressão evidente da vontade geral da nação, segundo a concepção rousseauniana, apenas nela residiria legitimidade democrática para regulação estatal sobre a vida privada dos cidadãos. Fora da lei, cunhada pelos representantes eleitos do povo, não existiria legitimidade para nenhuma outra norma jurídica.

Somando à influência de Rousseau a teoria da separação de poderes de Montesquieu, fica claro que C. A. Mello somente admite existir legitimidade democrática na atuação do poder Legislativo. Visto que ao Executivo não compete a elaboração de leis, em sentido formal, não lhe sobraria qualquer espaço de criação ou modificação de direitos. Esse autor chega a afirmar que sua interpretação foi consagrada de modo explícito na Constituição de 1988:

“Efetivamente, diz o art. 1º, parágrafo único: ‘Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição’. E diz o art. 5º, § 1º, que todos são iguais perante a lei (...)’. Neles, há princípios cardeais do pensamento de Rousseau, igualmente traduzido no sistema da democracia representativa. De outra parte, o art. 2º do texto constitucional diz que ‘são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário.’ Encampa-se, assim, a proposta de Montesquieu. Do conseguinte, o texto constitucional brasileiro, do modo mais expresso possível, sagra essas concepções políticas, que se juridicizaram no Estado de Direito. (C. A. MELLO 2008, p. 49)

Esquece Celso Antônio que os mesmos dispositivos constitucionais mencionados – de 1988 – estavam igualmente presentes nas Constituições de 1967 e 1969, o que não evitou que o Estado, tanto por meio do Legislativo quanto do Executivo, elaborasse normas jurídicas distanciadas do que se suporia compreender a vontade geral da nação. Não obstante C. A. Mello procure respaldar sua interpretação do âmbito de ação das leis e dos regulamentos administrativos em argumentos de legitimidade democrática, é fácil evidenciar que sua análise persiste puramente dogmática e restrita ao exame dos textos normativos.

Tal constatação fica ainda mais perceptível quando Celso Antônio intenta conciliar sua concepção liberal da atuação do poder Executivo com a justificativa positivista para a frequente intervenção estatal em determinadas atividades econômicas. Para C. A. MELLO (1995, pp. 966-967), reproduzindo doutrina italiana,[7] existem certas relações entre poder público e administrados que são especiais em relação às demais. Nessas relações haveria liberdade administrativa muito mais ampla, em que a supremacia da administração seria a regra. Dessa maneira, existiriam determinados sujeitos que, “por haverem travado com o poder público um vínculo específico, veem-se colhidos por mandamentos, por injunções peculiares, em suma, por uma disciplina de comportamentos só pertinente aos dessarte vinculados e que lhes é imponível pela própria administração”.

Dentre as atividades que estariam sujeitas a esse regime especial, Celso Antônio elenca as concessões de serviço público, as delegações de função pública, a disciplina dos servidores públicos. De modo geral, todas as atividades cujo desempenho depende de uma habilitação conferida pelo poder público acarretam a sujeição dos particulares habilitados ao falado regime especial. A única condição de legitimidade para a consecução de tal sujeição especial, suscitada por C. A. MELLO (1995, p. 967), seria a prévia existência de uma lei que atribuísse poderes a um órgão do poder Executivo para habilitar e disciplinar o exercício da atividade em xeque.

Outra incongruência das lições de Celso Antônio desponta do que chama de discricionariedade técnica atribuída ao poder Executivo. Uma vez que esse autor reputa impossível, impraticável ou desarrazoado pretender que as leis desçam a minúcias de cunho tecnicista, seria papel da administração pública restringir o âmbito de imprecisão resultante da inevitável generalidade e abstração legais. Aos regulamentos do poder Executivo caberia, então, limitar por meio de uma operacionalização técnica a discricionariedade advinda da dicção inespecífica da lei (C. A. MELLO 1995, p. 968).

Nessa lógica, após a edição de uma lei que atribuísse a um órgão do poder Executivo a missão de proteger a saúde pública, por exemplo, normas infralegais da administração estariam livres para discriminar quais produtos passariam a ser admitidos ou proibidos à comercialização. Mesmo num tal exemplo, de acordo com Celso Antônio, continuaria a ser do órgão técnico a responsabilidade de fazer cumprir fielmente a lei, em que pese o fato de ter elaborado regulamentações com conteúdo em flagrante inovação ao texto legal – este, sim, aprovado de acordo com a vontade geral da nação. Para os defensores da teoria da discricionariedade administrativa, a“norma regulamentar não se propõe a agregar nada além do que já era comportado pela lei, mas simplesmente inserir caracteres de exatidão do que se achava difuso na embalagem legal” (C. A. MELLO 1995, p. 969).

Assim, a tarefa de escolher o que há de concreto na vaguidão legal deixaria de repousar no campo da legitimidade dita democrática, visto que afastada do crivo dos representantes do povo, para recair na aridez técnica da burocracia do poder Executivo.

Ao justificar esse dado da realidade administrativa na incapacidade do poder Legislativo de acompanhar o acelerado ritmo dos avanços tecnológicos,[8] é inevitável recordar que também Francisco Campos[9] – hoje reconhecido como um dos ícones do autoritarismo brasileiro – fazia uso de argumento similar.[10]

É precisamente o contraste entre sua defesa veemente do liberalismo político e seu reconhecimento positivista da liberdade administrativa do poder Executivo que chama atenção. Denota mais que uma incongruência doutrinária, revela a perda de uma oportunidade de rediscutir a relação democrática entre os poderes Legislativo e Executivo em uma sociedade complexa. Expõe a difícil superação, pelos juristas nacionais, do ciclo invencível que eterniza o retorno, de tempos em tempos, ao discurso liberal à moda do século XVIII, apesar da patente complexificação do entorno social e econômico que cerca o Estado.


Conclusão

Vê-se bem que os doutrinadores brasileiros da geração de Celso Antônio – e daqueles que seguiram a sua linha positivista e liberal – apegaram-se em demasia a uma análise dogmática do texto constitucional de 1988 – bem como de constituições anteriores –, em detrimento de uma avaliação crítica e interdisciplinar que agregasse história, teoria política ou sociológica. Ao se depararem com a realidade da administração pública – que tanto hoje como em décadas passadas disciplina inúmeras atividades estatais e particulares por meio de atos normativos infralegais –, tais juristas decerto reconheceram a incoerência entre a praxe burocrática e o discurso liberal.[11] Em perceptível desconforto[12] com o fenômeno que observavam, preferiram, todavia, desdobrar-se em interpretações dogmáticas criativas ao invés de buscar problematizar a verdadeira raiz do mal-estar:[13] a insuficiência da doutrina liberal clássica como fundamento teórico capaz de libertar a necessária atuação da administração pública e, ao mesmo tempo, conferir-lhe legitimidade democrática. Esse é o desafio que os administrativistas contemporâneos têm pela frente.


Bibliografia

CURI, Isadora Volpato. “Juristas e o Regime Militar (1964-1985): atuação de Victor Nunes Leal no STF e de Raymundo Faoro na OAB.” In: Os Juristas na Formação do Estado-Nação Brasileiro (de 1930 aos dias atuais), por Guilherme Carlos MOTA e Natasha Schimitt Caccia SALINAS, 385-423. São Paulo: Saraiva, 2010.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008.

—. “Perfil do Poder Regulamentar no Direito Brasileiro.” Genesis. Revista de Direito Administrativo Aplicado, n. 7, dezembro de 1995: 961-970.

SUNDFELD, Carlos Ari. “A Ordem dos Publicistas.” Revista Eletrônica de Direito do Estado, nº 1, Janeiro de 2004.


Notas

[1] Ainda que a PUC-SP fosse o centro dessa “Geração de 60”, convém anotar que outras universidades foram influenciadas pelos juristas puquianos, por meio do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo – IBDA, que teve em Geraldo Ataliba um dos principais incentivadores de sua fundação(SUNDFELD 2004).

[2] Celso Antônio Bandeira de Mello é filho de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, cujos passos seguiu na cátedra de direito administrativo da PUC-SP.

[3] Embora citado por SUNDFELD (2004) como tendo sido influenciado pela “Turma de Perdizes”, vale destacar que Eros Roberto Grau possui orientação marxista e desenvolveu teoria própria a respeito da extensão do poder regulamentar e sua relação com a teoria da separação de poderes. GRAU (2011, p. 176) entende que o poder Executivo detém uma “função normativa” própria e distinta da “função legislativa”. Segundo ele, a função normativa é definida em razão de matérias atribuídas de forma não exclusiva aos três poderes; de outro lado, a função legislativa é pautada pelo critério subjetivo, relacionada ao órgão que edita as leis. Mais precisamente, GRAU(2011, p. 180) entende como função normativa “a de emanar estatuições primárias, seja em decorrência do exercício do poder originário para tanto, seja em decorrência de poder derivado, contendo preceitos abstratos e genéricos”.

[4] Ao empreender uma análise sobre a jurisprudência de Victor Nunes Leal, Evandro Lins e Silva e Hermes Lima – todos aposentados compulsoriamente pelo Regime Militar em 1969 –, PAULA (2003) constata que o “viés libertário” do STF era de fato exercido mediante o “apego legal” e a “sua intransigência no que tange ao escopo de ser a instituição defensora da Constituição e dos direitos fundamentais”. Esse autor ainda anota que o teor jurisprudencial dos três ministros cassados não diferia substancialmente dos demais integrantes do STF, concluindo que o fator preponderante em prol da aposentadoria compulsória de Victor Nunes Leal, Evandro Lins e Silva e Hermes Lima foi mesmo o “passado progressista” desses ministros.

[5]É interessante notar que mesmo autores como Hely Lopes MEIRELLES (1975), que participaram da sustentação jurídica do regime militar, aderiam formalmente, enquanto juristas ligados à academia, aos preceitos clássicos do estado liberal: separação de poderes e garantia de direitos individuais. A teoria aplicada à prática, todavia, era bem diferente. Sob o argumento da defesa da segurança nacional, MEIRELLES (1972) justifica a intromissão estatal na esfera privada dos cidadãos, mediante atuação exclusiva do poder Executivo.

[6] O Curso de Direito Administrativo de Celso Antônio Bandeira de Mello é ainda hoje uma das obras mais difundidas sobre o direito administrativo brasileiro, encontrando-se no, ano de 2011, em sua 28ª edição. É justamente a popularidade e a influência conquistada por esse autor na academia brasileira que justifica a ênfase deste Subcapítulo no aprofundamento de sua teoria.

[7] C. A. MELLO (1995) cita a doutrina de Renato Alessi.

[8] C. A. Mello deixa clara no trecho abaixo a influência da evolução tecnológica no agigantamento da administração pública:

“Em suma: como decorrência do progresso tecnológico engendrou-se um novo mundo, um novo sistema de vida e de organização social, consentâneos com esta realidade superveniente. Daí que o Estado, em consequência disto, teve que disciplinar os comportamentos individuais e sociais muito mais minuciosa e extensamente do que jamais o fizera, passando a imiscuir-se nos mais variados aspectos da vida individual e social.

Este agigantamento estatal manifestou-se sobretudo como um agigantamento da Administração, tornada omnipresente e beneficiária de uma concentração de poder decisório que desbalanceou, em seu proveito, os termos do anterior relacionamento entre Legislativo e Executivo.” (C. A. MELLO 2010, pp. 379-380)

[9] Neste excerto, Francisco Campos constrói argumentação semelhante:

“Ora, um corpo constituído de acordo com os critérios que presidem à constituição do Parlamento é inapto às novas funções que pretende exercer. Capacidade política não importa capacidade técnica, e a legislação é hoje uma técnica que exige o concurso de vários conhecimentos e de várias técnicas.” (CAMPOS 2001 A, p. 55)

[10] Não se diga que Celso Antônio Bandeira de Mello seja, por essa coincidência de discurso, também um defensor de regimes autoritários. Já foi dito, acima, justamente o oposto, ao anotar adesão do mestre da PUC-SP ao liberalismo político em sua forma original. Contudo, não se pode deixar de criticar a incoerência do discurso sustentado por esse autor, ao tentar defender simultaneamente a vinculação estrita da administração pública à lei e a ampla discricionariedade técnica gozada por essa mesma administração, apesar das lacunas da lei.

[11] Eros Roberto Grau também critica o entendimento generalizado na doutrina brasileira a respeito da teoria da separação de poderes, em especial no que toca à excessiva restrição do poder regulamentar:

“A única função dos regulamentos de execução no direito brasileiro seria a de desenvolver a lei, no sentido de deduzir os diversos comandos já nela virtualmente abrigados (não, pois, a de explicitar ou explicar a lei, de enunciar a interpretação da lei ou de desenvolver – no sentido de expressar o que não está expresso no alcance das disposições legais). (...)

Essa doutrina, como se vê, adota uma visão inteiramente errônea da teoria da tripartição dos poderes, concebendo-a como proposta de separação e não de equilíbrio entre os poderes, além de prestar acatamento exagerado, e radical, à ideologia liberal. Por isso mesmo ignora a realidade, supondo-a existente em função do direito... Em favor dessa doutrina, a CF brasileira de 1988 refere, no § 4º de seu art. 60, com todas as suas letras, a ´separação de poderes´! Esse texto, não obstante, deve ser interpretado, o que importará interpenetração entre o mundo do dever ser e o mundo do ser, além de uma necessária reflexão, para o quê não basta, a quem pretende interpretar, ser alfabetizado. O tratamento do direito não é acessível a amadores; nem mesmo a profissionais desatualizados em relação à evolução do pensamento jurídico.”(GRAU 2011, pp. 240-241)

[12] No trecho abaixo transcrito, logo após fazer veemente defesa da separação de poderes e da impossibilidade constitucional de os regulamentos administrativos inovarem em relação às leis, Celso Antônio tenta encaixar a teoria da “supremacia especial da administração”, sob a influência de Renato Alessi:

“10. Para evitar equívocos, cumpre, neste passo, fazer-se uma acotação necessária. Não se deve confundir o tema das limitações ao poder regulamentar e das razões que as inspiraram como tema dos poderes que assistem à Administração em relações de outra ordem, nas quais existe uma liberdade administrativa muito mais ampla, exercitável na intimidade de relações especiais intercedentes entre Poder Público e administrados, quando estes, por nelas se inserirem, ficam internados no campo em que vige a supremacia especial da Administração.” (C. A. MELLO 1995, p. 966)

[13] Nesta outra passagem, C. A. Mello revela seu mal-estar em face da “generalizada tendência mundial de transferir ao Executivo poderes substancialmente legislativos”:

“Assim, em despeito da generalizada tendência mundial de transferir ao Executivo poderes substancialmente legislativos, ora de maneira explícita e sem rebuços, como se fez na França (e logo acomodada pelos teóricos em uma eufêmica reconstrução do princípio da legalidade), ora mediante os mais variados expedientes ou através de acrobáticas interpretações dos textos constitucionais, nos Estados que ainda carecem de uma experiência democrática sólida a acolhida destas práticas não é compatível com a democracia, ainda que tal fenômeno haja sido suscitado – reconheça-se –por razões objetivas poderosas, tanto que se impuseram generalizadamente.” (C. A. MELLO 2010, pp. 377-378)

Sobre o autor
Victor Epitácio Cravo Teixeira

Procurador Federal em exercício na Procuradoria Federal Especializada junto à ANATEL, em Brasília (DF). Bacharel em Direito pela UFPE. Pós-graduado em Regulação das Telecomunicações pelo INATEL. Mestre em Direito pela UnB.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TEIXEIRA, Victor Epitácio Cravo. Uma análise crítica do conceito de poder regulamentar difundido pelos administrativistas da "Geração de 60". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3448, 9 dez. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23189. Acesso em: 22 dez. 2024.

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