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A legitimidade democrática para além do voto popular

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Agenda 25/12/2012 às 14:32

Embora o mecanismo eleitoral-majoritário continue a ser o centro da vida democrática, a necessidade de refundação dos paradigmas de legitimidade democrática se fez sentir na administração pública.

Introdução

Ao longo da evolução do pensamento político-jurídico sobre as relações entre os poderes Legislativo e Executivo, percebe-se a centralidade da questão da legitimidade democrática da atuação estatal. Essa questão foi continuamente debatida em meio às desavenças entre doutrinadores. Os administrativistas franceses divergiram repetidamente acerca das relações entre Legislativo e Executivo, tanto no que se refere à realidade empírica – que dizia respeito a como estavam ocorrendo, no plano dos fatos, as práticas constitucionais e administrativas efetivas – quanto no plano doutrinário – em que se desenvolveram os embates abstratos sobre como as práticas legislativas e administrativas deveriam ocorrer. Na compreensão desse quadro evolutivo, contudo, é preciso ressaltar que as ideias lançadas nos finais do século XVIII, no sentido de que o povo seria a única fonte legítima do poder – o qual seria exercido por seus representantes ungidos em sufrágio popular –, alastraram-se pelos séculos seguintese, de um modo geral, acabaram se impondo como uma evidência incontestável.

Apesar de mais de dois séculos terem se passado desde que tal ideário deixou seu berço, alerta Pierre ROSANVALLON (2008, p. 23) que o campo conceitual em que a teoria democrática foi desenvolvida não mudou substancialmente ao menos até a década de 1980. De fato, conforme ressalta esse autor, questões referentes ao “governo representativo, a democracia direta, a separação de poderes, o papel da opinião e os direitos do homem foram postas durante todo esse tempo em termos praticamente inalterados”. E, no âmbito doutrinário, o protagonismo do poder Legislativo acabou por transformar a atuação administrativa do Executivo em objeto marginal da teoria política.


O percurso da legitimidade democrática

Ao citar Michel VERPEAUX (1991), Rosanvallon relembra que, desde a revolução francesa, o poder legítimo da “generalidade”, associado à elaboração das leis, é oposto ao poder suspeito de gerir “particularidades”, que tenderia a ser a essência do Executivo (ROSANVALLON 2008, p. 29).  A relativa autonomia de que hoje goza a esfera da ação governamental na maioria dos países ocidentais foi conquistada a duras penas, tantos foram os obstáculos intelectuais ao seu reconhecimento. Com o objetivo de analisar com maior profundidade as diferentes facetas da atuação governamental sob a perspectiva de um conceito de democracia tornado complexo pela contemporaneidade, Rosanvallon propõe-se, de início, a desmitificar o eixo central do senso comum da legitimidade democrática: o elemento majoritário.

A partir do momento em que ROUSSEAU (1923, p. 310) difundiu a máxima segundo a qual “voz da maioria obriga sempre todas as outras”, o princípio majoritário mascarou um pressuposto decisivo: a ideia de que, aceita essa máxima rouseauniana, a legitimidade política somente seria atingida sob a condição da sustentação unânime dos cidadãos. De acordo com Rousseau, o cidadão consente com todas as leis, mesmo com aquelas que são aprovadas apesar de sua vontade, e que eventualmente o pune em caso de violação legal. Para Rousseau, o sufrágio universal não significava colher as opiniões individuais de cada cidadão sobre um dado assunto, mas averiguar se este estaria ou não em conformidade com a vontade geral – do cálculo das vozes aferidas em sufrágio universal é que resultaria a expressão da vontade geral.

Na visão da democracia liberal, cada cidadão é portador de direitos individuais irredutíveis, sendo o consentimento de todos a garantia única e indiscutível de respeito em relação a cada um. Segundo ROSANVALLON (2008, p. 33), essa concepção individualista do requisito da unanimidade constitui um princípio fundador do Estado de direito. Assim, as instituições do sufrágio universal e do Estado de direito, idealmente superpostas, definem conjuntamente o regime democrático. Contudo, adverte que a exigência de unanimidade que sustenta o ideal democrático não se limita a esse enunciado. O pressuposto da unanimidade também estaria ligado a uma interpretação com viés antropológico, relacionada ao conceito de uma sociedade consubstanciada num corpo uno. É o que pensava ROUSSEAU (1923, p. 243), ao afirmar que “a lei da pluralidade de sufrágios era ela mesma uma convenção e supunha, ao menos uma vez, a unanimidade”.

Nesse contexto, ao mesmo tempo em que os regimes democráticos que receberam a influência de Rousseau adotaram o princípio da maioria como uma necessidade procedimental prática – ou seja, uma “unanimidade aritmética” dos sufrágios –, eles continuaram imersos no antigo mundo político de uma “unanimidade substancial”, concebida como valor moral, político e social intrínseco. Assim, embora a legitimidade eleitoral contivesse necessariamente o elemento majoritário, o pressuposto antropológico e subjacente da unanimidade substancial acabaria por redundar em contradições internas que poriam seu conceito em xeque (ROSANVALLON 2008, p. 34).

Segundo ROSANVALLON (2008, p. 35), nas sociedades da Antiguidade, a realização de uma sociedade unida e pacificada era a definição do ideal político. No desejo de corroborar seu ponto de vista, esse autor cita a construção de templos em homenagem à deusa romana da Concordia – equivalente à deusa grega da concórdia Homonoia– e o significado do emblema latino SPQR – Senatuspopulusqueromanus. Por essa frase, a cultura romana expressava o sentimento de que o povo e o senado perfaziam um todo único, pelo qual este último encarnava as aspirações do primeiro. Não havia em Roma, portanto, a ideia de representação ou de mandato, mas de identificação dos governantes com o povo. Existindo somente enquanto totalidade, a sociedade não comportava qualquer técnica política que manifestasse uma divisão social, do que decorre a importância da “aclamação popular” como ideal simbólico do consenso social. Mesmo sendo improvável um acordo ou desacordo total no seio da sociedade, tratava-se de um consenso aparente, que funcionava de forma a testemunhar o bom funcionamento da comunidade política.

Também a Igreja católica contribuiu para a afirmação dessa cultura antiga da participação-unanimidade. As primeiras comunidades cristãs tinham em seu embrião um forte sentimento igualitário, antes do surgimento da estrutura hierárquica eclesiástica. Muitos dos vocábulos hoje apropriados pelas teorias da deliberação e da participação social foram desenvolvidos por tais comunidades cristãs, como o sufrágio universal como meio de qualificar decisões, e o termo unanimitas, para traduzir a aspiração de uma verdadeira comunhão entre seus membros (ROSANVALLON 2008, p. 37).

Após o advento da estruturação hierárquica da Igreja, o ideal de unanimidade não foi deixado de lado, tendo o papa Celestino I promulgado regra segundo a qual “ninguém poderia ser bispo sem a aceitação do povo cristão”. A eleição dos bispos, entretanto, nada tinha de parecido com o conceito que se tem desse verbete atualmente. Ao invés de candidatos, boletins, urnas e contagem de votos, a eleição consistia na manifestação coletiva de aprovação feita pelo povo diante da autoridade eclesiástica, performando um ritual de comunhão. Nessa expressão maciça de confiança não havia espaço para abstenções ou discordâncias (ROSANVALLON 2008, p. 38).

O termo eleição não era, portanto, associado à noção de escrutínio, entendido como método de recenseamento das escolhas individuais. Em lugar das eleições por aferição visual ou vocal, os primeiros escrutínios foram utilizados em pequenos grupos dirigentes, como forma de resolver hesitações diante de uma escolha difícil. Justamente pelo receio de que a contagem de vozes resultasse em divisão social, a técnica do sorteio era bastante difundida como mecanismo de escolha de edis comunais. Era um meio de substituir a unanimidade e evitar ao máximo a discórdia (ROSANVALLON 2008, p. 40).

De todo modo, constata-se que a noção de unanimidade não possuía nenhuma significação aritmética, remetendo, ao contrário, a uma ideia de “qualidade social”. Significava, antes de tudo, um estado da coletividade social, um atributo que caracteriza sua constituição. É essa dimensão antropológica da unanimidade que marca os primeiros sentidos da participação popular na expressão da vida coletiva. Participar da vida da comunidade era menos tomar partido ou manifestar sua opinião particular que configurar o ideal cívico de se mostrar incluído no todo social(ROSANVALLON 2008, p. 40).

Apesar de o princípio da maioria simples como técnica de decisão ter sido implementado em 1221 pela ordem religiosa dos dominicanos, ROSANVALLON (2008, pp. 42 e 44) nota que Rousseau, ao defender o método majoritário, não tinha em mente – assim como tampouco Locke – que uma sociedade politicamente bem organizada pudesse repousar sobre a confrontação positiva entre maioria e minoria. Como já visto, a teoria do pensador franco-suíço pressupunha o ideal de unidade política expressada pela vontade geral.

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Somente com o surgimento do direito de sufrágio após 1789 a questão do princípio majoritário passou a ser discutida em termos diferentes e mais práticos,[1] ainda que não rompesse de todo com a antiga acepção de unanimidade nutrida desde a Antiguidade. A defesa do sufrágio universal feita por Sieyès em sua obra “O que é o terceiro Estado” ilustra que sua teoria não mais se inscrevia em uma perspectiva de “sociedade-comunidade”, mas calcava-se no imperativo de igualdade absoluta entre os cidadãos, percebidos em sua individualidade:

“Todo o cidadão que reúna as condições determinadas para ser Eleitor tem o direito de se fazer representar, e sua representação não poder ser uma fração da representação de um outro. Esse direito é uno; todos o exercem igualmente, como todos são igualmente protegidos pela lei, com cuja elaboração todos concorreram.” (SIEYÈS 1789 A, p. 48) [tradução livre]

SIEYÈS (1789 A, p. 127) explicava que a soma das vontades individuais era a origem do poder da nação, dando forma à vontade comum de seu povo. Ainda de acordo com ele, a vontade comum não poderia destruir a si própria, de forma a fazer com que a opinião da minoria suplantasse a da maioria. Nesse ponto, ROSANVALLON (2008, p. 44) nota que Sieyès não deixou de apoiar sua teoria do pressuposto ideal de unanimidade, mas o fez mediante uma metodologia aritmética. Criou, portanto, a “ficção” de que a “maioria” apurada em escrutínio seria equivalente à “unanimidade”. É o que se depreende das palavras do próprio constitucionalista francês:

“Uma associação política é obra da vontade unânime de seus associados. (...) Sente-se bem que a unanimidade, sendo uma coisa muito difícil de se obter num conjunto pouco numeroso de homens, torna-se impossível numa sociedade com vários milhões de indivíduos. A união social tem os seus fins; é preciso então adotar os meios possíveis de os alcançar; é preciso então se contentar com a maioria.” (SIEYÈS 1789 B, p. 38) [tradução livre]

É interessante analisar a contradição conceitual que se instaurou na França a partir de 1789 (ROSANVALLON 2008, p. 49). De um lado, estabeleceu-se o imperativo de igualdade que exigia a consideração da individualidade existente em cada sujeito por meio de uma apreensão aritmética da democracia, fazendo ruir a antiga estrutura político-social lastreada em estamentos e corpos sociais. Por outro, essa nova filosofia política levava invariavelmente à exaltação de uma nação-una, na qual o ideal de igualdade e fraternidade exigia desaparecimento das distinções e particularidades anteriormente consagradas, dando lugar a uma sociedade imaginada como homogênea e completa. Dessa forma, além da “unanimidade”, outro atributo passou a integrar a essência do conceito de democracia no período: a “imediatidade” das relações entre a nação e o indivíduo, uma vez que todos os corpos intermediários eram então proscritos da vida social francesa.

Mesmo quando o sufrágio universal foi restabelecido na França após 1848, seu conceito persistiu associado à realização da “concórdia nacional”, ao invés de ser percebido como um procedimento de competição entre ideias. Esse quadro só começou a mudar a partir de quando ganham importância os partidos políticos, no início do século XX, embora nessa época ainda fosse difundido o pensamento de que uma “boa política” deveria conduzir à supressão dos conflitos partidários. Assim, direita e esquerda tinham em seus ideais políticos neutralizar a ideologia adversária (ROSANVALLON 2008, p. 51).

Apesar de pouco refletida em suas contradições internas, o princípio majoritário, segundo Rosanvallon, foi silenciosamente introduzido como uma espécie de necessidade prática em todas as constituições democráticas. E com o passar do tempo, o sufrágio universal deixou de ser o mecanismo da consagração da união social para se tornar um meio de expressão da divisão social. A natureza da legitimação pelas urnas mudou radicalmente, tendo perdido sua mística de pacificação social e sua justificativa moral para se transformar em simples técnica de legitimação jurídica de uma escolha(ROSANVALLON 2008, p. 54).

Na virada para o século XIX para o XX, ondas antiparlamentares contribuíram para que surgisse na Europa dos anos 1920 a expressão “crise da democracia”, fruto das contradições internas ao regime democrático analisadas por ROSANVALLON (2008, pp. 56-57), e da incapacidade de atender as demandas de pacificação social. Uma década mais tarde, essa insatisfação popular alimentou a ideologia dos movimentos totalitários, que visavam proporcionar uma sociedade homogênea em detrimento da sociedade de indivíduos resultante do pensamento liberal então hegemônico.

Porém, é de grande importância ressaltar sobre essa evolução que, segundo aponta o citado cientista político francês, em contraposição ao desencantamento com o princípio majoritário, surgiu uma via mais modesta e eficaz de equilibrar as disfunções do sistema eleitoral-representativo e o resultante déficit de legitimidade: a instituição de um poder administrativo encarnando o interesse geral.

Assim, o início do século XX testemunhou o despertar de uma certa autonomia da máquina administrativa do poder Executivo em relação ao Legislativo – como já visto no capítulo anterior. Explica ROSANVALLON(2008, p. 59) que o crescimento do poder administrativo representou, por si só, uma ruptura no pensamento da política democrática então consolidada. Isso porque todas as instituições políticas haviam sido construídas em função do pressuposto de que todo o poder emanava de uma única fonte, cujos comandos deveriam determinar as ações de todos os órgãos administrativos a ela inferiores: a soberania popular. Afinal, como já visto, o poder Executivo, nele estando compreendidos o governo e a administração pública, eram entendidos como órgãos subordinados ao Legislativo, representante da soberania popular e formulador da vontade geral.

O impacto na estrutura da administração pública em decorrência do surgimento de descompassos entre a legitimidade democrática e a soberania popular foi primeiro sentido nos Estados Unidos da América em 1829, com reflexos evidentes na França. Nesse ano Jackson foi eleito presidente daquele país e entendeu por bem aprofundar a democracia americana ao desalojar dos cargos de chefia pertencentes à estrutura do poder Executivo todos aqueles que haviam sido empossados nos governos anteriores. Estava assim inaugurado o “sistema de despojos”, que possuía sua justificativa no raciocínio de que todos os cargos públicos, num regime democrático, deveriam obedecer a uma linha direta e hierárquica que unisse o funcionário à autoridade eleita pelo povo (ROSANVALLON 2008, p. 60).[2]

Na França, esses mesmos argumentos, acrescidos do receio de que funcionários estáveis se tornassem déspotas e independentes do poder eleito, prevaleceram até a década de 1880. A partir da vitória dos correligionários republicanos nas urnas, impulsionados pelo sentimento popular contrário às práticas de clientelismo e favorecimento pessoal em razão de cargo público, foi iniciado um processo de depuração da maquina administrativa que substituiu funcionários conservadores em todos os níveis hierárquicos, inclusive no Conselho de Estado. O século XX viu crescer o poder da administração pública em detrimento do prestígio do parlamento. ROSANVALLON (2008, p. 64) adiciona a tal observação que também nessa época surgiu a noção de “República”, associada à ideia de generalidade social, em oposição à democracia, sempre vinculada à formação majoritária.

Também foi nesse período em que floresceram teorias políticas e jurídicas que buscavam confrontar o ideário então consolidado sobre os alicerces do indivíduo e da soberania popular. No campo da sociologia, seguindo as pegadas de Alfred Espinas e Alfred Fouillée, Émile Durkheim destacou-se na crítica ao individualismo como fundamento da estrutura social, alegando que sua teoria se baseava antes em fatos que sobre ideologias. Para Durkheim, a sociedade não seria composta da soma de indivíduos atomizados, mas por uma rede de agrupamentos secundários coordenados e subordinados uns aos outros, os quais intermediariam as relações entre indivíduos e o Estado (ROSANVALLON 2004, pp. 271-273).

Teorizava DURKHEIM (2002, p. 69) que a ação estatal não representava de fato a vontade geral do povo, pois ao pensar e decidir, o Estado o faz pela sociedade, e não o contrário. Desse modo, o Estado não seria um simples canalizador das vontades populares, mas um centro organizador dos subgrupos que intermedeiam a sua relação com os indivíduos. Era assim que justificava o crescimento das funções do poder Executivo:

“Afinal, diz-se correntemente dessa parte do Estado, ou pelo menos do que se chama especialmente de governo, que ele contém o poder executivo. Mas a expressão é totalmente imprópria: o Estado não executa nada. (...) Nesse aspecto não há diferença entre o Parlamento ou os conselhos deliberativos de todos os tipos de que podem cercar-se o príncipe, o chefe de Estado e o governo propriamente ditos, o poder denominado executivo. (...) Toda a vida do Estado propriamente dito se passa não em ações exteriores, mas em deliberações, ou seja, em representações. (...) O Estado, pelo menos em geral, não pensa por pensar, para construir sistemas de doutrinas, mas para dirigir a conduta coletiva.” (DURKHEIM 2002, pp. 71-72)

Fortemente influenciado pela teoria de Durkheim, Léon Duguit buscou quebrar o paradigma, sedimentado na Revolução Francesa, de que a sociedade resultaria de um contrato social entre indivíduos. Da mesma forma, refutou a doutrina francesa da soberania como fundamento da atuação estatal, entendida aquela como uma entidade coletiva comandante, naturalmente superior ao indivíduo, na qual o poder público é compreendido como um direito subjetivo do Estado. Atacando a soberania, isto é, sustentando que se tratava de em ente imaginário e metafísico, Duguit assim sustentava:

“Eu sustentei que o Estado é tão simplesmente o produto de uma diferenciação natural, um tanto simples, um tanto complexa, entre os homens de um mesmo grupo social, de onde resulta o que se chama poder público, que não pode jamais se legitimar pela sua origem, mas apenas pelos serviços que presta segundo a regra de direito; que a partir do momento em que o Estado moderno aparece cada vez mais como um grupo de indivíduos trabalhando de forma concertada, sob a direção e o controle dos governantes, com o fim de realizar as necessidades materiais e morais dos participantes; que então a noção de poder público é substituída pela de serviço público; que o Estado cessa de ser um poder que comanda para se tornar um grupo que trabalha, e que os detentores do poder público não podem legitimamente o pôr em movimento senão para assegurar a colaboração comum.” (DUGUIT 1927, pp. viii-x) [tradução livre]

Mas este autor foi mais além. De fato, DUGUIT(1913, pp. 47-51)fundamentou sua teoria na inovadora noção de “serviço público”. Para esse autor, “serviços públicos”eram aqueles considerados pela sociedade como de prestação obrigatória por parte do Estado; eram atividades cuja execução deveria ser regulada, assegurada e controlada pelo Estado, tendo em vista ser indispensável ao desenvolvimento da interdependência social, desde que essa atividade fosse de tal natureza que não pudesse ser completamente satisfeita senão pela intervenção do poder governamental.O conceito de “serviço público”seria para o professor bordelense sobremaneira variável e evolutivo por natureza.Isso porque a quantidade e a complexidade desses serviços aumentavam à medida que a civilização se desenvolvia e cresciam as necessidades dos cidadãos, cuja satisfação deveria ser atendida, direta ou indiretamente, por meio da atuação estatal. De maneira mais abrangente, afirmavaDuguit que o próprio direito evoluía sobretudo sob a ação das cambiantes necessidades econômicas do país e de seus habitantes.

O direito público moderno, segundo o citado autor, seria um conjunto de regras que determinam a organização dos serviços públicos e asseguram seu funcionamento regular e ininterrupto. O fundamento do direito público não seria mais um direito subjetivo de comando, mas o dever de organização e gestão de serviços públicos. Ao mesmo tempo em que o direito privado deixaria de ser baseado no direito subjetivo do indivíduo, passando a repousar sobre a noção de uma função social imposta a cada sujeito, o direito público não se fundaria mais no direito subjetivo do Estado, na soberania, mas na noção de uma função social dos governantes, consistente na obrigação de gestão dos serviços públicos imprescindíveis à população(DUGUIT 1913, p. 52).[3]

Com Duguit sobreveio uma nova perspectiva para a questão da legitimidade política, que buscaria sua fonte não mais na origem do poder, mas no fim que ele pretende alcançar. O fundamento da ação administrativa deixava de ser a noção de “vontade geral”, então substituída pelo conceito de “interesse geral”. A lei não mais seria simplesmente a expressão da vontade geral, tornando-se a formalização do interesse social apenas reconhecido pelo legislador. “A mecânica da construção de uma vontade soberana por meio de um procedimento eleitoral perdeu sua centralidade em proveito de um trabalho objetivo de identificação das necessidades da sociedade, derivadas de suas formas de organização e de sua natureza” – daí significado da expressão “direito objetivo”, discorrida por Duguit(ROSANVALLON 2008, p. 69).

Com as contribuições de Duguit para a teoria da legitimidade, o Estado passava então a ser o “instituidor do social”, consoante a análise de Rosanvallon; não mais como um modelador da massa de indivíduos, mas como uma força de coordenação da multiplicidade de serviços públicos funcionais e autônomos, destinados ao atingimento do interesse geral para o qual foram criados. Não era mais a autoridade eleita a produtora do interesse geral, passando ao funcionário público a grande responsabilidade de identificá-lo e de fazer mover-se a máquina administrativa em favor da persecução desse bem comum. Antes mero executor de ordens, o funcionário agora era presenteado com a autonomia necessária para exercer sua “função” de realizar os objetivos da coletividade por meio da prestação de serviços públicos. A função dos servidores públicos seria de caráter objetivo e deveria constar em estatuto legal que lhes garantissem as prerrogativas imprescindíveis à sua independência em relação aos interesses partidários. Surgia, assim, o que ROSANVALLON(2008, pp. 70-74) apelidou de “corporativismo do universal”.[4]

O modelo da valorização do funcionário público atrelado a uma missão de interesse geral ganhou amplo terreno na França durante as primeiras décadas do século XX.[5] Esse fenômeno serviu para contrabalançar o poder político oriundo das urnas, ao erigir os altos funcionários públicos em guardiões do interesse público, da legitimidade da atuação estatal, em razão de seus atributos inerentes ao cargo: desinteresse e racionalidade. Essas duas qualidades ligam-se ao conceito de “generalidade”, que por sua vez remonta à ideologia revolucionária que defendeu o sufrágio universal como método de escolha de seus governantes também em razão de sua impessoalidade. A princípio, tanto as eleições como os concursos públicos seriam formas legítimas para a seleção dos indivíduos que encarnarão o poder público. Essas duas espécies de “prova” – uma representando a expressão conjunta de vontades qualificadas, e outra valorizando critérios objetivos de seleção de competências – seriam complementares para o estabelecimento de um bom sistema político, legitimado pela igualdade de expressão cidadã e pela igualdade de possibilidades de acesso (ROSANVALLON 2008, pp. 86-91).

O sistema de dupla legitimação democrática resultante das duas provas de generalidade acima comentadas persistiu praticamente inabalado até o início da década de 1980. ROSANVALLON (2008, pp. 101-104) menciona o surgimento de uma nova “era da particularidade” como um dos fatores do declínio da legitimidade democrática estatal percebida pela sociedade, resultante de transformações econômicas e sociais que influenciaram a governabilidade e a relação entre a sociedade e a política. O capitalismo moderno construído a partir da revolução industrial foi calcado em um paradigma de autonomização e padronização do mundo econômico, que contribuiu para a instauração de uma sociedade, por sua vez, também generalizada. Mesmo o advento do Estado-providência não alterou os rumos dessa generalização econômica, ao tratar de forma homogênea certos grupos populacionais em situação de risco social, mediante critérios racionais-burocráticos. Foi esse mundo industrial que, segundo Rosanvallon, passou a se desmanchar nas últimas décadas do século XX.

A economia de bens padronizados cedeu paulatinamente seu lugar para uma “econômica da particularidade”, em que produtos passaram a ser tão mais valiosos quanto mais fossem “customizados” – tornados mais aderentes às necessidades individuais dos consumidores. Sobre esse ponto, ROSANVALLON (2008, pp. 105-106) nota que as características da produção material se aproximaram cada vez mais da essência inerente ao mundo dos serviços, em que noção de “qualidade” é o ponto central. Daí a acelerada multiplicação dos produtos desenvolvidos para cada gosto ou necessidade dos consumidores.

Essa nova tendência da vida econômica refletiu de maneira determinante no modo de composição do social, fazendo surgir, de acordo com Rosanvallon, uma “sociedade da particularidade”, que em nada se parece com uma sociedade de indivíduos desagregados. Essa recente espécie de sociedade se distingue pelas novas modalidades de liames sociais e de identidade que despontam em substituição ao simplificado modelo de classes sociais. E essa sociedade inovadora, por seu turno, provocou o desenvolvimento de relações inéditas entre indivíduos e instituições, assim como novas maneiras de conceber a ação coletiva e a proteção dos direitos individuais. Exemplo dessas mudanças pôde ser verificado nas transformações sofridas pelo Estado-providência, que deixou de prestar assistência apenas em função de classes gerais de risco – como doença, invalidez e desemprego – para oferecer tratamento adequado a necessidades mais individualizadas – a exemplo de políticas públicas dirigidas a certo grupo de indivíduos considerado sob risco de contrair determinada doença. O objetivo era o de proporcionar a cada cidadão os meios verdadeiramente apropriados para a resolução de seu problema específico (ROSANVALLON 2008, pp. 107-110).

Ao mesmo tempo em que se aprofundava essa “sociedade da particularidade”, aumentava a exigência social por maior imparcialidade, acarretando pressões por redefinições político-institucionais. Numa sociedade em que a particularidade adquiria crescente valor, o modelo de administração pública baseado na formulação de regras gerais aplicáveis aos administrados era posto em xeque. Cada decisão tomada pelos altos funcionários, públicos ou eleitos, passava a ser alvo de questionamentos de diversos setores da sociedade – a exemplo de decisões sobre o reajuste de tarifas de serviços públicos essenciais, como energia elétrica. Essa onda de insurgência social levou o Estado a procurar se associar a um número cada vez maior de grupos de interesse, fazendo com que seu processo decisório se tornasse igualmente mais complexo, de modo a dar lugar a sucessivos espaços de coordenação e conciliação com os diversos agentes interessados nas políticas públicas em gestação. Surgia, assim, a noção de “governança” (ROSANVALLON 2008, p. 111).

O jurista Jacques Chevallier aponta a governança como uma das principais características do que esse autor entende por “Estado pós-moderno”. Segundo esse autor, a governança não substituiria o antigo modelo da administração pública – marcado pela assimeteria, desigualdade e unilateralidade de suas regras e políticas públicas –, mas funcionaria de modo a adaptá-lo às novas demandas sociais por consideração estatal das particularidades de cada grupo de interesse atingido. Ao privilegiar técnicas administrativas focadas no consenso e nos compromissos assumidos de parte a parte, a governança não abriria mão dos mecanismos de governo tradicionais, os quais garantem a estabilidade do ordenamento jurídico estatal (J. CHEVALLIER 2008, pp. 239-242).

As já mencionadas exigências sociais por maior imparcialidade decorreram justamente do alargamento das possibilidades de diálogo com os diferentes grupos interessados. Isso porque, junto com a hipótese de atendimento estatal de pretensões particulares, surgem também suspeitas de eventuais favorecimentos pessoais. O risco de captura contribuiu, segundo ROSANVALLON(2008, pp. 112-113), com a perda de prestígio dos altos funcionários públicos e do aparelho administrativo montado a alto custo durante o curso do século XX.

Em igual sentido, consoante Rosanvallon, o fato eleitoral majoritário também perdeu boa parte sua capacidade de legitimação, em razão das já comentadas transformações na forma de composição da sociedade. O significado de “povo” perdeu sua acepção original, correspondente a uma massa dotada de desejos positivos e determinados. Passou então a ser entendido como uma soma, eternamente cambiante, de pretensões não reconhecidas, de privações de direito, de carências. A noção de “minoria”, por sua vez, tomou o lugar antes reservado à ideia de maioria, para tornar a sociedade um conjunto de situações minoritárias de todas as naturezas, em atenção a todos os tipos de singularidades (ROSANVALLON 2008, pp. 117-118). Embora compreendido como um fenômeno relativamente recente, as raízes dessa transformação social já eram percebidas por Benjamin Constant, que as descreveu de modo lapidar:

“A maioria dos escritores políticos, principalmente aqueles que escreviam com base nos princípios mais populares, recaíram em erros bizarros ao tratar dos direitos da maioria. Eles a representaram como um ser real cuja existência se prolonga e é constituída sempre das mesmas partes. Mas acontece invariavelmente que a maioria de ontem forma a minoria de hoje. Defendendo os direitos da minoria, defende-se então o direito de todos. Pois cada um a seu turno se encontra em minoria. A associação inteira se divide em uma barafunda de minorias oprimidas sucessivamente. Cada uma delas, isoladas porquanto vítimas, voltam a ser, por uma estranha metamorfose, parte do que se costuma chamar o grande todo, para servir de pretexto ao sacrifício de uma outra minoria. Reconhecer à maioria uma autoridade ilimitada é oferecer ao povo em massa o holocausto do povo em detalhe.” (CONSTANT 1980, pp. 53-54) [tradução livre]

Sobre o autor
Victor Epitácio Cravo Teixeira

Procurador Federal em exercício na Procuradoria Federal Especializada junto à ANATEL, em Brasília (DF). Bacharel em Direito pela UFPE. Pós-graduado em Regulação das Telecomunicações pelo INATEL. Mestre em Direito pela UnB.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TEIXEIRA, Victor Epitácio Cravo. A legitimidade democrática para além do voto popular. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3464, 25 dez. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23252. Acesso em: 23 dez. 2024.

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