1. Considerações preliminares
A possibilidade de existirem decisões judiciais que dispensam tratamento díspar a casos assemelhados[1] costuma ser justificada em razão do princípio do livre convencimento motivado do juiz. A aplicação do direito ao caso concreto, embora reconhecidamente não se dê num sistema dedutivo, que se opera pela lógica cartesiana, que atribuiria ao juiz apenas desvendar a única solução possível extraída do enunciado normativo[2], cria um ambiente de independência judicial, que é essencial à existência de um Estado de Direito. Os juízes julgam de acordo com suas consciências. No entanto, essa liberdade de interpretar as leis da República implica a possibilidade de tratar situações iguais de maneira desigual, afinal uma norma jurídica só existe quando interpretada[3]. E as variações de sentido por que um mesmo caso pode ser decidido por diferentes julgadores podem colocar em questionamento a justiça e a segurança das decisões judiciais, principalmente aos olhos dos destinatários das normas.
A preocupação com a uniformidade da aplicação do direito tem sido encarada, principalmente, sob o enfoque da administração da justiça. As diversas reformas porque passaram o CPC e os microssistemas processuais, ao longo das últimas duas décadas, consagraram mecanismos que valorizam a força do precedente e tendem a pacificar um mesmo entendimento. A súmula vinculante (CF art. 103-A); a súmula impeditiva de recurso (CPC art. 518, § 1º); o julgamento monocrático pelo Relator (CPC art. 557); o julgamento monocrático do Relator do agravo de instrumento que visa destrancar os recursos especial e extraordinário, quando o acórdão recorrido estiver em consonância com Súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal Superior (CPC art. 544, §4º, “c”); o julgamento por amostragem na repercussão geral (CF art. 102, § 3º c/c art. 143-B do CPC) e nos recursos repetitivos (CPC art. 543-C); o incidente de uniformização de jurisprudência nos tribunais (CPC art. 476); a afetação de competência nos Tribunais (art. 555, §1º do CPC); os embargos de divergência (CPC art. 546); o recurso especial fundado em divergência (CF art. 105, III, “c”); a improcedência prima facie (CPC art. 285-A); a dispensa de remessa necessária quando a sentença contra a Fazenda Pública estiver em acordo com a jurisprudência do STF e súmulas de tribunais superiores (CPC art. 475, § 3º); a sistemática dos processos coletivos (CDC c/c Lei nº 7.347/85), dos Juizados Especiais (Lei nº 9.099/95) e dos processos de natureza objetiva (Lei nº 9.868/99) foram concebidos para, em larga medida, racionalizar o uso da máquina judiciária, poupando-lhe da apreciação de casos semelhantes.
A jurisprudência também tem valorizado, cada vez mais, a força do precedente como forma de proteção da confiança do jurisdicionado no tráfego jurídico. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE nº 566.621/RS[4], assentou que a aplicação imediata de lei federal - no caso a Lei Complementar nº 118/2005 - viola a segurança jurídica por contrariar a jurisprudência pacificada do STJ. O Superior Tribunal de Justiça[5], por sua vez, no julgamento do CC nº 107.635/PR[6], cancelou o verbete nº 358 de sua Súmula, por entender “competir ao STF a palavra final sobre competência, matéria tipicamente constitucional (art. 114 da CF)”.
Esses julgados são interessantes porque reconheceram que a jurisprudência também gera segurança, pois os particulares e o Poder Público, inegavelmente, balizarão seus comportamentos pelo que vem sendo decidido pelos tribunais. Mas não só: o STF reconheceu a segurança emanada pela observância da jurisprudência do STJ – tribunal que lhe é hierarquicamente inferior – em matéria federal, ao passo que o STJ reconheceu que cabe ao STF dizer o que é a Constituição. É um importante paradigma, pois mais danoso do restringir a liberdade de julgar de modo diferente, é malferir a segurança, quando se desrespeita as regras do jogo previamente estabelecidas: é o STF quem diz o que é constitucional, ao passo que o STJ é o guardião da legislação federal. E isso não significa contrapor segurança à justiça.
Nesse contexto, a regra do art. 741, par único, do CPC, que foi repetida no art. 475-L, § 1º do CPC e, com algumas nuances, no art. 884 § 5º da CLT[7] e agora também no art. 511 § 5º no projeto do novo Código aprovado pelo Senado, parece ser a tentativa derradeira, durante a tramitação de um processo subjetivo, de uniformizar as decisões judiciais em matéria constitucional. É um espaço procedimentalmente adequado para participação e deliberação, no processo civil, sobre o respeito ao que o Supremo Tribunal diz que é a Constituição. Literalmente, a regra permitiu ao devedor, na execução, obstar a pretensão do demandante porque seu título judicial, que se fundou em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais, ou que se fundou em interpretação ou aplicação tidas como incompatíveis com a Constituição pelo STF, se tornou, segundo o texto legal, inexigível. Mas não só o devedor: acode a qualquer partes prejudicadas pela declaração destoante da constitucionalidade ou da inconstitucionalidade.
Nesse ensaio, irei me referir, principalmente, ao art. 741, par. único, do CPC, de modo a tentar reduzir, ao longo do texto, a quase inevitável repetição dos artigos ou da referência ao seu conteúdo.
Ao meu ver, regra do art. 741, par único, do CPC fortalecerá a Justiça como instituição, pois permitirá que o juízes tenham poder, a partir de previsão normativa expressa, para manter a supremacia da Constituição, nas hipóteses residuais de decisões idênticas que escapam aos mecanismos de uniformização e também protegerá a confiança dos jurisdicionados, porque se mantem uma das regras do jogo que dita que a Constituição não é senão aquilo que diz o Supremo Tribunal Federal.
Embora inserida na disciplina de institutos processuais diferentes – dos embargos à execução contra a Fazenda Pública (art. 741, par único, do CPC), dos embargos à execução trabalhista (art. 884 § 5º da CLT) e do incidente de impugnação do cumprimento de sentenças (art. 475-L, §1º do CPC) – sua aplicação guarda semelhanças e consequências de ordem processual e material que vão além da diferença procedimental entre eles. Para compreender sua incidência e principalmente as objeções que lhes são dirigidas, é preciso entender o quadro normativo no qual foi inserida – a execução civil – e a natureza das sentenças que podem ser desfeitas pelos efeitos rescisórios.
Com efeito, na execução, enfrenta-se uma crise do inadimplemento. Por isso, a atividade executiva tem sua estrutura voltada à satisfação, sem delongas desnecessárias, do direito do credor. In executivis, o demandante formula pedido para citação do réu para este cumprir a obrigação e não para se defender; o transcurso do prazo aberto pela citação tem como eficácia a ratificação do inadimplemento em lugar da revelia (CPC art. 580); embora haja certas doses de cognição[8], os atos típicos da função executiva são atos de sub-rogação e atos de coerção; o processo de execução é regido, dentre outros, pelo princípio do desfecho único, qual seja, a satisfação do direito do credor. Se o processo findar com solução diversa, dir-se-á que houve um desfecho anormal[9]; no processo executivo não se discutem questões de fundo atinentes à existência da obrigação exequenda, por força da eficácia abstrata atribuída ao título executivo; o exequente pode desistir do processo independentemente do consentimento do demandado, salvo se este tiver oposto embargos (CPC art. 569) etc. Se a ação estatal falhar na tentativa de debelar esta crise de adimplemento, principalmente em decorrência de fatores imputáveis à prestação jurisdicional, a própria legitimação da atividade jurisdicional restará comprometida. Não é à toa que Cândido Rangel Dinamarco[10] afirma, de forma contundente, que “executar é dar efetividade e execução é efetivação”. Talvez isso tenha criado objeções à repetição do parágrafo único do art. 741 do CPC no projeto d novo Código, como aquelas registradas numa das audiências públicas que antececederam a aprovação anteprojeto do novo CPC, conforme registros disponibilizados pelo Senado Federal[11].
Penso diferente. Entendo que a regra do art. 741, par único, do CPC, repetida em outros dispositivos legais, aperfeiçoou o controle da constitucionalidade das leis e conferiu mais segurança jurídica ao sistema porque não há segurança na inconstitucionalidade.
No Brasil, o tema tem sido tratado juntamente com a problemática da “coisa julgada inconstitucional”[12], sem dispensar-lhe a atenção merecida. Existem diferenças substanciais entre a relativização da coisa julgada inconstitucional e a aplicação do art. 741, par. único, do CPC. No primeiro caso, a sentença se formou regularmente e se discute se a injustiça nela contida – fruto de error in judicando – foi amparada pela autoridade da coisa julgada[13]; no segundo, a sentença também pode ter sido prolatada em consonância com as leis do processo, mas o desrespeito à Supremacia da Constituição não configura um mero error in judicando apagável pela eficácia sanatória da coisa julgada, porque, enquanto cada juiz é livre para aplicar o Direito mediante decisão motivada sobre a controvérsia que se formou em cada processo, a última palavra ao derredor da constitucionalidade de uma lei cabe ao STF, a quem compete guardar a Constituição. Trata-se, portanto, de uma coisa julgada incapaz de irradiar segurança.
A propósito, diz Gustav Radbruch[14] que
“[a] disciplina da vida social não pode ficar entregue, como é obvio, às mil e uma opiniões dos homens que a constituem na suas recíprocas relações. Pelo facto de esses homens terem ou poderem ter opiniões ou crenças opostas, é que a vida social tem de ser disciplinada duma maneira uniforme por uma força que se ache colocada acima dos indivíduos (…) Se ninguém pode definir dogmaticamente o justo, é preciso que alguém defina dogmaticamente o jurídico, estabelecendo o que se deve observar-se como direito”.
Há uma dicotomia[15], pois, no discurso da “flexibilização da coisa julgada inconstitucional” porque os fundamentos para flexibilizar a res judicatae no caso de aplicação do art. 741, par. único, do CPC e nos casos de injustiça manifesta, em que há colisão de valores constitucionais, são distintos. Em ambos, persiste o recorrente embate entre justiça e segurança, mas nos casos sob a incidência da regra contida no par. único do art. 741 do CPC há um plus: visa-se escoimar a insegurança na aplicação do Direito[16].
Cuida-se, de fato, de uma regra inovadora, que guarda semelhança com o §79-2 do Bundesverfassungsgericht – a Lei Orgânica do Tribunal Federal Constitucional alemão. Nela, a execução, cujo título fundou-se em norma inconstitucional, pode ser obstada, mas o título é mantido intocável. Vale dizer: mantem-se a coisa julgada, mas se paralisa a sua eficácia, esvazia-se o seu conteúdo, que se torna inexigível. Se adequadamente aplicada, a regra do par. único do art. 741 do CPC não trará riscos à estabilidade dos direitos, na medida em que é possível preservar os efeitos pretéritos das sentenças condenatórias infirmadas pelo vício, quando isso se fizer necessário, mediante a modulação dos efeitos temporais da inconstitucionalidade prescrita pelo art. 27 da Lei nº 9.868/99.
De todo modo, sua aplicação apenas se dará em hipóteses residuais, quando persistirão decisões singulares em discrepância com aquilo que foi decidido, em matéria constitucional, pelo Supremo Tribunal Federal.
Há inúmeros mecanismos para evitar essa incoerência no sistema. São as hipóteses, por exemplo, de julgamento dos recursos extraordinários, quando o art. 543-B do CPC fala em “multiplicidade de recursos fundada em idêntica controvérsia”. Nestes casos, o STF apreciará os recursos selecionados como representativos da controvérsia[17], mantendo os demais sobrestados nos Tribunais e Turmas Recursais dos Juizados, que serão julgados, posteriormente, na forma do art. 543-B §§ 1º e 2º do CPC. Em tese, ao admitir a repercussão geral, o sistema não permitiria que casos idênticos tivessem julgamentos diferentes, pois os demais recursos aguardariam o julgamento do Supremo na instância a quo.
No controle concreto da constitucionalidade das leis, a uniformidade das decisões judiciais é amparada pela edição de Resolução pelo Senado Federal, quando notificado da decretação de inconstitucionalidade incidenter tantum pelo STF, que não apenas suspende, retroativamente[18], a execução da lei impugnada (CF art. 52, X), mas dá publicidade aos órgãos Judiciários da necessidade de observância do procedente sobre a constitucionalidade de lei, sob pena de afronta à autoridade da Corte Suprema.[19]
No entanto, apesar de todas essas inovações legislativas, é possível que o STF não aprecie uma questão constitucional que lhe seja levada num processo subjetivo, por faltar repercussão geral. Nesse caso, prevalecerá a norma que cada juiz formulou para o caso concreto, muitas vezes idênticos, mas com solução díspar.
Outros exemplos também podem ser cogitados, em que se identificam “brechas” ao julgamento vinculante do Supremo, como a apreciação de recursos anteriores à Lei nº 11.418/2006, que instituiu o regramento da repercussão geral e o julgamento por amostragem; o juízo de admissibilidade negativo de recursos extraordinários, por razões de deficiência técnica; ou mesmo o descompasso entre o processo objetivo acerca da constitucionalidade de lei ou ato normativo e processo subjetivo em que discute sua aplicação, incidentalmente, sobre um caso concreto, porque no intervalo entre uma decisão e outra podem transcorrem muitos anos, sobrevindo uma série de decisões em casos concretos.
O primeiro exemplo traduz uma situação de direito intertemporal, que tenderá a desaparecer. Os demais revelam a utilidade da regra do art. 741, par. único, do CPC para hipóteses remanescentes, ao aperfeiçoar o controle de constitucionalidade brasileiro, que conjuga o modelo de fiscalização difusa e concentrada, com diferentes efeitos atribuídos a suas decisões. Permite-se, num último momento, aos juízes assegurar os valores substantivos previstos em norma constitucional, mediante a observância de procedimentos adequados de deliberação: a Constituição é aquilo que o Supremo diz ser para todos os brasileiros.
Efetivamente, o ajuizamento de ADI, ADC, ADPF ou ADI por omissão não coincide com a propositura de demandas individuais ou coletivas. Nem há, necessariamente, a previsão de suspensão automática dos processos subjetivos quando é proposta uma ação do controle abstrato. Existe previsão legal de suspensão de processos subjetivos, como efeito da medida cautelar, apenas para a ADC (art. 21 da Lei nº 9.868/99) e para a ADI por omissão (art. 12-F, § 1º da Lei nº 9.868/99). Nos demais casos de controle concentrado, a suspensão depende do juízo de cada julgador, ex vi do art. 265, IV, “a” do CPC. Pode, pois, escapar do efeito vinculando, um processo que tramite mais rápido que o processo objetivo, resultando numa sentença que, nem sempre, estará em consonância com a decisão do Supremo[20].
São, portanto, raríssimos os casos em que a regra do art. 741, par único, do CPC terá lugar. Ela é útil para defesa da Constituição, aperfeiçoando a fiscalização da constitucionalidade das leis e garantindo, ao mesmo tempo, a supremacia da Constituição e a uniformidade das decisões judiciais apenas em hipóteses residuais. Em última análise, fortalecem-se o Estado Democrático de Direito e, ao contrário do que se teme, a segurança nas relações jurídicas. Por isso, não se pode falar da banalização do instituto ou do “vírus do relativismo” até porque a coisa julgada que se pretende aqui desconstituir é um ato que não é capaz de gerar segurança.
2. Das hipóteses de cabimento dos embargos do art. 741, I, II e par. único, do CPC
Embargar, do latim imbarricare, significa obstacular, impedir, opor resistência[21]. O executado que embarga opõe um obstáculo a uma execução, quer para se ver livre dela, quer para podar os seus excessos. É essa a finalidade precípua dos embargos e também a sua razão de ser.
Todavia, embora consagrada na seção sobre as defesas do executado, a compreensão da regra do par. único do art. 741 do CPC não se liga apenas à ideia de defesa, como pode parecer, ao equiparar à inexigibilidade o vício da decisão judicial fundada em lei inconstitucional. Trata-se de verdadeira pretensão, que ser exercida por via de ação, tal como a regra do art. 741, I do CPC.
O inciso I do art. 741 do CPC reza que os embargos poderão versar sobre “a falta ou nulidade de citação no processo de conhecimento, se a ação lhe correu à revelia”.
A citação é o ato de comunicação por excelência no processo civil. Por meio dela, noticia-se o réu do ajuizamento de uma demanda proposta contra ele, oportunizando-lhe uma a primeira chance para se defender. E como o contraditório deve ser entendido como, “de um lado, a necessidade de dar conhecimento da existência de ação e de todos os atos do processo às partes, e, de outro a possibilidade de as partes reagirem aos atos que lhes sejam desfavoráveis”[22], a citação é, portanto, o ato processual que primeiro realiza este princípio.
O réu citado não precisa, necessariamente, defender-se. Pode reconhecer a procedência do pedido demandante, pondo fim ao conflito, ou ainda deduzir algumas das respostas que lhes são facultadas, como são a contestação, reconvenção e exceções de parcialidade e incompetência relativa. Basta a sua regular cientificação. Bem observou Dinamarco[23] que
como o substrato ético e sistemático que legitima a sentença condenatória como título executivo é o fato de ser produzida por juiz estatal e depois de havarem sido franqueadas ao réu as mais amplas oportunidades de defender-se e participar em contraditório, é natural que não possam ter toda a eficácia e a firmeza de um título executivo as sentenças proferidas sem que essas oportunidades lhe hajam sido realmente oferecidas
A falta ou invalidade da citação representa vício formado durante o processo de conhecimento que, por sua gravidade, sobrevive à força sanatória da coisa julgada. É por isso que, com fundamento no inc. I do 741 do CPC, pode o demandante, a qualquer tempo, exercer sua pretensão de desconstituição desta invalidade “transrescisória”[24]. A essa pretensão deu-se o nome de querela nullitatis[25], que, no direito brasileiro, historicamente, ficou adstrita à hipótese do réu revel não citado[26].
Conquanto prevista como causa de pedir dos embargos, não se trata de mera exceção processual a ser usada apenas nos embargos ou incidente de impugnação de sentenças. Realmente, somente se poderá falar em defesa do executado, seja por embargos, seja por incidente de impugnação, quando houver execução. Existem ações de cunho não-condenatório, como as declaratórias e constitutivas, em que também pode ocorrer a falta ou invalidade da citação. De fato, as sentenças constitutivas criam, ao passo que as declaratórias certificam. Via de regra, não condenam e, consequentemente, não geram execução. Mas poderão padecer do mesmo vício, porque a falta ou invalidade de citação é defeito que não está adstrito apenas às ações condenatórias. Nesse sentido, Adroaldo Furtado Fabrício[27] anota que
É preciso lembrar que nem todas as sentenças de procedência são passíveis de execução ensejadora dos embargos, mas só as condenatórias; que o prazo para embargar, mesmo havendo execução embargável, é peremptório e preclusivo; que os embargos eventualmente podem sofrer rejeição por defeitos de forma ou de legitimatio ad processum; que sentença, mesmo exeqüível, jamais venha a ser executada, permanecendo sobre a cabeça do condenado qual espada de Dámocles, a minar-lhe o crédito, o bom nome e a tranqüilidade.
É por isso que o inc. I do art. 741 do CPC veicula uma pretensão, que pode assumir a forma de embargos, rescisória, ação civil pública ou de qualquer outra demanda de conhecimento autônoma[28].
A natureza desse vício – a decisão que aplica lei declarada inconstitucional pelo STF – suscita acirradas controvérsias. Há quem fale de inexistência; há quem fale de invalidade; e também há aqueles que afirmam tratar-se de ineficácia. De qualquer sorte, o importante é perceber que os planos da existência, validade e eficácia são diferentes uns dos outros. Naturalmente, espera-se que um fato, no mundo do Direito, exista, seja válido e eficaz. Mas as vicissitudes porque podem passar os fatos jurídicos criam inúmeras combinações destes planos: do lado de fatos que simplesmente não existem juridicamente, há tantos outros que existem, são válidos e ineficazes (negócio submetido a condição suspensiva); outros existem, são inválidos, mas eficazes (casamento putativo); outros ainda existem, são inválidos e são ineficazes (doação feita pessoalmente por absolutamente incapaz) e há, outrossim, aqueles que sequer passam pelo plano da validade: eles existem e simplesmente são eficazes ou não.[29]
Entendo que o defeito enunciado no inc. I do art. 741 do CPC – a falta ou invalidade da citação do réu revel – é vício que torna nula a sentença. Isto porque perfilho a corrente que situa a citação como pressuposto de validade do processo[30][31], logo o defeito ou a ausência do ato citatório implicará a formação de vício no plano da validade. É também o que prescreve o art. 214 do CPC. Tanto é assim que a sentença proferida contra réu revel não citado irradia normalmente sua eficácia executiva e, se o vício não for detectado, os atos constritivos se consumarão. Se a sentença fosse um ato inexistente, sequer irradiaria efeitos. Mas por ser um ato processual inválido, produzirá efeitos até a decretação da nulidade.
Ressalte-se, ainda no caso do inc. I, que o direito brasileiro equiparou a inexistência e a invalidade da citação no que tange às consequências jurídicas[32], mas isso não significa que os planos da validade e existência se confundam.
Outra hipótese de cabimento dos embargos que interessa para compreensão do art. 741, par único, do CPC é a da inexigibilidade do título prevista no inc. II do art. 741 do CPC. Sua importância para este estudo reside na equiparação legal entre inexigibilidade e título que veicula solução inconstitucional.
O titulo será considerado exigível[33] quando o direito do credor não tiver seu exercício vinculado à condição ou termo – elementos acidentais do negócio jurídico – que subordinam sua eficácia. Ainda com relação à exigibilidade, mas em outros termos, vale ressaltar que o art. 572 do CPC assim dispõe: “quando o juiz decidir relação jurídica sujeita a condição ou termo, o credor não poderá executar a sentença sem provar que se realizou a condição ou ocorreu o termo”. Não é à toa que os arts. 614, III e 615, IV do CPC incumbem o exequente da prova da exigibilidade da obrigação.
Celso Neves[34] classifica a inexigibilidade em absoluta e relativa.
No primeiro caso, trata-se de extinção da exigibilidade; no segundo caso, de exigibilidade a termo não verificado. Ali dá-se a impossibilidade da execução com o título inexigível; aqui, a impossibilidade apenas futura do processo executório, porque a inexigibilidade ainda não se caracterizou
Levando a cabo a literalidade da equiparação feita entre o par. único e o inc. II do art. 741 do CPC, poder-se-ia considerar o caso da sentença que aplicou norma inconstitucional como exemplo de inexigibilidade absoluta, ao passo que, como inexigibilidade relativa, figura o negócio jurídico sujeito à condição ou a termo. Outrossim, não é tarde para ressaltar que, fundadas na mesma causa petendi, a doutrina traz os casos da decisão contra a qual foi interposto recurso com efeito suspensivo, de sentenças prolatadas contra a Fazenda Pública antes do reexame obrigatório e da falta de homologação do laudo arbitral antes da Lei nº 9.307/96[35].
Por fim, resta a hipótese de cabimento dos embargos do parágrafo único do art. 741 do CPC, que verbera: “para efeito do disposto no inc. II deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ou em aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal”.
Assim como o inc. I, a regra do parágrafo único também veicula uma pretensão. Isto porque qualquer sentença, seja ela condenatória ou não, poderá se fundar em lei declarada inconstitucional. E, nos casos em que não houver a possibilidade de oposição de embargos, outras ações de conhecimento poderão ser propostas para rescindi-la, escoimando o vício.
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça decidiu ser cabível ação civil pública para declarar a nulidade absoluta insanável de sentença causadora de prejuízo ao Erário[36]. Na mesma linha, no ano 2000, o STJ deu provimento a recurso especial em ação civil pública[37] ajuizada pelo Ministério Público, rescindindo sentença transitada em julgado há mais de cinco anos.
A natureza do vício da sentença inconstitucional acirra controvérsias na doutrina. Há quem entenda que é caso de nulidade absoluta da sentença, porque esta – assim como os atos do Poder Público em geral – pode incidir em inconstitucionalidade quando não se conformem com a Lei Maior. “Sendo, pois, caso de nulidade” – arremata Theodoro Jr.[38] – “a coisa julgada não tem o condão de eliminar a profunda ineficácia da sentença, que, por isso mesmo, será insanável e arguível a qualquer tempo”.
De outro lado, há doutrinadores que defendem que a sentença “inconstitucional” sequer seria acobertada pela coisa julgada material, por incorrer em impossibilidade jurídica, em virtude de enunciar efeitos impossíveis[39].
Já na construção de Araken de Assis[40], o dispositivo em análise excepciona a coisa julgada que, por força dele, assume a
incomum e insólita característica de surgir sub conditione: a qualquer momento, pronunciada a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo, em que se baseou o pronunciamento judicial, desaparecerá a eficácia do 467. E isso se verificará ainda que a Corte Constitucional se manifeste após o prazo de dois anos da rescisória
Também comungo dessa posição por entender que a coisa julgada que veicula lei declarada inconstitucional não concretiza o valor da segurança jurídica.