3 O casamento do transexual transgenitalizado
A possibilidade do casamento do transexual foi discutida em 1975, no congresso da Association Henri Capitant, realizado em Bruxelas, com o tema “O corpo humano e o direito”. Naquela época, Canadá, Colúmbia Britânica e Alberta já dispunham de legislação acerca da cirurgia de redesignação de gênero, com a posterior retificação do registro de nascimento, sendo que o matrimônio é condicionado ao prévio conhecimento do cônjuge acerca do ato cirúrgico. [28]
No Brasil, o ex-deputado José Coimbra apresentou o Projeto de Lei 70-B de 1995[29], cuja iniciativa tem por objetivo acrescentar o §9° ao artigo 129 do Código Penal. Segundo a proposta legislativa, não constitui crime a intervenção cirúrgica realizada para fins de ablação de órgãos e partes do corpo humano quando destinada a alterar o sexo de paciente maior e capaz, devendo ser autorizada a modificação de prenome do transexual transgenitalizado quando a cirurgia for realizada mediante autorização judicial.
Atualmente, no ordenamento brasileiro não há qualquer disposição sobre a transgenitalização e as suas conseqüências no mundo jurídico, de modo que a jurisprudência tem formado relevante posicionamento para garantir aos transexuais postulantes de ações de retificação de registro de nascimento a melhor prestação jurisdicional, com supedâneo nos princípios e nas garantias fundamentais.
Neste viés, relacionando o assunto com a união conjugal, não se pode ignorar que, segundo o Código Civil, o casamento só tem validade quando celebrado entre pessoas de sexos diferentes, circunstância que aparentemente seria inviável para o transexual que objetivasse casar com pessoa de gênero idêntico ao seu de nascimento. Sobre o assunto, Moacir César Pena Júnior ressalta:
Quanto ao casamento do transexual, ou seja, de pessoa que, embora biologicamente normal, identifica-se completamente com o sexo oposto e vive como se a ele pertencesse, deve-se considerar a possibilidade não só de sua existência, como também de sua validade e anulação. Senão vejamos: se a pessoa não declara a sua condição de transexual antes do casamento, poderá o outro cônjuge, alegando desconhecimento do fato, acionar o Judiciário mediante ação de anulação, por erro essencial quanto à qualidade daquela pessoa. Mas a solução é a anulação do casamento e não o reconhecimento da sua inexistência. Admitindo o transexual que por meio de procedimento médico cirúrgico alterou o seu estado sexual, e sendo o cônjuge do sexo oposto, além de conhecedor dessa situação, há de se reconhecer a validade desse casamento, especialmente depois de obtida na Justiça a mudança de nome e sexo, permitindo a retificação do registro civil.[30]
Arnaldo Rizzardo, por sua vez, contribui lecionando que:
Se a intervenção cirúrgica ocorre na vigência do casamento, desaparecem os pressupostos de sua existência. Saliente-se, todavia, que o sexo revelado pelo tratamento médico já existia potencialmente na celebração do casamento.
Nesta complexa situação, o casamento será inexistente. Poderá o outro cônjuge postular a desconstituição, eis que, quando da celebração, era desconhecida a transexualidade. A inclinação transexual configura a hipótese de erro sobre a qualidade pessoal. E se a mulher tivesse obtido conhecimento das peculiaridades do então noivo, não contrairia casamento.[31]
O doutrinador defende o reconhecimento do casamento de transexual transgenitalizado após retificação do registro civil:
Considera-se, outrossim, válido o casamento da transexual após o tratamento médico e a alteração do registro civil, com pessoa pertencente ao sexo anterior. Houve a mudança de sexo. Por outras palavras, é obedecida a diversidade de sexos. A menos, é evidente, que as mudanças sejam apenas nos caracteres externos, permanecendo os órgãos congênitos do anterior sexo.[32]
Com muita propriedade, Maria Berenice Dias, ao tratar do assunto, preleciona que deve ser questionado se a cirurgia de redesignação de fato transforma homem em mulher e mulher em homem. Caso positivo, sustenta a jurista que não há que se ter dúvidas sobre a validade do casamento do transexual, destacando a desnecessidade de regulamentação legal da sua situação jurídica.
4 Identidade de sexos e a anulação do casamento do transexual
O legislador conferiu especial importância ao casamento, elencando pressupostos que devem essencialmente ser observados, sob pena de invalidade do ato.
A teoria da inexistência do casamento foi construção doutrinária voltada a justificar a impossibilidade de consideração de determinadas situações onde não se podia justificar a aplicação da teoria da invalidade. Assim, para que seja reconhecida a existência do matrimônio no mundo jurídico, não pode haver identidade entre os sexos dos nubentes, ausência de consentimento ou falta de celebração por autoridade competente.
Guilherme Calmon Nogueira da Gama[33] leciona sobre a divergência de sexos nos casamentos daqueles portadores de distúrbio de gênero:
Relativamente ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, é importante registrar que, nos casos envolvendo transexuais que se submeteram à cirurgia de mudança de sexo (transgenitalização), a mudança do sexo no registro civil autorizará o casamento do transexual com pessoas do sexo (jurídico) oposto, sem possibilidade de qualquer restrição a esse respeito.
No caso dos transexuais, há divergência entre o sexo do indivíduo, tal como se determinou no assento de nascimento devido às características sexuais externas (sexo morfológico), e o sexo psicológico, ou seja, o sentimento íntimo, a autêntica convicção da pessoa de pertencer ao sexo oposto ao que consta do seu registro civil.
Para configurar a hipótese de inexistência do casamento por falta de divergência entre os sexos dos cônjuges deve ser levado em consideração se um dos nubentes é transexual transgenitalizado, com prenomes e sexo devidamente alterados em seu registro civil.
Em tese, a cirurgia de redesignação de gênero altera a genitália externa de modo estético, não comprometendo a carga genética e cromossômica do indivíduo, de modo que não aperfeiçoa o sistema reprodutor, que perde a sua funcionalidade.
Maria Berenice Dias afirma que se trata de um procedimento cirúrgico de correção, posto que “tornou-se possível mudar a morfologia sexual externa para encontrar a identificação da aparência com o gênero desejado”[34], já que na sua essência, prevalece o sexo de nascimento.
Entretanto, registra-se que não é possível considerar o conceito de sexo fora de uma apreciação plurivetorial, resultante de fatores genéticos, somáticos, psicológicos e sociais.[35]
Ao ser submetido ao tratamento psicológico, medicamentoso, hormonal e cirúrgico, o transexual pode obter autorização judicial para retificação do prenome e do sexo no seu registro civil, o que, de fato, modifica o seu gênero de nascimento.
Trata-se, pois, da formalização de uma nova condição de vida, pois o transgenitalizado se comporta perante a sociedade como se fosse mulher. Não seria digno obrigá-lo a manter um nome que não condiz com a sua realidade.
A identificação sexual do indivíduo é feita no momento do nascimento, pela análise da sua genitália. No entanto, a aparência externa não é a única circunstância a ser considerada para atribuição de identidade sexual, concorrendo o elemento psicológico para a sua configuração. [36]
Resta superada, assim, a tese de que seria inexistente o casamento de transexual transgenitalizado por ausência de divergência de sexos dos nubentes, cabendo a sua anulação apenas nas hipóteses legais.
Sobre a matéria, importante colacionar os ensinamentos de Maria Berenice Dias:
Ao menos é de ser admitido como existente e válido o casamento de transexual. Independentemente da redesignação dos órgãos genitais, obtida, na justiça, a alteração do nome e a retificação da identidade do sexo, tais pessoas não estão impedidas de casar. O casamento não se pode ter por nulo, muito menor por inexistente.[37]
[…] Se a doutrina e a jurisprudência têm tendência a reconhecer que um ex-homem tornou-se mulher para todos os efeitos, a tal pode que pôde obter retificação do registro civil, se admitem tacitamente todos que ele possa unir-se a pessoa de sexo diferente daquele obtido artificialmente, não se poderá negar, por uma questão de coerência, que mais cedo ou mais tarde chegará o momento de reconhecer que o casamento será possível, por maiores que ainda possam ser os preconceitos, por mais acaloradas que possam ser as discussões e as controvérsias que se travarem sobre o tema.[38]
Por derradeiro, o inciso II do artigo 5° da Constituição Federal estabelece que ninguém poderá fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Assim, não havendo normativo acerca do impedimento do casamento de transexual transgenitalizado, é possível conferir validade ao seu matrimônio.
5 Da anulação do casamento por erro essencial sobre a pessoa
A família é a base da sociedade e, por isso, merece total proteção do Estado. Os vínculos familiares se aperfeiçoam por meio do afeto, da igualdade, do companheirismo, da lealdade, da ética e da confiança mútua entre seus membros.[39]
O casamento é o ato que oficializa a união entre duas pessoas de sexos divergentes, que firmam a vontade do matrimônio perante autoridade competente.
Como visto anteriormente, deve ser reconhecida a ausência de impedimento para o casamento de transexual com pessoa de sexo idêntico ao seu de nascimento. Porém, em que pese a liberdade que é concedida ao transgenitalizado, a descoberta da sua verdadeira identidade pessoal, em momento posterior ao enlace, poderá ensejar a anulação do matrimônio por erro essencial sobre a pessoa. Neste sentido:
O erro essencial está sempre vinculado ao engano, isto é, ao desconhecimento do “defeito” do outro, e sua teoria no matrimônio, pela sua índole, pela característica sui generis do contrato e pelos interesses sociais que a ele se ligam, é totalmente diversa da teoria do erro, nos atos jurídicos ordinários.[40]
A esse propósito, destaca-se o ensinamento de Sílvio de Salvo Venosa:
O erro em matéria de casamento, tal como entende o legislador, nada mais é do que uma especificação do conceito de erro substancial quanto à pessoa, aplicável ao direito matrimonial. Contudo, no caso concreto, embora devamos examinar o conteúdo específico do capítulo de família, a noção básica fundamental de erro quanto à pessoa da teoria geral deve sempre ser considerada. Na verdade, as descrições legais de erro no casamento são desdobramentos do erro como regra geral dos atos jurídicos. Como em matéria de casamento não há nulidade sem texto, somente poderá ser anulado por erro o casamento que se subsumir às situações de erro especificamente descritas.[41]
Arnaldo Rizzardo, por sua vez, defende o posicionamento de que a essencialidade do erro é o requisito mais importante para ensejar a anulação, pois “refere-se às formulações íntimas ou pessoais conjecturadas sobre a pessoa do cônjuge”[42].
O artigo 1.557, inciso I, do Código Civil, disciplina que o erro envolve a identidade, a honra e a boa fama da pessoa, sendo esse erro tal que o seu conhecimento ulterior torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado.
Acerca do assunto, leciona Maria Berenice Dias:
O erro essencial quanto à pessoa do noivo configura vício de vontade a autorizar a anulação do casamento (CC 1.150 III). Prevê a lei como nulificante o erro quanto à identidade, qualidades físicas, morais e de caráter do cônjuge. São elencadas as causas que podem dar ensejo à anulação do casamento, como se a insuportabilidade da vida em comum pudesse ser tarifada pelo legislador. De qualquer forma, a existência de um rol de erros evidencia a nítida intenção pela mantença do casamento. As hipóteses todas dizem com atos e fatos anteriores ao casamento, ignorados pelo outro, e que, ao serem conhecidos, tornam insuportável a vida em comum.[43]
Em relação ao transexual, tem-se que o erro, quanto à hipótese de anulação, seria sobre a sua identidade pessoal ou civil. Por esta razão que “o casamento não se pode ter por nulo, muito menos por inexistente. Alegando o consorte que desconhecida a condição de transgênero do cônjuge, pode ser reconhecido eventualmente erro essencial de pessoa”[44].
Na espécie, “não cabe indagar-se da malícia do cônjuge que a ela deu causa, nem se apura culpa ou má-fé. Tampouco se afasta a anulabilidade se o cônjuge ofendido incorreu em culpa, casando-se imprudentemente” [45] com pessoas cujos antecedentes conhecia ou devia conhecer.
Daniela Rosário Rodrigues esclarece o erro que atinge a identidade civil do cônjuge:
Quanto à identidade civil, o próprio legislador prevê o erro que atinge a honra e a boa fama do consorte. Com efeito, trata-se de circunstância em que o cônjuge apresenta alguns atributos de comportamentos ofensivos ao consorte, que se sente enganado, e faz com que a vida em comum se torne insuportável.[46]
Nesta senda:
A identidade civil (ou social) é o conjunto de atributos ou qualidades essenciais, com que a pessoa aparece na sociedade, e o erro sobre ela torna anulável o casamento, se demonstrada a insuportabilidade da vida em comum para o cônjuge enganado. [47]
A menção da condição de transexual nos seus documentos pessoais, apesar de evitar a configuração do erro essencial sobre a pessoa - porque estaria o transgenitalizado obrigado à revelar a sua verdadeira identidade sexual ao seu cônjuge -, afrontaria cabalmente o seu direito à intimidade.
Com muita propriedade, Maria Berenice Dias preleciona que “integra o restrito campo do livre arbítrio de todo e qualquer indivíduo o direito de revelar ou ocultar seu sexo real, o sexo com o qual se identifica ou o sexo pelo qual optou”[48].
Neste rumo, conquanto seja garantido ao transexual o direito à intimidade, à vida privada, à honra e à dignidade, também é conferido ao seu cônjuge o direito de optar, livremente, pelo matrimônio, devendo o transgenitalizado ser responsabilizado pelas suas escolhas quando estas afetem direitos de terceiros.
Diante disso, se o transexual não revelar sua condição anterior, é resguardado ao cônjuge enganado o direito de postular, em ação própria, a anulação de casamento em que foi constatado erro essencial sobre a pessoa do outro consorte, isto no prazo decadencial de três anos, a contar da data da celebração do matrimônio, conforme estabelece o artigo 1.560 do Código Civil[49].