1 - INTRODUÇÃO
O primeiro instrumento de participação do povo nas decisões políticas do Estado a ser elencado pela Constituição Federal foi o plebiscito, em seu art. 14, inciso I. Este instituto, a exemplo do referendo e da iniciativa popular, pode ser utilizado no âmbito de qualquer ente da Federação.
Antes, porém, para melhor compreensão dos institutos de democracia participativa previstos no texto constitucional, mister se faz uma rápida distinção dos termos “referendo” e “plebiscito”, dada a constante dúvida sobre a aparente ambiguidade dos termos.
Maurice DUVERGER[1] entende que a distinção entre plebiscito e referendo deve ser rigorosa. Sustenta, de modo filosófico, que o primeiro confere ao povo “a aprovação de uma reforma”, enquanto o segundo “consiste em dar confiança a um homem”.
Deixando de lado as discussões que cercam o tema, em aspectos jurídicos e políticos, cumpre notar que os dois institutos são tratados de forma individualizada pela atual Constituição. Melhor elucidando, temos que o referendo é realizado sempre após o processo legislativo, quando determinada lei já se encontra apta a produzir seus efeitos, dependendo, apenas, da aprovação popular sobre o ato normativo.
O plebiscito, por seu turno, deve ser utilizado antes do início do processo legislativo. Na verdade, poderia dizer que a realização de um plebiscito é o ponto de partida para a formalização de uma vontade popular, isto é, a elaboração da lei.
Maria Vitória de Mesquita BENEVIDES[2] defende a tese de que o referendo trata de questões sedimentadas em natureza jurídica, enquanto o plebiscito, sendo mais amplo, abarcaria fatos ou eventos. Em que pese o costumeiro acerto da autora sobre a exegese político-constitucional, esta parece não ser a melhor interpretação.
Isso porque o referendo, em última análise, não presta ao fim de que o povo se manifeste sobre a elaboração da lei, propriamente dita, mas sobre determinado fato ou evento que ela regula. Assim, tanto o referendo quanto o plebiscito têm o condão de colocar à disposição do povo a aprovação de uma medida relacionada a um fato certo e definido, que pode ou não ter origem no texto fundamental ou mesmo na legislação infra-constitucional.
2 - CONCEITO
Discussões a parte, a conceituação legal dos institutos e suas diferenças, estão prevista no art. 2º da Lei 9.709/98, verbis:
“Art. 2º Plebiscito e referendo são consultas formuladas ao povo para que delibere sobre matéria de acentuada relevância, de natureza constitucional, legislativa ou administrativa.
§ 1º O plebiscito é convocado com anterioridade a ato legislativo ou administrativo, cabendo ao povo, pelo voto, aprovar ou denegar o que lhe tenha sido submetido.
§ 2º O referendo é convocado com posterioridade a ato legislativo ou administrativo, cumprindo ao povo a respectiva ratificação ou rejeição.”
O nome “plebiscito” vem do latim plebis + scitum e tem origem na vetusta República Romana, onde a plebe deliberava sobre questões previamente relacionadas.
Adrian SGARBI[3] conceitua o plebiscito como sendo
o instrumento de participação política conjugada pelo qual os eleitores decidem matérias em tese e alterações geopolíticas por ato próprio do legislativo, com possíveis repercussões indiretas na normatividade, não configurando, esta repercussão, sua decisão de fundo.
Note que o referido autor se vale da expressão “matérias em tese”, porquanto, no plebiscito, o povo irá deliberar sobre determinado fato in abstrato, e não concreto ainda, de modo que se não for da vontade popular aprovar o projeto posto à sua soberana decisão, a mesma fica apenas no campo ideológico.
José Joaquim Gomes CANOTILHO[4], por seu turno, apresenta conceito mais amplo sobre o instrumento de participação popular. Assevera o catedrático da Universidade de Coimbra que o “Plebiscito é, na sua expressão mais neutra, a pronúncia popular incidente sobre escolhas ou decisões políticas [...]”.
Em conceito mais detalhado, Uadi Lammêgo BULOS[5] expende que o
Plebiscito é uma consulta popular a todos os eleitores sobre um ou mais assuntos que antecede o processo de elaboração de determinada lei. Através dele a pergunta a ser feita é direita, sem maiores digressões. O eleitor responde apenas sim ou não a quantas indagações forem necessárias. Quem decide quantas perguntas serão feitas no plebiscito é o Congresso Nacional.
Apesar de conceituação tão precisa, temos que poderia (ou deveria) ter sido incluído no referido conceito a abrangência do plebiscito no que tange a matérias administrativas, inclusive. Isso porque a o § 1º do art. 2º da Lei 9.709/98 é bastante claro nesse sentido.
Aliás, parte da doutrina moderna admite o plebiscito como sendo “a consulta popular prévia pela qual os cidadãos decidem ou demonstram sua posição sobre determinadas questões” [6].
Sem dúvida que o plebiscito, por natureza, tende a ser utilizado em questões legislativas. Não se tem notícia, até a presente data, ao menos em âmbito federal e estadual, de realização de plebiscito para fins administrativos. No entanto, trata-se disposição legal vigente e que pode ser utilizada para tal fim.
Dessa forma, em termos jurídicos, no caso do Brasil, podemos conceituar o plebiscito como sendo o instrumento de democracia semi-direta, no qual o povo, por meio do voto, delibera sobre determinada matéria de cunho legislativo ou administrativo antes que estes se iniciem.
3 - ORIGEM E EVOLUÇÃO
O plebiscito teve origem na antiga Roma por volta do ano em 287 a.C., por meio da chamada Lei Hortênsia. Nessa época, a sociedade romana era dividida por dois grupos sociais: os plebeus (faziam parte de uma camada inferior) e os patrícios (faziam parte de uma camada superior).
Ao longo da história os plebeus, outrora sem quaisquer direitos, passaram a obter diversas prerrogativas, dentre as quais se encontravam o direito de se casar com patrícios e o plebiscito, onde o povo participava das decisões políticas.
Já na idade moderna, o plebiscito foi utilizado na França Napoleão Bonaparte, Luís Napoleão e De Gaulle.
De igual forma, Adolf Hitler e Benito Mussolini também determinaram a realização de plebiscitos, a exemplo do ocorreu para anexar a Áustria ao Terceiro Reich, em 1938.
No Brasil, a Constituição outorgada por Getúlio Vargas em 1937 contemplava a utilização do plebiscito no caso de criação ou desmembramento dos Estados o que foi seguido pela Lei Fundamental de 1946. Contudo, malgrado sua previsão no texto constitucional remontar a década de 30, somente dois plebiscitos, de âmbito federal, foram realizados no país.
Sem prejuízo das discussões doutrinárias a respeito, o primeiro plebiscito (porque muitos o classificam como referendo) foi realizado no dia 06 de janeiro de 1963, com o fito de saber se os eleitores queriam a continuidade ou o fim do sistema parlamentarista de governo, instituído em 1961, logo após a renúncia de Jânio Quadros renunciou à presidência da República. Cerca de 80% dos eleitores rejeitaram, por meio do plebiscito, o parlamentarismo.
O segundo plebiscito aconteceu em 21 de abril de 1993, quando foi levado à apreciação do povo sobre qual sistema de governo, presidencialismo ou parlamentarismo, a Ordem Constitucional deveria adotar. Foi posto em votação, outrossim, se o Brasil continuaria a adotar o regime republicano ou optar pela restauração da monarquia. A população manteve a república presidencialista.
Desde aquela data, não houve mais, em âmbito Federal, a utilização do plebiscito.
4 - O plebiscito na Constituição Federal 1988
Como dantes mencionado, o plebiscito tem previsão no art. 14, I, da Lei Fundamental. Vale salientar que o Congresso Nacional possui competência exclusiva pra convocar o plebiscito, nos termos do art. 49 da Constituição Federal. Todavia, a sua regulamentação desse mecanismo de participação popular veio ser efetivada em 1998, com edição da Lei nº 9.709, a qual pontifica, em seu art. 3º, os requisitos formais para realização do plebiscito, nos seguintes ditames:
Nas questões de relevância nacional, de competência do Poder Legislativo ou do Poder Executivo, e no caso do § 3º do art. 18 da Constituição Federal, o plebiscito e o referendo são convocados mediante decreto legislativo, por proposta de um terço, no mínimo, dos membros que compõem qualquer das Casas do Congresso Nacional, de conformidade com esta Lei.
É requisito para a sua convocação que a matéria seja de relevância nacional, de natureza constitucional, legislativa ou administrativa. Claro, este dispositivo faz alusão à realização do plebiscito em âmbito federal. De qualquer forma, há de se ter em mente que o Congresso Nacional somente irá convocar a realização de plebiscito se se tratar de questões que tenham grande repercussão na esfera política.
Por outro lado, a Constituição Federal uma hipótese fática que o plebiscito será, necessariamente, convocado. É a situação onde haverá uma mutação da organização político-administrativa do Estado, conforme disposto no § 3º do art. 18 da Constituição Federal, verbis:
§ 3º - Os Estados podem incorporar-se entre si, subdividir-se ou desmembrar-se para se anexarem a outros, ou formarem novos Estados ou Territórios Federais, mediante aprovação da população diretamente interessada, através de plebiscito, e do Congresso Nacional, por lei complementar.
A Lei nº 9.709/98 regulamentou esse dispositivo do seguinte modo:
Art. 4º A incorporação de Estados entre si, subdivisão ou desmembramento para se anexarem a outros, ou formarem novos Estados ou Territórios Federais, dependem da aprovação da população diretamente interessada, por meio de plebiscito realizado na mesma data e horário em cada um dos Estados, e do Congresso Nacional, por lei complementar, ouvidas as respectivas Assembléias Legislativas.
De igual forma, a Constituição Federal, no § 4º do citado artigo, instituiu a obrigatoriedade do plebiscito para a criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, que deverá iniciar-se mediante lei estadual, dentro do período determinado por Lei Complementar Federal. A consulta plebiscitária será realizada junto às populações dos Municípios envolvidos, após divulgação dos Estudos de Viabilidade Municipal, apresentados e publicados na forma da lei.
5 - Conclusão
A efetiva utilização do plebiscito revela-se importante nesse quadro de possibilidades jurídicas de participação do povo nas decisões que lhe aprouver. Esse mecanismo coloca em o cidadão em contato direto com a própria elaboração da lei. Quer dizer, esta somente terá prosseguimento se a população assim o desejar.
REFERÊNCIAS
BENEVIDES, Maria Vitória de Mesquita. A Cidadania Ativa – Referendo, Plebiscito e Iniciativa Popular. 3ª ed. São Paulo: Editora Ática, 2003.
BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1997.
CHIMENTI, Ricardo Cunha. CAPEZ, Fernando. ROSA, Márcio Elias. SANTOS, Marisa. Curso de Direito Constitucional. Curso de direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva.
DUVERGER, 1956 apud BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10. ed. rev. e atual.. São Paulo: Malheiros, 1995.
SGARBI, Adrian. O referendo. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
Notas
[1] DUVERGER, 1956 apud BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10. ed. rev. e atual.. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 289.
[2] BENEVIDES, Maria Vitória de Mesquita. A Cidadania Ativa – Referendo, Plebiscito e Iniciativa Popular. 3ª ed. São Paulo: Editora Ática, 2003, p. 80/109.
[3] SGARBI, Adrian. O referendo. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 162.
[4] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1997, p. 289.
[5] BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. 6 ed. rev., atual. e ampl. até a Emenda Constitucional n. 45/2004. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 493.
[6] CHIMENTI, Ricardo Cunha. CAPEZ, Fernando. ROSA, Márcio Elias. SANTOS, Marisa. Curso de Direito Constitucional. Curso de direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva. p. 160.