O presente trabalho visa abordar de forma prática e sintética a limitação prevista no parágrafo único do art. 1° da Lei 7347/85, que veda a utilização da ação civil pública para veicular pretensões que versem sobre fundos de natureza institucional em que os beneficiários possam ser individualmente determinados, como é o caso do fundo administrado pelo Instituto Nacional do Seguro Social – INSS.
Não é incomum a adoção do entendimento que condiciona a utilização da ação civil pública para a tutela jurídica de direitos individuais homogêneos aos casos envolvendo relações de consumo, e aplica o parágrafo único do art. 1° da Lei 7347/85 para instituir a vedação à utilização da ação civil pública para a veiculação de pretensões que, conforme salientado, envolvam fundos de natureza institucional, em que os beneficiários podem ser individualmente determinados.
Com base no entendimento em testilha, a via processual eleita acaba sendo considerada inadequada e a ilegitimidade para pleitear direitos individuais homogêneos reconhecida.
Nos termos do parágrafo único, do art. 1º, da Lei nº 7.347/85, na redação dada pela MP nº 2.180-35/2001, bem como no fato de que se estaria diante de direito individual homogêneo disponível (não alusivo à relação de consumo), e por essa razão não amparável pela ação civil pública, reconhece-se o não cabimento de ações coletivas envolvendo benefícios previdenciário, em total desconsideração ao relevo social do tema.
A norma legal que instituiu a ação civil pública - Lei nº 7.347/85 - nasceu como "lei dos interesses difusos". Posteriormente, em decorrência especialmente do alargamento providenciado pelo Código de Defesa do Consumidor, a referida ação passou a ser admitida para fins de proteção de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, denominados, genericamente, de interesses transindividuais.
A doutrina nos ensina que a tutela de direitos individuais homogêneos ou acidentalmente coletivos estaria limitada às questões relacionadas com o meio ambiente, defesa do consumidor, patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, não havendo, de outro lado, limitação material, quando se cuidasse de direitos coletivos e difusos, considerados essencialmente coletivos.
Nada obstante, a despeito da referida distinção, tem-se adotado uma compreensão mais percuciente dos direitos individuais homogêneos, considerados espécies do direito coletivo, aptos a serem defendidos através da propositura da ação civil pública. Passou-se a aceitar a promoção da ação coletiva em defesa de direitos individuais homogêneos, quando demonstrado o relevante interesse social da matéria.
A natureza constitucional da tutela coletiva, a dimensão de sua responsabilidade, a pluralidade de temáticas e a própria natureza essencial – impõem a admissão, com amplitude, de ações coletivas, não sendo aceitáveis, em sentido oposto, interpretações restritivas ou inibidoras do alcance das normas e princípios previstos na Constituição Federal de 1988. A esse instrumento se conferiu o meio de proteção dos interesses socialmente relevantes, com repercussão na coletividade considerada em sua integralidade. Assim, a restrição à defesa de interesses marcados pela individualidade, mas com reverberação no campo do social, acarretaria o esvaziamento absoluto do conteúdo normativo engendrado na Lei nº 11.448/07.
O dispositivo legal em comento não pode servir a tal finalidade, devendo ser filtrado pela CRFB e adequado os princípios sociais. Aliás, a utilização da ação civil na tutela de direitos individuais de relevante interesse social é imprescindível, face à economia e praticidade, a obviar o inconveniente da propositura de milhares de ações individuais e a injustiça de não se reparar o prejuízo de pessoas que, por ignorância ou dificuldade de meios, não batem às portas do Poder Judiciário para pleitear os seus direitos.
Não é crível desconsiderar-se a imprescindibilidade da promoção de direitos e reivindicações que, embora com titulares identificados ou identificáveis, possua acentuada relevância social. Não é demasia relembrar que os necessitados constituem a maioria esmagadora da nossa população e o ordenamento pátrio reconhece a necessidade de que o acesso individual à Justiça seja substituído por um processo coletivo, capaz de evitar a multiplicação desnecessária de demandas idênticas, uma só vez, em proveito de todo o segmento social vulnerado.
Neste prisma, colacionamos o informativo do STF nº 488, de 21.11.2007, que traz a transcrição do elucidativo voto proferido pelo Ministro Celso de Mello, nos autos do RE 472489/RS:
"Direitos individuais homogêneos. Segurados da Previdência Social. Certidão parcial de tempo de serviço. Recusa da autarquia previdenciária. Direito de petição e direito de obtenção de certidão em repartições públicas. Prerrogativas jurídicas de índole eminentemente constitucional. Existência de relevante interesse social. Ação civil pública. Legitimação ativa do Ministério Público. Doutrina. Precedentes. Recurso Extraordinário improvido".
O parágrafo único, do art. 1º, da Lei nº 7.347/85, na redação dada pela MP nº 2.180-35/2001, reza que:
"não será cabível ação civil pública para veicular pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço - FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem ser individualmente determinados".
Não obstante, o parágrafo único, do art. 1º, da Lei nº 7.347/85, na redação da MP nº 2.180-35/2001, deve ser formatado dentro da parametrização constitucional (confira-se o RE 472489/RS). Assim, ao vedar a ação civil pública o dispositivo buscou apenas evitar o rebaixamento da ação coletiva, especialmente pela sua utilização incorreta para a mera movimentação ou discussão sobre práticas bancárias, de acordo com a vontade unitária dos interessados, o que inocorre nas demandas coletivas previdenciárias que, a toda evidência, incidem na própria sistemática do fundo previdenciário administrado pelo INSS e apresentam dimensões humanas e econômicas de vulto, possibilitando a viabilização de direitos sociais. Ademais, a proibição do citado art. 1º é decorrência de um acréscimo implementado pela edição de Medidas Provisórias utilizadas para fulminar a garantia do devido processo legal em variadas matérias de seu interesse.
Quase todos os doutrinadores de tutela coletiva taxam esse dispositivo de inconstitucional.
Hugo Nigro Mazzilli lembra que a efetividade do pleno acesso coletivo à jurisdição é garantia fundamental, consoante previsão do art. 5º, XXXV, da CF/88, visto que se garante acesso à jurisdição em caso de lesão ou ameaça de lesão "a direito", isto é, sem distinção entre direito individual ou coletivo. Acrescenta, ainda: "Ao contrário do que poderia parecer à vista do art. 1º da LACP, o objeto da ação civil pública não se limita à tutela de interesses transindividuais: hoje também há ações civis públicas destinadas à tutela de interesse público (por exemplo, aquelas fundadas na Lei n. 8.429/92)''. (MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor e outros interesses difusos e coletivos. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2008).
De acordo com o STF, uma vez reconhecida a relevância social do direito discutido, vislumbra-se o interesse da sociedade na solução coletiva do litígio, como forma de atender às políticas judiciárias no sentido de se propiciar a defesa plena, com a consequente facilitação ao acesso à Justiça.
Ainda que fosse determinada a aferição da relevância social no caso concreto, com relação aos beneficiários da Previdência Social tal limitação, por óbvio, não se sustentaria, visto que após a prolação da decisão condenatória na ação civil pública caberá à iniciativa do segurado habilitar-se ao processo na fase de liquidação e execução da sentença. Por possuir natureza alimentar, a prestação previdenciária está associada à dignidade da pessoa humana, na qual se inclui, não só o respeito aos direitos fundamentais de primeira dimensão, como também aos direitos sociais que, nos termos do art. 3º, IV da CF/88), são os responsáveis pela promoção do bem estar de todos, sendo a concessão do benefício previdenciário um dever prestacional do Poder Público, definido como direito de 2ª dimensão.
Nessa vereda, fica fácil concluir que o benefício previdenciário é direito social, de índole alimentícia.
Por outro lado, toda a processualística moderna caminha no sentido de que as demandas de massa devem ser submetidas ao Poder Judiciário em ações coletivas.
Seria um retrocesso científico inadmissível acolher a tese que inadmite a utilização da ação civil pública em tais casos.
A tutela social merece uma proteção mais contundente do que o interesse dos consumidores. Em suma, a garantia da ação coletiva para a proteção de direitos de primeira e segunda dimensão não pode ser inviabilizada, eis que utilizada para o resguardo coletivo dos direitos de terceira geração. Eventual raciocínio contrário inverteria odiosamente a escala de concretização dos valores e princípios constitucionais, em prol de um formalismo exacerbado que priorizaria a frieza da regra à eficácia normativa dos axiomas da CF/88.
Nesse sentido o e. STJ vem se manifestando reiteradamente, conforme transcrevo a seguir:
PROCESSUAL CIVIL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS - INTERESSE PÚBLICO - MINISTÉRIO PÚBLICO – LEGITIMIDADE. I - O ordenamento jurídico pátrio confere ao Ministério Público a legitimidade para propor ação civil pública na defesa de interesses individuais homogêneos. Precedentes. II - In casu, trata-se de ação coletiva proposta no interesse de todos os servidores inativos e pensionistas de autarquia federal, no Estado da Paraíba, objetivando assegurar a equiparação de seus proventos aos dos servidores regidos pela Lei nº 8.112/90. Logo, ressai evidente o interesse social relevante no ajuizamento da ação coletiva, a legitimar a atuação ministerial, até para previnir a proliferação de demandas individuais e evitar decisões incongruentes, sobre idênticas questões jurídicas. Recurso provido. (STJ - RESP 371385 - PB - 5ª T. - Rel. Min. Felix Fischer - DJU 16.12.2002).
Ainda que se vocifere ser a pretensão divisível, a atuação transindividual nas lides previdenciárias apoia-se em expressão social de relevo que a fundamenta, visando tutela abstrata, em atenção a uma necessidade coletiva, que ultrapassa a satisfação individual para atingir significativa parcela da sociedade.
Não se pode olvidar que normas previdenciárias têm amparo na Constituição Federal e sua defesa não diz respeito, somente, a um grupo restrito de pessoas. Antes de mais nada, a observância destas regras caracteriza-se como dever da Administração e, desta forma, os interesses tutelados são públicos.
Sobre a matéria, vale mencionar o seguinte precedente do Tribunal Regional Federal da 5ª Região:
“Constitucional e Processual Civil. Ação civil pública. Direitos individuais homogêneos. Presença de interesse social. Legitimidade do Ministério Público. 1. O Ministério Público tem legitimidade para ajuizar ação civil pública para defesa não apenas dos direitos difusos e coletivos, mas também dos individuais homogêneos, desde que presente o interesse social, nos termos do art. 127 da CF, ainda que não digam respeito a relação de consumo. 2. Hipótese em que há interesse social a ser preservado, diante da indispensabilidade do CPF na vida cotidiana. 3. Agravo improvido”. (TRF 5a Região. AG 32324/CE. Rel. Luiz Alberto Gurgel de Faria. DJ 17.01.2002, p. 1872).
Em reforço a este entendimento, assim já se posicionou o STJ:
"PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE. 1. O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL está legitimado a recorrer à instância especial nas ações ajuizadas pelo MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL. 2. O MP está legitimado a defender direitos individuais homogêneos, quando tais direitos têm repercussão no interesse público. 3. Questão referente a contrato de locação, formulado como contrato de adesão pelas empresas locadoras, como exigência da Taxa Imobiliária para inquilinos, é de interesse público pela repercussão das locações na sociedade. 4. Embargos de divergência conhecidos e recebidos." (STJ. ERESP n.º 114908/SP. Rel. ELIANA CALMON. DJ. 20.05.2002).
“AÇÃO CIVIL PÚBLICA. Ministério Público. Legitimidade. Contrato para aquisição de casa própria. O Ministério Público tem legitimidade para promover ação civil pública em defesa de interesses individuais homogêneos presentes nos contratos de compra e venda de imóveis de conjuntos habitacionais, pelo sistema financeiro da habitação, uma vez evidenciado interesse social relevante de defesa da economia popular. Precedentes. Recurso não conhecido.” (STJ. RESP n.º 404239/PR. Rel. RUY ROSADO DE AGUIAR. DJ. 19.12.2002).
“PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. INTERESSE PÚBLICO. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE. I - O ordenamento jurídico pátrio confere ao Ministério Público a legitimidade para propor ação civil pública na defesa de interesses individuais homogêneos. Precedentes. II - In casu, trata-se de ação coletiva proposta no interesse de todos os servidores inativos e pensionistas de autarquia federal, no estado da Paraíba, objetivando assegurar a equiparação de seus proventos aos dos servidores regidos pela Lei nº 8.112/90. Logo, ressai evidente o interesse social relevante no ajuizamento da ação coletiva, a legitimar a atuação ministerial, até para prevenir a proliferação de demandas individuais e evitar decisões incongruentes, sobre idênticas questões jurídicas. Recurso provido.” (STJ. RESP n.º 371385/PB. Rel. FELIX FISCHER. DJ. 16.12.2002).
A Suprema Corte também já se manifestou sobre o tema, nos termos do seguinte precedente:
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA PROMOVER AÇÃO CIVIL PÚBLICA EM DEFESA DOS INTERESSES DIFUSOS, COLETIVOS E HOMOGÊNEOS. MENSALIDADES ESCOLARES: CAPACIDADE POSTULATÓRIA DO PARQUET PARA DISCUTI-LAS EM JUÍZO. 1. A Constituição Federal confere relevo ao Ministério Público como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF, art. 127). 2. Por isso mesmo detém o Ministério Público capacidade postulatória, não só para a abertura do inquérito civil, da ação penal pública e da ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente, mas também de outros interesses difusos e coletivos (CF, art. 129, I e III). 3. Interesses difusos são aqueles que abrangem número indeterminado de pessoas unidas pelas mesmas circunstâncias de fato e coletivos aqueles pertencentes a grupos, categorias ou classes de pessoas determináveis, ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base. 3.1. A indeterminidade é a característica fundamental dos interesses difusos e a determinidade a daqueles interesses que envolvem os coletivos. 4. Direitos ou interesses homogêneos são os que têm a mesma origem comum (art. 81, III, da Lei n 8.078, de 11 de setembro de 1990), constituindo-se em subespécie de direitos coletivos. 4.1. Quer se afirme interesses coletivos ou particularmente interesses homogêneos, stricto sensu, ambos estão cingidos a uma mesma base jurídica, sendo coletivos, explicitamente dizendo, porque são relativos a grupos, categorias ou classes de pessoas, que conquanto digam respeito às pessoas isoladamente, não se classificam como direitos individuais para o fim de ser vedada a sua defesa em ação civil pública, porque sua concepção finalística destina-se à proteção desses grupos, categorias ou classe de pessoas. 5. As chamadas mensalidades escolares, quando abusivas ou ilegais, podem ser impugnadas por via de ação civil pública, a requerimento do Órgão do Ministério Público, pois ainda que sejam interesses homogêneos de origem comum, são subespécies de interesses coletivos, tutelados pelo Estado por esse meio processual como dispõe o artigo 129, inciso III, da Constituição Federal. 5.1. Cuidando-se de tema ligado à educação, amparada constitucionalmente como dever do Estado e obrigação de todos (CF, art. 205), está o Ministério Público investido da capacidade postulatória, patente a legitimidade ad causam, quando o bem que se busca resguardar se insere na órbita dos interesses coletivos, em segmento de extrema delicadeza e de conteúdo social tal que, acima de tudo, recomenda-se o abrigo estatal. Recurso extraordinário conhecido e provido para, afastada a alegada ilegitimidade do Ministério Público, com vistas à defesa dos interesses de uma coletividade, determinar a remessa dos autos ao Tribunal de origem, para prosseguir no julgamento da ação.” (STF. RE n.º 163231/SP. TRIBUNAL PLENO. Rel. Min. Maurício Corrêa. DJ 29.06.2001, p. 55).
Do Voto do Min. Maurício Corrêa, cumpre transcrever os seguintes excertos:
“(...) Por tal disposição vê-se que se cuida de uma nova conceituação no terreno dos interesses coletivos, sendo certo que este é apenas um nomem iuris atípico da espécie direitos coletivos. Donde se extrai que interesses homogêneos, em verdade, não se constituem como um tertium genus, mas sim como uma mera modalidade peculiar, que tanto pode ser encaixado na circunferência dos interesses difusos quanto na dos coletivos. Por isso mesmo Kazuo Watanabe (ob. cit, pág.196), que integrou a comissão que apresentou os estudos preliminares da então proposta do Código do Consumidor, haver afirmado que, no ponto, são “interesses ou direitos individuais homogêneos, os de origem comum, permitindo a tutela deles a título coletivo. Origem comum não significa, necessariamente, uma unidade factual e temporal”, endossando igual escólio Hugo Nigri Mazzini (A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, Saraiva, pág. 10, 7ª edição, 1995), para quem “os interesses individuais homogêneos, em sentido lato, na verdade não deixam de ser também interesses coletivos”. Quer se afirme na espécie interesses coletivos ou particularmente interesses homogêneos, stricto sensu, ambos estão nitidamente cingidos a uma mesma relação jurídica-base e nascidos de uma mesma origem comum, sendo coletivos, explicitamente dizendo, porque incluem grupos, que conquanto atinjam as pessoas isoladamente, não se classificam como direitos individuais, no sentido do alcance da ação civil pública, posto que sua concepção finalística destina-se à proteção do grupo. Não está, como visto, defendendo o Ministério Público subjetivamente o indivíduo como tal, mas sim a pessoa enquanto integrante desse grupo. Vejo, dessa forma, que me permita o acórdão impugnado, gritante equívoco ao recusar a legitimidade do postulante, porque estaria a defender interesse fora da ação definidora de sua competência (...).”
Conforme explicitado, há de se admitir a utilização da ação civil pública para a defesa de direitos individuais homogêneos que apresentem natureza social relevante, e que gravitem na órbita do direito público, com interesse para a coletividade. O atual direito processual deve estimular a utilização de ações coletivas, repise-se, a fim de evitar a pluralidade desnecessária de feitos idênticos e com forte apelo social.
O relatório da Comissão da Reforma do CPC traduz essa necessidade:
“Os processos “em massas” são aqueles envolvendo direitos individuais homogêneos. São processos cuja controvérsia é unicamente de direito, em que a discussão jurídica se aplica a uma enorme quantidade de pessoas na mesma situação fática. As reivindicações de servidores públicos, aposentados e pensionistas, as pretensões contra planos econômicos, as causas objetivando a declaração de inconstitucionalidade de tributos são exemplos de processos “em massa”. Esses processos caracterizam-se pela padronização das peças processuais e pela repetição de expedientes forenses. Não existe ainda um tratamento legislativo especial para esses processos. Cada um dos processos é tratado autonomamente, exigindo um impulso individual com a repetição dos expedientes forenses. O modelo atual, portanto, é totalmente irracional. Gasta papel inutilmente, mecaniza o trabalho do juiz e dos servidores, consome tempo e espaço de forma desnecessária e o pior: dá ensejo a injustiças decorrentes da desigualdade de tratamento em casos semelhantes. No âmbito da Justiça Federal, muitas mazelas são ocasionadas pelos processos repetitivos e pela ausência de um procedimento diferenciado para esse tipo de causa. As pilhas de autos que se amontoam nas prateleiras dos fóruns federais versam sobre matérias idênticas, onde se alteram apenas os nomes das partes. O desfecho das causas já é conhecido desde o início, mas a lógica – ou ausência de lógica – do sistema impõe que o processo tramite normalmente, seguindo o longo caminho da primeira instância até as instâncias superiores. Até matérias exaustivamente decididas e pacificadas, como por exemplo, as atualizações das contas do FGTS, o índice de 28,86% dos servidores públicos, a auto-aplicabilidade do art. 201 da CF/88, continuam a ser julgadas como se ainda houvesse dúvida quanto à resposta judicial que será dada. Sem um tratamento especial para esses processos, o juiz federal continuará perdendo tempo assinando pilhas e mais pilhas de despachos padronizados ao invés de estar aprimorando seu estudo nas causas que exigem mais atenção. Por isso, muitas sugestões para a reforma do CPC envolvem o aprimoramento dos processos em massa”. (p. 11 e 12)
Da mesma forma, Rodolfo de Camargo Mancuso aduz que:
“(...) o feixe de direitos individuais, ainda que disponíveis que tenham origem comum, qualifica esses direitos como sendo individuais homogêneos (CDC 81, parágrafo único, III), dando ensejo à possibilidade de sua defesa poder ser realizada coletivamente em juízo (CDC 81, caput e parágrafo único, III). Essa ação coletiva é deduzida no interesse público em obter-se sentença única, homogênea, com eficácia erga omnes da coisa julgada (CDC, 103, III), evitando-se decisões conflitantes. Por essa razão está o MP legitimado a propor em juízo a ação coletiva para a defesa de direitos individuais homogêneos (CF 129, IX; CDC 82)(...)quando virtualmente se afigure que inúmeras ações individuais serão ajuizadas envolvendo direito ou interesse socialmente relevante, que se apresente homogêneo pela unidade da origem, o ajuizamento deve fazer-se em modo coletivo...” (Ação Civil Pública, Coord.Édis Milaré, São Paulo: RT, 2002, p. 448/450 ).
Atualmente, a Câmara dos Deputados estuda o Projeto de Lei nº 4484/12, de autoria do deputado Antônio Roberto (PV-MG), que amplia os direitos coletivos que podem ser objeto de ação civil pública.
Assim, além da defesa dos direitos coletivos previstos na atual legislação, ligados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, à ordem econômica, à economia popular e à ordem urbanística, o referido projeto amplia a ação civil pública para assegurar a proteção da saúde, da educação, do trabalho, do desporto, da segurança pública, dos transportes coletivos, da assistência jurídica integral e da prestação de serviços públicos, do idoso, da infância, da juventude e das pessoas com necessidades especiais, da ordem social e financeira, da livre concorrência, do patrimônio público, do erário e de outros interesses ou direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos.
Conforme explicitado, o projeto de Lei nº 4484/12 também prevê a utilização da ação civil pública em questões tributárias e previdenciárias.
Não é novidade que as instâncias decisórias estão abarrotadas de demandas previdenciárias de massa que poderiam ser resumidas em uma única ação caso a matéria pudesse ser objeto de ação civil pública. A multiplicação de ações repetitivas – especialmente no campos previdenciário - onera sobremaneira o erário e acaba por recusar a tutela de direitos sociais prestados pela Previdência Social à parcela mais vulnerável da população.
As instâncias decisórias brasileiras recebem, diariamente, demandas que, aos milhares, envolvem muitas vezes causas repetidas. São demandas siamesas, nas quais a atividade processante se torna mecânica e eminentemente burocrática. Em resumo, não precisariam existir.
A existência de ações idênticas, multiplicadas em escala geométrica, acaba beneficiando o INSS em detrimento do titular do direito social violado, reduzindo a expectativa dos demandantes durante anos e causando espécie aos cidadãos que não compreendem a dificuldade das instâncias decisórias em resolver de uma vez a querela. Gera ainda mais perplexidade a total ausência de colaboração da Administração Pública na adoção de medidas tendentes à pacificação de litígios e que evitem a multiplicação das ações.
No sentido do presente texto, citaria o seguinte precedente:
PREVIDENCIÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INCONSTITUCIONALIDADE DE LEI OU ATO NORMATIVO. USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA. INOCORRÊNCIA. LEGITIMIDADE ATIVA. DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. ART. 24 DA PORTARIA Nº4.273/97 E ITEM 8.2 DA ORDEM DE SERVIÇO Nº590/97. ILEGALIDADE. INÍCIO DE PROVA MATERIAL. DOCUMENTOS EM NOME DE TERCEIROS. 1. O Plenário do STF, a partir do julgamento das Reclamações 597 e 600, já firmou entendimento de que a ação civil pública, cujo objeto é a defesa de direitos individuais homogêneos, não é substitutiva da ação direta de inconstitucionalidade, uma vez que se trata de ação ajuizada, entre partes, na persecução de bem jurídico, individual e definido, de ordem patrimonial, objeto que não poderia ser alcançado em controle abstrato ou normativo. 2. Tratando-se de direitos individuais homogêneos de segurados da Previdência Social, possui o Ministério Público Federal legitimidade para postular a declaração da ilegalidade de normas restritivas de direitos garantidos na Carta Magna e na Lei nº8.213/91, ainda que esses direitos sejam disponíveis, pois o que legitima a atuação do Parquet é a repercussão social decorrente da violação dos mesmos. 3. O art. 106 da Lei nº8.213/91 enumera os documentos que, por si só, comprovam a atividade rural. Faculta o art. 55, §3º, do mesmo texto legal, que a comprovação seja feita por meio de início razoável de prova documental acompanhada por depoimentos testemunhais idôneos. 4. É inerente ao regime de economia familiar que a documentação das atividades agrícolas esteja em nome do produtor rural, razão por que serve de início de prova material para os demais integrantes do grupo 5. São ilegais o art. 24 da Portaria nº4.273/97 e o item 8.2 da Ordem de Serviço nº590/97, pois não se coadunam com o disposto na legislação previdenciária. 6. Apelação conhecida em parte e, na parte conhecida, improvida. Remessa oficial improvida. (TRF da 4ª Região, AC nº409033, Quinta Turma, Relator Juiz Sérgio Renato Tejada Garcia, unânime, DJU de 26.11.2003, página 683).
Se é verídico que os benefícios previdenciários se caracterizam como direitos individuais disponíveis pela faculdade do segurado em requerê-lo ou não, é também verídico que a ação civil pública é um importantíssimo mecanismo processual de desenvolvimento social e de política pública no trato de pessoas em situação de vulnerabilidade social, sendo um instrumento constitucional de inegável importância coletiva e social, a ultrapassar o mero individualismo, tendo em vista que determinadas questões ligadas à Seguridade Social repercutem imediatamente na perfeita implementação do programa constitucional.
Em reforço, cabe ressaltar que o Plenário do STF, a partir das Reclamações 597 e 600, entendeu que a ação civil pública destinada à defesa de direitos individuais homogêneos não é substitutiva da ação direta de inconstitucionalidade, uma vez que se trata de ação ajuizada, entre partes, na persecução de bem jurídico, individual e definido, de ordem patrimonial, objeto que não poderia ser alcançado em controle abstrato ou normativo.
No mesmo espeque, entendeu o STF que determinados direitos individuais homogêneos podem ser classificados como interesses ou direitos coletivos, ou identificar-se com interesses sociais ou individuais indisponíveis. Nesses casos, a ação civil pública se prestaria à defesa dos mesmos.
Vejamos o teor da decisão proferida pelo TRT de Santa Catarina, cuja ementa está assim redigida:
"AÇÃO CIVIL COLETIVA. NATUREZA. DEFESA DE DIREITOS E INTERESSES INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO PARA AJUIZÁ-LA. NECESSIDADE DE UMA INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA E TELEOLÓGICA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS E INFRACONSTITUCIONAIS QUE REGULAM A MATÉRIA. Nos últimos quinze anos, o Brasil conheceu importantes inovações legislativas a respeito dos chamados direitos e interesses difusos e coletivos e dos mecanismos de tutela coletiva desses direitos, destacando-se a Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, que disciplina a conhecida ação civil pública, e a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, que instituiu o Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Este, entre outras novidades, introduziu um importante mecanismo de defesa coletiva para direitos individuais homogêneos: a ação civil coletiva (arts. 91 a 100). São características dessa última categoria de direitos ou interesses a possibilidade de perfeita identificação do sujeito, assim como da relação dele com o objeto do seu direito, sendo que a ligação com os demais sujeitos decorre da circunstância de serem todos titulares individuais de direitos com ‘origem comum’ e são divisíveis, pois podem ser lesados e satisfeitos de forma diferenciada e individualizada, satisfazendo ou lesando um ou alguns titulares sem afetar os demais. Portanto, por serem individuais e divisíveis, fazem parte do patrimônio individual do seu titular e, por isso, são passíveis de transmissão por ato inter vivos ou mortis causa e, regra geral, suscetíveis de renúncia e transação. Quanto a sua defesa em juízo, geralmente, são defendidos pelo próprio sujeito detentor do direito material, sendo que a defesa por terceiros será sob a forma de representação ou, quando houver previsão legal, sob a forma de substituição processual. Assim sendo, no que concerne à legitimidade do parquet laboral para a propositura da ação civil coletiva, mostra-se mais coerente com o direito hodierno o entendimento de que o artigo 83, inciso III, da Lei Complementar nº 75/93, ao dispor, entre outras atribuições, que é incumbência do Ministério Público do Trabalho ‘propor ação civil pública no âmbito da Justiça do Trabalho, para defesa de interesses coletivos, quando desrespeitados os direitos sociais constitucionalmente garantidos’ (grifei), utilizou a expressão ‘interesses coletivos’ na sua acepção lato, abrangendo, outrossim, tanto os interesses coletivos stricto sensu, quanto os difusos e os individuais homogêneos, uma vez não se poder restringir a legitimidade que foi amplamente concedida pelo art. 129, inciso III, do Texto Ápice, sem qualquer discriminação entre os diversos ramos do Parquet. À mesma conclusão chega-se após o exame do art. 6º, inciso VII, alínea d, da Lei Complementar nº 75/93, que, ao disciplinar os instrumentos de atuação do Ministério Público da União, em todos os seus ramos, aponta a ação civil pública para a defesa de ‘outros interesses individuais indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos". Ademais, não há olvidar que, após a promulgação da Lex Fundamentalis de 1988, o Ministério Público foi guindado à ‘instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis’. Vale dizer, portanto, que, ao tutelar os direitos elencados ao trabalhador no art. 7º da Constituição Federal vigente, ele atua, sem dúvida alguma, na defesa dos direitos sociais e, por conseguinte, também na defesa dos direitos e garantias fundamentais conferidos aos cidadãos, bem assim na concretização dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil previstos no art. 3º" (TRT 12ª R., RO 5786/97, Ac. un. 1ª T. 03121/98, rel. Juiz Dilnei Ângelo Biléssimo, DJSC 23.4.98, 03.03.98).
Ressalte-se, finalmente, a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal no Informativo n° 504 de maio de 2008:
Ação Civil Pública e Legitimidade do Ministério Público. O Ministério Público possui legitimidade para propor ação civil pública com o fim de obter certidão parcial do tempo de serviço que segurado tem averbado em seu favor. Com base nesse entendimento, a Turma negou provimento a agravo regimental em recurso extraordinário em que o Instituto Nacional do Seguro Social - INSS sustentava ofensa aos artigos 127 e 129, III, da CF. Considerou-se que o direito à certidão traduziria prerrogativa jurídica, de extração constitucional destinada a viabilizar, em favor do indivíduo ou de uma determinada coletividade (como a dos segurados do sistema de previdência social), a defesa (individual ou coletiva) de direitos ou o esclarecimento de situações, de tal modo que a injusta recusa estatal em fornecer certidões, não obstante presentes os pressupostos legitimadores dessa pretensão, autorizaria a utilização de instrumentos processuais adequados, como o mandado de segurança ou como a própria ação civil pública, esta, nos casos em que se configurasse a existência de direitos ou interesses de caráter transindividual, como os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. Enfatizou-se que a existência, na espécie, de interesse social relevante, amparável mediante ação civil pública, restaria ainda mais evidenciada, ante a constatação de que os direitos individuais homogêneos ora em exame estariam revestidos, por efeito de sua natureza mesma, de índole eminentemente constitucional, a legitimar desse modo, a instauração, por iniciativa do parquet, de processo coletivo destinado a viabilizar a tutela jurisdicional de tais direitos. RE 472489 AgR/RS, rel. Min. Celso de Mello, 29.4.2008. (RE-472489)
Neste diapasão, conclui-se que a restrição normativa em testilha merece ser analisada em termos relativos, porque a tutela dos Direitos Sociais deve ser efetiva e eficaz, sob pena de ofensa ao comando constitucional.
Independente das controvérsias existentes cabe aqui ressaltar a grande contribuição que o STF e o STJ têm conferido não só a esse assunto, mas a várias outras questões transindividuais.
No tocante ao ponto central, concluímos que os posicionamentos adotados realçam a importância da ação civil pública como instrumento efetivo de tutela dos direitos sociais transindividuais, quando verificada a presença de interesse social relevante, e importante mecanismo de prevenção e racionalização processual, no combate à perniciosa multiplicação de ações repetidas, com ressonância na razoável duração do processo, no equilíbrio orçamentário e no estabelecimento do devido processo legal substancial.
REFERÊNCIAS.
1. Informativo do STF nº 488, de 21.11.2007.
2. RE 472489/RS
3.MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor e outros interesses difusos e coletivos. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2008).
4. MANCUSO Rodolfo de Camargo. Ação Civil Pública, Coord.Édis Milaré, São Paulo: RT, 2002, p. 448/450 ).
5. STJ - RESP 371385 - PB - 5ª T. - Rel. Min. Felix Fischer - DJU 16.12.2002.
6. STJ. ERESP n.º 114908/SP. Rel. ELIANA CALMON. DJ. 20.05.2002.
7. STJ. RESP n.º 404239/PR. Rel. RUY ROSADO DE AGUIAR. DJ. 19.12.2002.
8.STJ. RESP n.º 371385/PB. Rel. FELIX FISCHER. DJ. 16.12.2002.
9. STF. RE n.º 163231/SP. TRIBUNAL PLENO. Rel. Min. Maurício Corrêa. DJ 29.06.2001, p. 55.
10.TRF 5a Região. AG 32324/CE. Rel. Luiz Alberto Gurgel de Faria. DJ 17.01.2002, p. 1872.
11.TRF da 4ª Região, AC nº409033, Quinta Turma, Relator Juiz Sérgio Renato Tejada Garcia, unânime, DJU de 26.11.2003, página 683.
12. TRT 12ª R., RO 5786/97, Ac. un. 1ª T. 03121/98, rel. Juiz Dilnei Ângelo Biléssimo, DJSC 23.4.98, 03.03.98).
13. STF, Reclamações n° 597 e 600.
14. STF. Informativo n° 504 de maio de 2008 (RE 472489 AgR/RS, rel. Min. Celso de Mello, 29.4.2008.RE-472489).