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A metáfora da guerra e suas implicações

Agenda 10/01/2013 às 08:07

Caso um processo de negociação seja aberto entre essas vertentes do Direito Penal – Programa Tolerância Zero e Direito Penal do Inimigo – e aquelas que defendem o respeito aos direitos humanos, sem radicalismos e na busca de alguns consensos, talvez seja possível encontrar um caminho que atenda aos anseios da sociedade.

Resumo: Discute-se a relação entre a política pública da Tolerância Zero e o Direito Penal do Inimigo, tendo em vista a metáfora da guerra empregada não apenas na ciência jurídica, mas em outros campos do conhecimento.  Da ciência política, toma-se a perspectiva do teórico político italiano Antonio Gramsci e sua concepção sobre a “guerra de movimento” e a “guerra de posição”. No tocante à Tolerância Zero, se depreende a ideia de “guerra” contra qualquer crime, desde os menos reprováveis, para preservar a segurança pública. No Direito Penal do Inimigo, a “guerra” é explicitada, uma vez que para seu formulador Günther Jakobs (2003), deve-se incluir o inimigo no conceito de delinquente cidadão e mesclar os conceitos de “guerra” e processo penal. Em ambas, a relação fundamental é a base teórica liberal que ampara ideologicamente a lógica capitalista. Tomam o indivíduo delituoso como adversário a ser combatido numa “guerra”, minimizando os efeitos da lógica social sobre a sua conduta. Racismo e desrespeito aos Direitos Humanos possuem potencial para interferir nesses processos, caso seus agentes ou operadores não estejam preparados para compreender as razões históricas dessas situações.

Palavras-chave: tolerância zero, direito penal do inimigo, metáfora da guerra.


Introdução

A metáfora da guerra, tudo indica, tem sido utilizada de maneira recorrente, ao longo do tempo, em todos os campos do conhecimento.  No campo da ciência política, destaca-se a contribuição da Antonio Gramsci (1989; 2011), cuja produção teórica se situa no interior do marxismo. É o próprio Gramsci quem reconhece ser Marx a matriz teórica do seu pensamento e Lênin seu grande inspirador. Mas a análise concreta da realidade, que a ciência da história exigia (e exige), fez com que desenvolvesse outros aspectos da questão revolucionária. Escreveu sobre a Itália e sobre estratégia e táticas que deveriam ser utilizadas, de acordo com as características peculiares daquele país, para a tomada do poder. No entanto,  ao procurar entender a singularidade italiana, como expressão da sociedade capitalista do tipo ocidental – em contraposição à do tipo oriental que teria por paradigma a União Soviética – pôde construir categorias de caráter universal, aplicáveis a outras realidades singulares. Isso não eximiria, contudo, os intelectuais orgânicos, nessas realidades singulares, do conhecimento das suas necessidades gerais.

Nessas nações de tipo ocidental deveria ser priorizada e travada uma guerra de posição - implicando na ocupação gradual de espaços estratégicos no interior da estrutura estatal -, pois difeririam das de tipo oriental pelo grau de complexidade organizativa da sociedade civil, instância do consenso ou hegemonia na teoria de Estado construída por Gramsci. No caso da URSS, nação de tipo oriental, o embate ideológico ficou num segundo plano. Partiu-se, “sem mediação” para a guerra de movimento. Tanto em uma forma quanto em outra, seria fundamental, para Gramsci, que se garantisse a hegemonia da concepção de mundo da classe revolucionária, sem o que se revelaria impossível manter o controle a sociedade política.

A teoria de Estado gramsciana é bastante complexa. Para compreendê-la exige-se a leitura sistemática de sua obra, sempre sujeita a muitas interpretações, mas capaz de inspirar movimentos de transformação social. Tendo em vista que o grande desafio é a construção de um novo bloco histórico (estratégia) e de uma nova hegemonia, nas instâncias de coerção (sociedade política) e de consenso (sociedade civil), não se pode perder de vista nem as relações sociais de produção, nem as manifestações ideológicas das classes fundamentais complementares e antagônicas (e suas concepções de mundo) no bloco histórico capitalista. 

Também essa metáfora da guerra está presente, de maneira subliminar ou evidente, tanto na política pública do programa Tolerância Zero, quanto no Direito Penal do Inimigo[1]. Sobre as relações entre esses movimentos pretende-se tratar nesse artigo, que está dividido em três sessões, além dessa introdução. Na primeira, discorre-se sobre a política pública do Programa Tolerância Zero (PTZ), operacionalizada em Nova York, a partir da década de 1990. Em seguida, são traçadas as linhas básicas do Direito Penal do Inimigo (DPI), formulado pelo jurista alemão Günther Jakobs, em 1985.  Por fim, à guisa de conclusão, procura-se evidenciar as relações entre essas duas perspectivas.


1)O programa Tolerância Zero

O PTZ, a partir de 1994, transformou o quadro de violência em Nova York. Na gestão do prefeito Rudy Giuliani e sob o comando do comissário de Polícia William Bratton, o programa teve tanto êxito que mereceu elogios da sociedade americana, da imprensa e a aprovação de políticos. Também, internacionalmente, foi aprovada, especialmente de juristas, criminologistas e sociólogos[2]. Não sem razão: em 1990, o número de homicídios em Nova York chegou ao recorde de 2.262.  No ano 2000, esses crimes tinham sido reduzidos em mais de 70%.

Dois foram os eixos do programa. De um lado, o endurecimento da teoria do Broken Windows (Janelas Quebradas), com repressão a qualquer transgressão à lei, mesmo os delitos mais leves. De acordo com Cabral (2010), essa teoria pressupunha que:

 [...] não se reprimir os pequenos delitos, tais como, ao se deixar uma janela quebrada sem conserto, havia uma tendência natural de que mais janelas fossem quebradas, uma vez que a existência de uma janela quebrada sem conserto gerava o sentimento na comunidade de que ninguém se preocupava [3].

Outras modalidades de tolerância zero foram criadas no rastro da popularidade daquela política tais como a “tolerância zero contra as drogas” a “tolerância zero contra a violência nas escolas”, essa última envolvida em controvérsias e críticas, com a punição dura de crianças e adolescentes em razão de delitos banais (IDEM).

O outro eixo da política foi o da reorganização e descentralização do Departamento de Polícia, armazenando e trocando informações através de tecnologias avançadas, que reduziram a burocracia, e reprimindo a violência e corrupção policial. Segundo Rubin (2003), nos EUA progressivamente se criou “a ideia de que a polícia não devia mais zelar pela ordem pública, mas investir todos os seus esforços apenas no combate ao crime. Assim, desordens e pequenos ilícitos foram deixados de lado, para que se combatesse apenas os crimes mais graves”. As janelas quebradas deixaram de ser reparadas, ante a criminalidade nos centros urbanos.

Para os antropólogos americanos Wendel e Curtis (2002, p. 268), no caso do combate às drogas os resultados são mal interpretados:

A análise das consequências da política de combate à venda de drogas deve ser feita além dos números de prisões efetuadas, para se compreender o papel que as drogas desempenham numa visão mais abrangente da política econômica. Em Nova Iorque, existe pouca evidencia para sugerir que o mercado de drogas foi eliminado ou reduzido pela política de “tolerância zero”.

O mercado de drogas foi reconfigurado, em parte devido às táticas agressivas de policiamento, por mudanças ocorridas nos bairros e pela preferência dos consumidores. A “tolerância zero” tem criado um mercado menos visível e mais difícil de ser detectado – entregas a domicílio, vendas “relâmpago” (vendas esporádicas em locais não-estabelecidos) e também vendas franchise (uma forma de organização social de distribuição, em que traficantes fornecem a droga pré-embalada para vendedores independentes, ao invés de contratá-los) – e isso tem-se tornado mais comum que a tradicional venda nas ruas.

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 Segundo eles, ideia original da proposta incorporava consultas na comunidade no planejamento de ações e no nível de tolerância dos vários atos de desordem cometidos. Isso não foi ocorreu em Nova Iorque. As regras estabelecidas ignoraram a participação dos residentes nas decisões. Kelling, o idealizador, argumentou que a política de “tolerância zero” distorceu a abordagem de seu plano.

Apesar do sucesso na redução da criminalidade, muitas críticas e questionamentos foram feitas ao PTZ, objeto de muitas interpretações.  O desrespeito aos Direitos Humanos tem sido a maior objeção. Isso porque, perseguindo a dura repressão às incivilidades passou-se a criminalizar a miséria, materializada na intensificação do preconceito racial. Segundo Marina Lemle (2006), os dados sobre quem são os prisioneiros nos Estados Unidos corroboram esta argumentação: em 2003, negros e latinos representavam 78% do total de pessoas presas, número que cresceu para 81% em 2004. Em ambos os anos, mais de 80% do total dos casos foram crimes leves ou contravenções.

Belli (2003), nessa mesma linha de reflexão, ao analisar o programa tolerância zero americano, afirma que sua proposta segue a tendência geral do encarceramento em massa e exclusão dos indesejáveis. Para ele, essa tendência é seguida no Brasil com a progressiva redução do Estado de suas funções policiais e carcerária. Ante a incapacidade de o Estado resolver os conflitos sociais, torna-se tentador atribuir ao indivíduo a responsabilidade de crimes violentos. Por isso, a exclusão histórica e sistemática de grande parte da população no Brasil forneceria condições para a implantação de variantes do programa tolerância zero americano. O individualismo exacerbado, a desigualdade social e a falta de respeito às diferenças que dificultam a convivência transformam a violência no único dispositivo para regular os conflitos. Busca respostas provisórias, mas soluções estão em aberto.


2)O Direito Penal do Inimigo

A hipótese de permissão, ou não, da relativização dos direitos fundamentais é aceita pela doutrina jurídica contemporânea.  De acordo com FARAH F.V. (2011, p.17),

[...] os preceitos fundamentais podem ser minimizados, especialmente quando em conflito com outros direitos fundamentais, que demandam a sobreposição de um dos princípios em jogo para que o outro tenha aplicação plena. Logicamente que a prática requer uma criteriosa análise, a fim de que seja considerado o mais justo possível.

No campo do direito penal e do processo penal permite-se esse procedimento, de forma a que direitos fundamentais sejam aplicados de maneira a se obter um meio justo de análise dos fatos e consequente resolução das contendas. Esse é o caso do direito fundamental da liberdade, potencialmente violável, considerando-se que para a aplicação concreta de uma pena de prisão vários fatores devem ser observados, obedecendo-se comandos legais para legitimar a ação do Estado. Porém, teorias “radicais” - como o Direito Penal do inimigo, conceituada inicialmente por Günther Jakobs em Derecho Penal del Enemigo -, sinalizam que há uma evidente mitigação de direitos fundamentais. Nelas alargam-se os objetivos do cerceamento de liberdade, implicando num dissenso doutrinário sobre uso da pena de prisão (FARAH F.V., 2011, p.17).

O “inimigo”, de acordo com Morais (2006, p.9), é o indivíduo que não aceita a submissão às regras básicas do convívio social, e, portando não é merecedor do mesmo tratamento dispensado à população que se relaciona respeitando direitos alheios. Para o autor,

[…] dirá Jakobs, deve-se pensar em um Direito Penal excepcional, de oposição, um direito Penal consubstanciado na flexibilização de direitos e garantias penais e processuais. Há que se pensar em um novo tratamento que a sociedade imporá àquele que se comporta, cognitivamente, como sei inimigo. Um tratamento que não se amolda às diretrizes do Direito Penal clássico, mas que poderia ser, em tese, legitimado constitucionalmente. (Idem, p.9).

 Jakobs afirma que direito penal do cidadão e direito penal do inimigo são tipos ideais e não podem ser encontrados na realidade em estado puro, seguindo a metodologia weberiana. Sustenta a diferenciação desses direitos nas teorias da pena absolutistas de Hobbes e Kant, afirmando que o primeiro recai naqueles que não persistem em práticas criminosas. No caso do direito penal do inimigo,

[...]  el Estado tiene derecho a procurarse seguridad frente a individuos que reinciden persistentemente en la comisión de delitos; a fin de cuentas, la custodia de seguridad es una institución jurídica. Más aún: lós ciudadanos tienen derecho a exigir del Estado que tome las medidas adecuadas, es decir, tienen um derecho a la seguridad (JAKOBS, 2005, p. 33).

Assim, um indivíduo que se recusa e não admite ser obrigado a entrar num “estado de cidadania” não pode participar dos benefícios do conceito de pessoa (IDEM, p.40). Há necessidade de reação ante o perigo que emana de sua conduta contrária à norma. Por isso, “quem inclui o inimigo no conceito de delinquente cidadão não deve  se surpreender que estão mesclados os conceitos de ‘guerra” e ‘processo penal’”. (IDEM, p. 42, tradução livre). Dessa maneira, afirma Jakobs (2003, p. 42-43),

Por lo tanto, el Derecho penal conoce dos polos o tendencias de sus regulaciones. Por um lado, el trato con el ciudadano, en el que se espera hasta que éste exterioriza su hecho para reaccionar, con el fin de confirmar la estructura normativa de la sociedad, y por otro, el trato con el enemigo,que es interceptado muy pronto en el estadio previo y al que se le combate por su peligrosidad.

O jurista alemão indica que o respeito aos Direitos Humanos não pode ser garantido ao inimigo[4] porque:

Quien por principio se conduce de modo desviado no ofrece garantía de un comportamiento personal; por ello, no puede ser tratado como ciudadano, sino debe ser combatido como enemigo. Esta guerra tiene lugar con un legítimo derecho de los ciudadanos, en su derecho a la seguridad; pero a diferencia de la pena, no es Derecho también respecto del que es penado; por el contrario, el enemigo es excluido.(JAKOBS, 2003, p.55).


A guisa de conclusão

A guerra proposta por Gramsci - especialmente a “guerra de movimento”, possível nas sociedades civis complexas - busca a transformação social, para superar o capitalismo e suas mazelas. Tal mudança exige o conhecimento histórico da organização social. Por essa razão, é importante conhecer as expressões dessa realidade concreta, ao longo do tempo, que se manifestam também no direito penal e processo penal, como a da política pública desenvolvida em Nova York e aquela pensada pelo jurista alemão.

Em direção diversa, o PTZ e o DPN estão fundados em perspectivas teóricas liberais, que amparam ideologicamente a lógica capitalista. Tomam o indivíduo delituoso como adversário a ser combatido numa “guerra”. Desde o combate àqueles que cometem e são penalizados por crimes “leves” ou “pesados”; como aqueles considerados “não pessoas” e “não cidadãos”: os inimigos do Estado que praticam reincidentemente práticas criminosas.  Como a pena é individualizada, não poderia ser de outra forma. Contudo, essas propostas possuem grande potencial para caírem nas armadilhas do racismo e do desrespeito aos Direitos Humanos (DH). Conforme Wallerstein (1990, p.48).

se se quer maximizar a acumulação do capital, é preciso, simultaneamente, minimizar os custos de produção (e por consequência os custos da força de trabalho) e minimizar igualmente os custos dos problemas políticos (e por consequência minimizar - e não eliminar porque isso é impossível - as reivindicações da força de trabalho). O racismo é a fórmula mágica favorecendo a realização de tais objetivos.

Operacionalmente, o racismo - na expressão de Balibar (1990, p.33) “racismo sem raças”, cujo tema dominante não é a herança biológica, mas a irredutibilidade das diferenças culturais - toma a forma de “etnicização” da força de trabalho, ou seja, permite a hierarquização de profissões e remunerações na sociedade. Por extensão, etnicização daqueles que foram alijados do mercado de trabalho, desempregados, impossibilitados de garantir a sua sobrevivência, com potencial para delinquir.

A discussão sobre os Direitos do Homem iniciada no século XVIII, com o ordenamento jurídico dos Estados, tomou corpo no século XIX, com o estabelecimento da ordem burguesa, cujo marco de maior expressão foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Mas é somente em 1948 que, criada a ONU, os Direitos Humanos passam a fazer parte da agenda internacional, especialmente a partir de 1976, com a definição doo direito à autodeterminação dos povos.  A preocupação em torno do DH é bastante recente. Como se afirmou (VALENTE, A.; FARAH V.F., R., 2005):

[...] já não basta afirmar a pluralidade do universal, mas é preciso buscar respostas para as possibilidades de articulação dos valores universais e das especificidades culturais. Não se trata mais de apenas pensar a construção de sociedades democráticas, mas de salvaguardar os seus princípios como prática e como ideia, posto quer a “democracia está à prova, lá mesmo onde se acreditava que estivesse solidamente instalada” (WIEVIORKA, 1993, p. 10). Isto porque a desafiam o nacionalismo, o populismo, a etnicidade, o racismo, as violências urbanas, a exclusão e a grande pobreza que marcam a nossa época.

As ideias de livre mercado que, historicamente o liberalismo advoga, desde o século XIX - com ou sem o prefixo “neo” – desconsideram a desigualdade na correlação de forças estabelecida entre aqueles que disputam as fatias do mercado, assim como responsabilizam o indivíduo pelo se próprio destino já que, de acordo com a teoria defendida, todos têm iguais oportunidades. É evidente o processo de naturalização, que responsabiliza o indivíduo pelos males da sociedade. E não o contrário, visto que o indivíduo é expressão do social.

Quatro grandes “crises” do capitalismo engendraram processos de homogeneização, nas décadas de 1930, 1950, 1970 e 1990[5]. Nesses contextos, questões relativas às diferenças sociais e culturais são transformadas num “problema”, cumprindo-se a função deslocar para outra instância de embate as contradições econômicas próprias do capitalismo. Nesse caso, coerente com essa perspectiva, a discussão sobre a verdadeira raiz do problema é abandonada, contentando-se em mascara-la e em buscar medidas paliativas e reformadoras no campo cultural, inclusive no campo jurídico.

O processo de reorganização do capital, buscando novas respostas para a retomada da acumulação e denominado de globalização, agudizou as tendências percebidas no início do século XX, quando o capital financeiro assumiu a hegemonia. O desemprego estrutural; a terceirização e fragmentação das esferas produtivas; a rejeição da presença estatal e consequente privatização estrutural; a transnacionalização da economia implicando a transferência da base industrial dos países ricos para os países pobres, tendo como atrativo a força de trabalho a baixo custo; e a existência de bolsões de riqueza e pobreza substituindo a diferença entre países do primeiro e terceiro mundos são algumas das condições materiais que o ideário neoliberal tenta justificar, dissimulando o fato de serem formas contemporâneas de exploração e dominação.

Ante o exposto, nos parecem pertinentes as ponderações de Valente (2011, p. 20) - ao contrastar o DPI e o garantismo legal -, para quem “deve-se buscar uma solução para as mazelas que atingem este setor estatal, que também faz parte do rol de direitos fundamentais do cidadão”. Embora a discussão perpasse o campo da ciência jurídica, não é solução única, uma vez que um sistema de segurança eficaz não se resume a punições e procedimentos. Uma “visão estreita do papel do Direito, como única solução e também causa dos problemas de violência e criminalidade, compõe o imaginário popular, e se evidencia numa série de discursos inflamados e, muitas vezes equivocados”. Sem que se tire a razão desses questionamentos, “o paradoxo existente entre um direito fundamental e uma punição estatal por violação de conduta dá margem a uma série de hipóteses não compreendidas, e pouco eficazes, no controle do evento criminoso”. Para ele,

As teorias garantistas têm conquistado enorme espaço no mundo jurídico, e talvez essa explicação se encontre na necessidade de afirmação dos direitos fundamentais num país onde, sistematicamente, há um total desrespeito a eles, seja por parte do Estado ou da própria sociedade e dos indivíduos que a formam. Prepondera, também, o passado recente da sociedade brasileira achacada por doutrinas totalitaristas e de exceção, o que determinou uma política de afastamento total de ideias ligadas ao antigo regime.

O garantismo penal nada mais é do que a afirmação dos direitos fundamentais no âmbito do direito penal e do processo penal, a fim de minimizar as violações decorrentes de uma política punitiva e, muitas vezes, degradante. A ação desses preceitos é aumentada de modo que as consequências da punição não sejam extremas, e também ampliando o rol de mecanismos de defesa do criminoso, a fim de que ele tenha maiores chances de enfrentar as acusações e o poderio do aparato estatal. (FARAH F. V., 2011, p. 23).

Ante ao viés de permissividade que atravessa a defesa de respeito aos direitos fundamentais, e frente à crescente criminalidade,

[...] tomam força teorias radicais, como a do direito do inimigo (...). A teoria não merece respaldo total, mostrando-se inconstitucional e violadora de direitos fundamentais em uma série de pontos, mas o núcleo da ideia não deve ser descartado. Há que se ter em mente que a criminalidade não encontra limites, agindo à margem da lei e não devendo obediência a ela; muito pelo contrário, confrontando todo tipo de norma. (FARAH F.V., 2011, p. 31).

Caso um processo de negociação seja aberto entre essas vertentes do direito penal – PTZ e DPI – e aquelas que defendem o respeito aos DH, sem radicalismos e na busca de alguns consensos, talvez seja possível encontrar um caminho que atenda aos anseios da sociedade.  Porém, exige-se que agentes ou operadores do direito penal e do processo penal estejam preparados para compreender as razões históricas das situações envolvidas.


Referências

BALIBAR, Etienne. Y a-t-il un “néo-racisme”? In: BALIBAR; WALLERSTEIN(dir.). Race, nation, classe - Les identités ambiguës. Paris: La Découverte, 1990. p.27-41.

BELLI, Benoni. Violência, tolerância zero e democracia no Brasil: paradoxos da década de 90. Tese de Doutorado em Sociologia. Universidade de Brasília, 2003.

CABRAL, Bruno Fontenele. "Zero tolerance". Efetividade da aplicação de políticas de tolerância zero nas escolas norte-americanas, Jus Navegandi, 2010. http://jus.com.br/revista/texto/18252/zero-tolerance

GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. 8ª edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989.

__________. Cadernos do Cárcere. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. volume 1. 2ª edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

IHERING, Rudolf Von. A luta pelo Direito. Viena, 1872. http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/vIhering.pdf

JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Derecho Penal del enemigo. Espanha: Civitas, 2003.

LEMLE, Marina.  Tolerância zero: menos crimes, mais racismo? 11/04/2006.

http://www.comunidadesegura.org/pt-br/node/82

MORAES, Alexandre Rocha de Almeida. A Terceira Velocidade do Direito Penal: o Direito Penal do Inimigo. Dissertação (Mestrado em Direito Penal). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2006.

RUBIN, Daniel Sperb. Janelas quebradas, tolerância zero e criminalidade. Jus Navegandi, 2003.http://jus.com.br/revista/texto/3730/janelas-quebradas-tolerancia-zero-e-criminalidade

VALENTE, Ana Lúcia E.F. e FARAH V. F., Rodolfo. Direito e Antropologia: os Direitos Humanos como espaço de diálogo. Jus Navegandi, 2005. http://jus.com.br/revista/texto/7734/direito-e-antropologia

FARAH V. F., Rodolfo. Os direitos fundamentais como influência do direito penal e processual penal: reflexos sociais na segurança pública. Pós-Graduação em Direito Constitucional. Universidade Estácio de Sá, 2011.

WALLERSTEIN, Immannuel. Universalisme, racisme, sexisme: les tensionsidéologiques du capitalisme. In: BALIBAR; WALLERSTEIN(dir.). Op. Cit., p.42- 53.

WIEVIORKA, Michel. La démocratie à l’épreuve - nationalisme, populisme, ethnicité. Paris: La Découverte, 1993.

WENDEL, Travis;  CURTIS, Ric. Tolerância Zero – a má interpretação dos resultados Horizontes Antropológ

Notas

[1] Rudolf Ihering, em livro clássico - A luta pelo Direito (1872) -, sugere essa relação, ao afirmar que luta é necessária para garantir a paz. Explicitamente afirma: “Se colocarmos então o princípio do direito ao lado do privilégio, declara-se por esse fato só a guerra a todos os interesses, tenta-se extirpar um pólipo que agarra com todos os seus tentáculos” (p.25, grifo nosso).

[2] Em 2002, foi cogitada pelo governo de São Paulo como uma solução para a crise de segurança que acometia (e acomete) o Estado. Porém especialistas consideraram que os resultados seriam insuficientes, pois reprimir os pequenos delitos e não reprimir os grandes não resolveria nada. Crimes que tivessem características diferentes deveriam ser tratados de forma específica. Enviar para a cadeia pessoas que cometeram delitos leves não seria eficaz.

[3]  Essa imagem foi usada em 1982, pelo cientista político James Q. Wilson e o psicólogo criminologista George Kelling, ambos americanos, em um estudo em que, pela primeira vez, se estabelecia uma relação de causalidade entre desordem e criminalidade (RUBIN, 2003).

[4]  Mas o direito penal do inimigo deve ser claramente delimitado na perspectiva do Estado de Direito.

[5] Nessas décadas foram engendrados movimentos de homogeneização econômica, que não guardam as mesmas características, embora expressem a agudização crescente das tendências gerais do capitalismo. Os anos 50 de boom econômico mundial marcaram o momento em que se coloca na pauta de discussão o tratamento que a diversidade cultural recebera no momento anterior. Politicamente era preciso romper com o passado da experiência nazista, combatendo o racismo. Nas décadas de 30 e 70, de estagnação, cujos fatos emblemáticos foram a guerra[5] e os preços do petróleo, quando os riscos de desemprego eram evidentes, devido ao retrocesso na produção material. Já na década de 1990 foi iniciada como um momento de expansão do capital e justificada pelo ideário neoliberal.

Sobre a autora
Ana Lúcia Eduardo Farah Valente

Doutora em Antropologia Social - USP. Professora e pesquisadora da UnB. Pós doutorado na Université Catholique de Louvain. Pós doutorado em Economia em andamento na UnB.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VALENTE, Ana Lúcia Eduardo Farah. A metáfora da guerra e suas implicações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3480, 10 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23367. Acesso em: 5 nov. 2024.

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