1. Introdução
O estudo da vedação do reexame de fatos e provas é de fundamental relevância para os Tribunais Superiores, pois ainda há divergência sobre a aplicação da Súmula 7/STJ, o que leva a julgados contraditórios e a soluções diversas para casos idênticos. Embora muito utilizada, nem mesmo os magistrados sabem ao certo aplicar com precisão os termos do enunciado sumular.
A partir do estudo de casos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre a aplicação da Súmula 7 do Tribunal, nota-se que, para um mesmo caso concreto, há decisões díspares a respeito de aplicar ou não os termos da súmula. Quais os critérios para afastar sua incidência no caso concreto?
Além disso, e como de conhecimento geral, não há terceira instância na sistemática do processo civil brasileiro. Os Tribunais Superiores são “tribunais de teses”, devem solucionar divergências jurídicas e firmar jurisprudência a ser replicada pelas instâncias inferiores, sem analisar fatos e provas em nível recursal. Entretanto, em algumas hipóteses esse exame é realizado, ainda que sob a escusa de “valoração da prova” e não de “reexame de prova” propriamente dito. Tecnicamente, o estudo da aplicação da Súmula 7/STJ é muito interessante porque demostra falhas no sistema julgador.
Há muitos trabalhos publicados sobre a vedação da reanálise do conjunto probatório dos autos, mas a análise crítica busca fomentar estudos acerca do acesso aos Tribunais Superiores, pois, se é verdade que as cortes supremas julgam número desproporcional de processos, também é verdade que não podem “escolher” quais casos irão ou não julgar, sob o fundamento de não reanalisar fatos e provas ou de estar somente procedendo à revaloração das provas produzidas na instância inferior.
2. O conteúdo jurídico da Súmula 7/STJ. Reexame e Revaloração da prova pelo Superior Tribunal de Justiça.
Como de conhecimento geral, os Tribunais Superiores têm enfrentado verdadeira “inflação recursal”, aumentando-se o número de processos distribuídos e julgados. Acrescente-se a esse quadro a pressão por um julgamento célere e a fiscalização não apenas por parte das corregedorias e do Conselho Nacional de Justiça[1], mas por toda a sociedade.
No tocante ao Superior Tribunal de Justiça, dados do Relatório Estatístico do ano de 2011 comprovam que mais de 290 mil processos e 399 mil petições avulsas deram entrada no protocolo do STJ. Por outro lado, foi julgado número superior a 317 mil processos, cujos detalhes podem ser conferidos a seguir:
Do total de julgados (317.105), a 21,60% foi dado provimento, a 60,38%, negado, 11,24% não foram conhecidos e 6,78% encontram-se na categoria “outros” (homologação de desistência/acordo, decisões proferidas em conflitos de competência, entre outras decisões). Frise-se que desse total (317.105), 62.488 referem-se a Recurso Especial (a 41,05% foi dado provimento, a 47,70%, negado, 5,71% não foram conhecidos e 5,54% incluem-se na categoria “outros”). [2]
Números tão altos põem em risco o papel maior dos tribunais superiores em matéria recursal que, no direito brasileiro, foram constitucionalmente concebidos para uniformizar a jurisprudência e conferir identidade de respostas para casos similares. “Nesse mister de interpretar e preservar a legislação infraconstitucional”, afirma Fredie Didier Jr.,
insere-se uma outra função importantíssima, intimamente relacionada com o princípio da segurança jurídica. Ora, se ao STJ compete interpretar e preservar a legislação infraconstitucional, o julgamento que venha a ser proferido, conferindo interpretação a determinada norma federal, serve, a um só tempo, como corretivo da decisão impugnada e elemento de uniformização da jurisprudência quanto à interpretação da referida norma. [3]
No que aqui interessa, ao Superior Tribunal de Justiça, ao julgar determinado Recurso Especial, não é legítimo reanalisar fatos e provas, uma vez que não funciona como “terceira instância recursal”, mas como um “tribunal de teses”[4]. Os recursos excepcionais, como o Recurso Extraordinário e o Recurso Especial, constituem apelos de fundamentação vinculada[5], ou seja, só podem ser interpostos nas estritas hipóteses de cabimento previstas na Constituição Federal, respectivamente no art. 102, III, “a” a “d” e no art. 105, III, “a” a “c”, ambos da CF.
Por isso, é pacífica a orientação dos tribunais superiores, dentre eles o Superior Tribunal de Justiça, a respeito da vedação à simples revisão de prova, o que se encontra consubstanciado no enunciado número 7 da Súmula da Corte, que prescreve “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.”
Uma primeira dificuldade é, sem dúvida, estabelecer a diferença entre questão de fato e questão de direito, a ensejar a possibilidade de análise pelo Superior Tribunal de Justiça. A respeito do tema, é este o entendimento de Karl Larenz:
A distinção entre questão de facto e de direito perpassa todo o direito processual; o princípio dispositivo pressupõe especialmente esta distinção. O juiz julga sobre a "questão de facto" com base no que é aduzido pelas partes e na produção de prova; a questão de direito decide-a sem depender do que é alegado pelas partes, com base no seu próprio conhecimento do Direito e da lei, que tem de conseguir por si (jura novit curia). Só os factos, isto é, os estados e acontecimentos fácticos, são susceptíveis e carecem de prova; a apreciação jurídica dos factos não é objeto de prova a aduzir por uma das partes, mas tão-só de ponderação e decisão judicial[6]
Para objetivar a matéria e apresentar solução para a dúvida, José Afonso da Silva (1963) apud Henrique Araújo Costa (2008, p. 232) para constatar que, em geral, segue-se a distinção apresentada pelo constitucionalista “que, embora reconheça impossível a separação entre fato e direito, limita-se a afirmar que o engano do juiz quanto ao regime jurídico aplicável a um fato é um erro de direito”[7].
De acordo com o mesmo Henrique Araújo Costa, a diferenciação entre questão de direito e questão de fato é importante porque
As implicações práticas da definição de uma questão como sendo de direito não são meramente concernentes aos recursos, valendo lembrar questões atinentes à admissibilidade da ação rescisória, ao incidente de uniformização de jurisprudência e aos embargos de divergência também são afetadas por essa classificação[8].
Ainda sobre o tema, Fredie Didier Jr. distingue questão de fato e questão de direito com base no critério funcional, lembrando que a diferenciação é fundamental do ponto de vista prático. Em suas palavras,
Considera-se questão de fato toda aquela relacionada aos pressupostos fáticos da incidência; toda questão relacionada à existência e às características do suporte fático concreto, pouco importa se, examinada pela perspectiva do objeto, é questão de fato ou questão de direito. Por exemplo: toda questão relacionada à causa de pedir será considerada questão de fato.
Será questão de direito toda aquela relacionada com a aplicação da hipótese de incidência no suporte fático; toda questão relacionada à tarefa de subsunção do fato (ou conjunto de fatos) à norma.
Esta distinção é fundamental do ponto de vista prático.
As questões de direito podem ser apreciadas de ofício pelo magistrado. (...) Algumas questões de fato, como aquelas relacionadas à causa de pedir e às exceções em sentido estrito, não podem ser conhecidas pelo juiz sem que tenha havido provocação da parte ou do interessado (arts. 128 e 460 do CPC); outras, no entanto, podem ser examinadas ex officio, como se percebe dos arts. 131 e 462 do CPC. As questões de direito não se submetem, em regra, à preclusão (...), enquanto as questões de fato, ao contrário, no mais das vezes se lhe submetem (por exemplo, arts. 300 e 517 do CPC). [9]
Na mesma linha da necessidade de distinção entre as duas questões, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento que pode ser conferido na ementa abaixo, da lavra da Ministra Eliana Calmon:
A valoração da prova refere-se ao valor jurídico desta, sua admissão ou não em face da lei que a disciplina, podendo ser ainda a contrariedade a princípio ou regra jurídica do campo probatório, questão unicamente de direito, passível de exame nesta Corte. O reexame da prova implica a reapreciação dos elementos probatórios para concluir-se se eles foram ou não bem interpretados, constituindo matéria de fato, soberanamente decidida pelas instâncias ordinárias, insuscetível de revisão no recurso especial[10]
O acompanhamento das sessões do Superior Tribunal de Justiça e o estudo de sua jurisprudência, entretanto, levam à conclusão de que inexiste essa diferenciação. Na prática, os recursos são muitas vezes julgados de acordo com o senso de justiça dos ministros julgadores, que relegam a segundo plano o papel uniformizador da jurisprudência do país em matéria federal e transmudam o Superior Tribunal de Justiça em verdadeira terceira instância recursal.
José Carlos Barbosa Moreira, já em seus Comentários ao Código de Processo Civil, no volume pertinente aos Recursos, observou a ausência de critério por parte do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça para conhecer e analisar, ou para afastar, as questões relacionadas à prova. No entender do autor,
A jurisprudência da Corte Suprema registra casos interessantes, em que se procedeu à análise do fato: para averiguar se acertara ou errara o tribunal inferior em não reconhecer a existência de mandato; para estabelecer em certo documento se consubstanciara ou não compromisso de compra e venda registrável e bastante para autorizar adjudicação compulsória; para assentar se a entrega dos títulos pelo devedor ao credor configurava ou não novação ou dação em pagamento; para caracterizar determinado escrito como simples minuta ou como verdadeiro instrumento de contrato preliminar. Por sua vez, o Superior Tribunal de Justiça tem reexaminado a qualificação jurídica do ato, para reconhecer a existência de mútuo, em vez de troca, e para definir como promessa de compra e venda negócio descrito (mas não qualificado) como tal. Não há, porém, constância absoluta em semelhante orientação: de outras feitas, v.g., recusou-se o Supremo Tribunal Federal a reapreciar a qualificação dada pelo órgão a quo: ao vínculo entre determinados servidores e a União Federal, que o acórdão recorrido considerara estatutário e a recorrente dizia sujeito ao regime trabalhista; a negócio jurídico a que se reconhecera a natureza de doação, e não a de partilha em vida, consoante se sustentava no recurso. [11]
O desvirtuamento da Súmula 7/STJ, na maior parte das vezes utilizada para diminuir o número de processos nos gabinetes, ou para fazer justiça ao caso concreto, foi muito bem pontuado por Henrique Araújo Costa, ipsis literis:
O problema se coloca nesses termos: se a vedação do reexame de fato é relevo importantíssimo para a admissibilidade do recurso, há parâmetro seguro para sua fixação? A pergunta permanece insolúvel porque o comportamento do tribunal revela que muito mais importante do que um modelo teórico a seguir são os óbices da prática judiciária. Assim, se o tribunal encontra-se impossibilitado de prestar um serviço num tempo razoável, a vedação da análise da matéria fática pode acabar servindo de subterfúgio. Tudio isso parece ser muito mais importante que qualquer elucubração teórica. Não há erudição que afaste o conhecimento da prática. Pode até ser anti-científico, mas é inquestionável a influência desse fator sobre o amplo uso desse artifício de negativa de jurisdição.
(...) é de se notar que, por vezes, os tribunais superiores acabam por admitir o ingresso em matéria probatória para garantir uma decisão mais justa. Talvez isso seja derivado da nossa peculiar construção de competências, na qual, por vezes, a instância majoritariamente extraordinária funciona também como instância ordinária. Para tanto, basta relembrar as hipóteses de competência originária ou de cabimento recursal ordinário. Como o órgão é um só (formado pelos mesmos julgadores e colegiados) a justificativa teórica do seu comportamento acaba por sucumbir diante de uma adaptação do corpo julgador à sua competência. Nosso regime é sui generis, seja nas suas competências, seja na própria evolução teórica.[12]
Um exemplo da utilização do verbete sumular para fazer justiça ao caso concreto, transformando o Superior Tribunal de Justiça em verdadeira corte de cassação, pode ser conferido a partir da leitura da seguinte ementa:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO LÍQUIDO E CERTO. REVALORAÇÃO DA PROVA. CONCURSO PÚBLICO. CANDIDATOS APROVADOS. NOVO CERTAME. PRETERIÇÃO.
I – A denegação da ordem sem fundamentação satisfatória, apenas sob o argumento de que os fatos não restaram comprovados de plano, quando há nos autos documentação suficiente e idônea a embasar a concessão da ordem, mostra-se arbitrária e ofensiva ao disposto no art. 1º da Lei 1.533/51.
II – Havendo candidatos aprovados no concurso mas ainda não aproveitados pela Administração, a abertura de novo certame, quando ainda válido o anterior, caracteriza-se como ofensiva ao direito dos candidatos remanescentes, que têm direito de preferência sobre os aprovados na nova disputa.
Recurso conhecido e provido.[13]
No voto do Ministro Felix Fischer se verifica claramente que, muito embora em Recurso Especial, houve revolvimento da matéria fática e reexame das provas juntadas aos autos (originariamente um Mandado de Segurança), para que o candidato seguisse no concurso público. Confira-se:
O recorrente afirma que todos os fatos alegados na inicial foram devidamente comprovados com a documentação anexada à petição inicial. O v. acórdão reprochado, no entanto, considerou que o direito do candidato não seria amparável via mandamus, pois não se comprovou de plano a ofensa ao seu direito. Da análise da documentação juntada pelo impetrante, observa-se que a decisão reprochada se mostra ofensiva à legislação infraconstitucional pertinente, pois considerou insuficiente a prova juntada pelo candidato, e exigiu fossem apresentados documentos desnecessários ao deslinde do caso, quando na verdade a prova documental anexada aos autos era bastante para ensejar a concessão da ordem.
(...)
Da análise dos documentos acostados à inicial, observa-se que o impetrante demonstrou ter sido aprovado em 29° lugar para o cargo de Procurador Autárquico no Rio de Janeiro (fls.32-33). Dos aprovados, foram nomeados os classificados até o 17° lugar (fls.35, 36, 37 e 40) para vagas no Departamento Nacional de Estradas de Rodagem - DNER e Departamento Nacional da Produção Mineral. O concurso teve seu prazo de validade prorrogado por um ano a partir de 7 de novembro de 1995, mediante Portaria 1.075, de 10/10/95, do Ilmo. Sr. Diretor de Administração e Finanças do DNER (fls.44). A Portaria 1.075 foi tornada sem efeito por ato da Exma. Sra. Ministra da Administração Federal e Reforma do Estado (D. O. U. de 27/10/95 - fls.45).
Essa decisão da Ministra, no entanto, foi objeto de mandamus perante esta Corte (MS 4.297/DF, Relator Min. William Patterson, DJ 24/06/96 - fls.47), no qual se entendeu que não se poderia revogar o ato de prorrogação de validade do concurso, sob pena de ferir direito já adquirido pelos candidatos.
(...)
Posteriormente, em 02/07/96, foi publicado o Edital n° 1/96, pelo Ilmo. Sr. Diretor de Recursos Humanos do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS (autoridade impetrada), abrindo o concurso para o cargo de Procurador Autárquico do INSS, com previsão de vinte vagas para o Rio de Janeiro (fls.62). Esse foi o ato impugnado no mandado de segurança. O impetrante sustentou, em síntese, a tese de que a abertura de novo certame quando ainda válido o anterior, implicou em ofensa ao direito dos candidatos aprovados mas ainda não nomeados.
Todos esses fatos foram devidamente comprovados pelo impetrante, que juntou documentação clara e suficiente nos autos. Considerando-se a prorrogação de prazo prevista na Portaria 1.075/95, acima citada, o certame do Edital n° 01/96 foi aberto quando ainda válido o concurso antecedente, do qual participou o impetrante.
Essa situação, conforme tem reiteradamente decidido esta Corte, caracteriza preterição do direito dos candidatos aprovados na disputa anterior mas ainda não nomeados. [14]
A conclusão de que o candidato foi preterido, para aí sim aplicar a jurisprudência da Corte na matéria, só foi alcançada a partir da leitura dos autos, com o devido reexame dos fatos e das provas.
Este julgado talvez não nos cause tanta estranheza porque, afinal, tudo leva a crer que o candidato fazia jus a continuar no certame, mas não se pode negar que a função de terceira instância recursal não cabe ao Superior Tribunal de Justiça, ao analisar Recurso Especial.
Outra questão relevante, facilmente constatada da leitura da jurisprudência do STJ a propósito da prova, é a distinção estabelecida pelo Tribunal sobre reexame e revaloração do conjunto probatório dos autos. Vale dizer: se para o provimento do pedido do Recurso Especial o STJ necessitar reanalisar a prova dos autos, o caso é de aplicação da Súmula 7 da Corte. Entretanto, se as premissas fáticas constarem do acórdão recorrido, ao Superior Tribunal de Justiça caberia revalorar as provas expressamente delineadas no julgado do tribunal de origem, dando a palavra final sobre o direito aplicado ao caso.
Isso porque é possível a interposição de Recurso Especial por contrariedade às regras do direito probatório, por exemplo, daquelas que dizem respeito à admissibilidade da prova. Nesse caso, se está diante de questão de direito que, nessa qualidade, pode ser reavaliada pelos Tribunais Superiores.
Sobre o cabimento de recursos excepcionais em matéria probatória, Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart afirmam ser possível sua interposição diante:
i) da licitude da prova; ii) da qualidade da prova necessária para a validade do ato jurídico; ou III) para o uso de certo procedimento; iv) do objeto da convicção; v) da convicção suficiente diante da lei processual; e vi) do direito material; vii) do ônus da prova; viii) da idoneidade das regras de experiência e das presunções; ix) além de outras questões que antecedem a imediata relação entre o conjunto das provas e os fatos, por dizerem respeito ao valor abstrato de cada uma das provas e dos critérios que guiaram os raciocínios presuntivo, probatório e decisório. [15]
Entretanto, José Emílio Medauar Ommati questiona se existe questão puramente de direito, uma vez que sempre há algum substrato fático a ela precedente. Por isso, tecnicamente, dever-se-ia falar em questões mistas. No particular, contudo, o autor bem pontua o problema que se passa a discutir, qual seja, a ausência de tecnicidade para aplicação da distinção entre reexame e revaloração da prova pelo Superior Tribunal de Justiça. Confira-se:
Ora, ao analisarmos essas decisões sobre reexame e revaloração de prova, percebemos que, em várias oportunidades, sob o pretexto de revalorar prova, o STJ termina por reexaminar prova. Em outras situações, quando se esperava do STJ uma decisão no sentido de conhecer o recurso especial, para que o Tribunal revalorasse a prova, a decisão é tomada como sendo caso de reexame de prova, portanto, declarando-se a inadmissibilidade do recurso manejado.[16]
Portanto, muito embora exista distinção entre revalorar e reexaminar a prova dos autos, essa diferenciação é muitas vezes utilizada como escusa para reavaliar o conjunto probatório dos autos, ou para negar provimento ao recurso, aplicando-se ao caso a Súmula 7/STJ.
Como exemplo do aqui exposto, examine-se o AgRg no REsp 903.972-SP, que muito embora tenha negado provimento ao apelo do particular, analisou a prova constante dos autos sob o argumento de que proceder-se-ia apenas à sua revaloração. Eis a ementa do julgado em referência (negrito acrescentado):
AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL TRABALHADOR RURAL. PROVA EXCLUSIVAMENTE DOCUMENTAL. REVALORAÇÃO DO CONJUNTO PROBATÓRIO. NÃO-INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ. CERTIDÃO DE SINDICATO RURAL, HOMOLOGADA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO, EXTEMPORÂNEA AO FATO QUE SE PRETENDE PROVAR. AUSÊNCIA DE PRESUNÇÃO DE VERACIDADE E LEGITIMIDADE. DESCONSIDERAÇÃO DE DECLARAÇÃO PARTICULAR E OUTROS DOCUMENTOS EXTEMPORÂNEOS AO PERÍODO TRABALHADO. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.
1. Esta Corte já firmou o entendimento de que o exame da existência de início de prova material de trabalho rural não passa pelo reexame de matéria fático-probatória, mas sim pela simples valoração das provas carreadas aos autos, a afastar o raciocínio expendido na Súmula 7 desta Corte.
2. Na ausência de prova testemunhal, a prova documental deve ser suficientemente robusta para autorizar o reconhecimento do trabalho rural por todo o período pretendido. In casu, tal análise recai sobre a única prova juntada aos autos, que poderia servir para tal fim, que é a declaração do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Lavínia, homologada pelo Ministério Público Estadual, mas extemporânea ao fato.
3. A homologação conferida pelos membros do Ministério Públicos às certidões de tempo de serviço rural, até o advento da Lei nº 9.063/95, não constitui um ato administrativo dotado de presunção de legitimidade, devendo prevalecer o entendimento consolidado desta Corte, de que a sua extemporaneidade afasta a sua utilização como prova material. Mesmo que este Tribunal já tenha se manifestado a favor da concessão de aposentadoria rural pela prova exclusivamente documental, na espécie, ela não é de todo idônea a comprovar o período pretendido.
4. Agravo regimental improvido. [17] (negrito acrescentado)
No relatório do supracitado agravo regimental em recurso especial constam as razões do agravante, segundo as quais a exigência de prova testemunhal feriria o princípio da razoabilidade, salientando que dentre os documentos juntados constariam uma certidão fornecida pelo Sindicato de Trabalhadores Rurais, certidões de nascimento dos filhos, declarações de escola, certidão da polícia civil, todas elas contemporâneas ao trabalho desempenhado no campo. [18]
Ou seja: claro está que o pedido constante do apelo é a revisão do conjunto probatório dos autos, o que atrairia a aplicação da Súmula 7/STJ.
Em seu voto, a eminente Relatora justifica que a análise das razões recursais não encontraria óbice no enunciado sumular ora estudado porque se estaria diante de mera valoração da prova. Ocorre que, como decidido pela primeira instância e pelo acórdão recorrido, não houve produção de prova testemunhal. Ou seja, como revalorar uma prova que sequer existia nos autos?
A outra opção seria a revaloração do início de prova documental, o que, em tese, seria possível. Todavia, sob o pretexto de revalorar a prova, houve verdadeiro reexame dos documentos juntados, uma vez que o detalhamento não constava do acórdão recorrido. Confiram-se os trechos pertinentes do acórdão:
O primeiro período que se pretende provar – de 8/1/52 a 11/7/57 – veio demonstrado pela certidão de casamento, pelas certidões de nascimento dos filhos e pela Declaração do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, esta devidamente homologada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo. Os demais períodos – de 1/10/60 a 30/8/66 e de 8/4/67 a 25/7/68 –, por sua vez, vieram atestados apenas por uma declaração particular, desprovida de qualquer cunho oficial, a qual se equipara a um depoimento pessoal reduzido a termo. Tal declaração, além disso, data de 1994, sendo extemporânea, portanto, ao fato que se pretende provar. [19]
A afirmação sobre o período e sobre as datas só pôde ser obtida por meio de exame das certidões e declarações constantes dos autos. Não há como, portanto, afirmar que se está diante de revaloração da prova. Aqui, repita-se, apesar de ter sido negado provimento ao apelo, houve análise de fatos e provas para se concluir pela ausência do bem da vida pleiteado.
Dando continuidade, em matéria previdenciária é fácil constatar exemplos de desvirtuamento da aplicação da Súmula 7/STJ para evitar analisar determinados recursos especiais ou, por outro lado, para afastar sua incidência quando seu comando deveria incidir.
Transcrevem-se abaixo alguns precedentes que tratam do mesmo tema: pedido de benefício previdenciário com fundamento em lesões por esforço repetitivo (ou tendinite ou DORT). Note-se que há, na prática, dois pesos e duas medidas:
PREVIDENCIÁRIO. ACIDENTÁRIA. AUXÍLIO-ACIDENTE. L.E.R - LESÕES POR ESFORÇO REPETITIVO. CONCESSÃO DO BENEFÍCIO. CABIMENTO. ART. 86, DA LEI 8.213/91. EVENTUAL REVERSIBILIDADE DA MOLÉSTIA. IRRELEVÂNCIA. VALORAÇÃO ADEQUADA DA PROVA. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.
I - Realizado pelo expert o diagnóstico da L.E.R - Lesão por esforço repetitivo, evidenciado o nexo com a atividade profissional exercida, e a redução da capacidade laboral, impõe-se a regular aplicação do art. 86, da Lei 8.2123/91, devendo ser concedido, na hipótese, o auxílio-acidente vindicado pela obreira.
II - Nesse sentido, mostra-se de todo irrelevante juízo quanto à eventual reversibilidade da moléstia, posto tratar-se de requisito não exigido pela lei previdenciária para a concessão do benefício em comento.
III - A adequada valoração da prova, e a sua correta representação em face do direito aplicado, não conduz ao reexame de matéria fática, desiderato vedado pela Súmula 07/STJ.
IV - Recurso especial conhecido e provido. [20]
No caso acima transcrito, em que o Recurso Especial foi interposto por pessoa física, consta do voto o seguinte trecho pertinente, que demostra a reanálise dos fatos e das provas:
Todavia, o laudo pericial produzido em juízo (fls. 38/44), foi enfático ao reconhecer a existência da L.E.R (lesão por esforço repetitivo), a redução da capacidade laborativa e o seu nexo com a atividade profissional desempenhada pela autora, não registrando, inobstante, qualquer consideração à eventual reversibilidade deste patologia. É conferir:
"CONCLUSÃO:
Com relação a queixa de problemas nos membros superiores desde de 1996, é a autora portadora de: SÍNDROME DO TÚNEL DO CARPO ACENTUADA BILATERALMENTE E BURSITE SUDELTOIDEA À DIREITA, com nexo causai com a atividade laborai em termos de eclosão e ou agravamento, sendo a mesma portadora de LER. OCUPACIONAL. INCAPACIDADE: A nosso entender o autor apresenta INCAPACIDADE PARCIAL E PERMANENTE" (fl. 43)
Cabe referir, por final, que a solução da controvérsia não conduziu ao reexame da matéria fática, senão à sua correta representação em face do direito aplicado. [21]
Observe-se que essas constatações não se encontravam presentes no acórdão recorrido, mas foram obtidas ao reanalisar a prova dos autos. Entretanto, o Ministro Relator afirma, ao final do seu voto, que as premissas por ele adotadas para chegar à conclusão final não esbarram no óbice da Súmula 7 daquela Corte.
Caso similar é apresentado abaixo, em que também se analisou os fatos e as provas para que o benefício previdenciário fosse concedido. Eis a ementa em referência:
PREVIDENCIÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. INEXISTÊNCIA. HIPÓTESE DE REVALORAÇÃO DA PROVA. POSSIBILIDADE.
1. A decisão da Corte de origem, fundada no exame de laudo pericial, concluiu pela inexistência de moléstia, fato que não possibilitou ao agravado a concessão do benefício do auxílio-doença.
2. Por outro lado, esta Corte Superior de Justiça pode, em sede de recurso especial, proceder a nova valoração do referido material probatório sem que haja maltrato ao enunciado da súmula 07 desta Casa. Precedentes.
3. Agravo regimental não provido. [22]
Nesta hipótese, foi dado provimento ao apelo do particular em decisão monocrática e o Instituto Nacional do Seguro Social interpôs o competente Agravo Regimental para rever a decisão, fundamentando seu recurso justamente no desrespeito à vedação do reexame de fatos e provas em Recurso Especial. Ao apreciar o Agravo Regimental, o Ministro Relator afastou os argumentos do INSS com a seguinte motivação:
Com efeito, trata-se de doença adquirida em decorrência do trabalho repetitivo, na qual a Corte de origem, analisando as provas carreadas aos autos, concluiu pela não caracterização das referidas moléstias.
Por sua vez, esta Casa, quando do exame do recurso especial chegou a conclusão diversa, não por desobediência ao enunciado sumular acima mencionado, mas tendo em vista entendimento pacificado no sentido de que é possível nova valoração da prova constante dos autos; no caso em tela, essa revaloração teve por foco o laudo pericial. [23]
Dito de outro modo: a Corte de origem analisou a prova e negou provimento ao pedido, mas, revendo o conjunto probatório, o STJ decide reformar o aresto da instância ordinária.
Por fim, corroborando a tese de ser lícito ao STJ revalorar a prova constante do aresto impugnado na hipótese de o Tribunal de origem fazer constar no acórdão recorrido todos os fatos e provas, confira-se o REsp 401472/RO, da relatoria do Ministro Herman Benjamim:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. HOMOLOGAÇÃO DE LICITAÇÃO FRAUDULENTA. VIOLAÇÃO DOS DEVERES DE MORALIDADE JURÍDICA. DANO IN RE IPSA AO PATRIMÔNIO PÚBLICO INCORPÓREO. ADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. ART. 129, III, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO. PREFEITO. INEXISTÊNCIA. LEI 10.628/2002 DECLARADA INCONSTITUCIONAL PELO STF (ADI 2.797/DF) COMPETÊNCIA DO JUÍZO DE 1º GRAU. PROVA. INQUÉRITO CIVIL PÚBLICO. VALIDADE. ALEGAÇÃO DE CERCEAMENTO DE DEFESA PREJUDICADA. OITIVA DA TESTEMUNHA ARROLADA. INEXISTÊNCIA DE CONDUTA ILÍCITA. MATÉRIA DE PROVA. SÚMULA 7/STJ.
1. Cuidam os autos de Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público do Estado de Rondônia contra os ora recorrentes, em decorrência de ato de improbidade administrativa consistente em fraude no processo de licitação.
2. O STJ entende ser perfeitamente cabível Ação Civil Pública (Lei 7.347/1985), bem como legitimado o Ministério Público para pedir reparação de danos causados ao Erário por atos de improbidade administrativa, tipificados na Lei 8.429/1992.
3. Outrossim, o simples fato de a conduta do agente não ocasionar dano ou prejuízo financeiro direto ao Erário não significa que seja imune a reprimendas, nos termos dos arts. 11, caput, e 12, III, da Lei 8.429/92. Precedentes do STJ.
4. Declarada pelo Supremo Tribunal Federal a inconstitucionalidade da Lei 10.628/2002, que acrescentou os §§ 1º e 2º ao art. 84 do CPP, não há falar em foro privilegiado por prerrogativa de função nas Ações de Improbidade Administrativa ajuizadas contra prefeitos.
5. Inexiste ilegalidade na propositura da Ação de Improbidade com base nas apurações feitas em Inquérito Civil público, mormente quando as provas colimadas são constituídas por documentos emitidos pelo Poder Público e os depoimentos das testemunhas foram novamente colhidos na esfera judicial. Precedentes do STJ.
6. A Lei da Improbidade Administrativa exige que a petição inicial seja instruída com, alternativamente, "documentos" ou "justificação" que "contenham indícios suficientes do ato de improbidade" (art. 17, § 6°). Trata-se, como o próprio dispositivo legal expressamente afirma, de prova indiciária, isto é, indicação pelo autor de elementos genéricos de vinculação do réu aos fatos tidos por caracterizadores de improbidade.
7. O objetivo do contraditório prévio (art. 17, § 7º) é tão-só evitar o trâmite de ações clara e inequivocamente temerárias, não se prestando para, em definitivo, resolver - no preâmbulo do processo e sem observância do princípio in dubio pro societate - tudo o que haveria de ser apurado na instrução. Precedentes do STJ.
8. In casu, o Tribunal de origem concluiu, no juízo de improbidade e com base na prova dos autos, que ocorreu infração à LIA, consistente em fraude no procedimento licitatório, cujo resultado era previsível e acertado entre os recorrentes, com a aquiescência do prefeito municipal. A alteração desse entendimento esbarra no óbice da Súmula 7/STJ.
9. Recursos Especiais não providos. [24]
Sobre a aplicação ou não da Súmula 7/STJ ao caso em apreço, o Ministro Relator entendeu que:
Veja-se que o Tribunal de origem concluiu, no juízo de improbidade e com base na prova dos autos, que ocorreu infração à LIA, consistente em fraude no procedimento licitatório, cujo resultado era previsível e acertado entre os recorrentes, com a aquiescência do prefeito municipal. Nesse contexto, o acolhimento da alegação dos recorrentes sobre a suposta inexistência de prova da prática de atos de improbidade administrativa esbarra no óbice da Súmula 7/STJ. [25]
Igualmente atento à diferenciação que deve ser feita, o Ministro Mauro Campbell, em voto-vista, chamou a atenção do Superior Tribunal de Justiça para a não incidência da Súmula 7/STJ quando os fatos encontram-se narrados no acórdão objurgado. Consta de seu voto o seguinte trecho pertinente:
Não é a primeira oportunidade em que trago a V. Exas. minha preocupação em firmarmos precedentes aqui nesta Corte Superior que aplicam a Súmula n. 7 desta Corte Superior em casos de improbidade administrativa quando a controvérsia diz respeito à caracterização do elemento subjetivo.
Deixei registrado por ocasião do julgamento do REsp 765.212/AC, tenho certa resistência a aplicar o Verbete n. 7 desta Corte Superior em questões de improbidade administrativa quando a origem deixa bem consignado, no acórdão recorrido, os fatos que subjazem à demanda.
Isto porque a prestação jurisdicional pelo Superior Tribunal de Justiça no que tange à caracterização do elemento subjetivo não é matéria que envolva a reapreciação do conjunto probatório e muito menos incursão na seara fática, tratando-se de mera qualificação jurídica dos mesmos - o que não encontra óbice na referida súmula. [26]
Muito embora a grande maioria dos julgados traga impropriedades na incidência ou não do teor da Súmula 7/STJ, verifica-se que ainda há provimentos que privilegiam a técnica sobre a estatística, prestigiando a qualificação do STJ como “Tribunal da Cidadania” e não como tribunal de números.