A União, após tentar justificar a tributação dos lucros de controladas e coligadas no exterior com base no conceito de “renda ficta”, e posteriormente, com fulcro na noção de equivalência patrimonial, vem mais recentemente pretendendo sustentar a alegada constitucionalidade do art. 74 da MP nº 2.158-35/01 nos princípios da universalidade, da capacidade contributiva e da isonomia.
Para tanto, parte de premissa duplamente equivocada ao pretender, de um lado, restringir o alcance do precedente contido no RE nº 172.058 a situações em que os sócios seriam exclusivamente pessoas físicas, em oposição às situações em que os sócios fossem, eles também, pessoas jurídicas, e, de outro lado, ao segregar de maneira absolutamente rígida os métodos de apuração da base de cálculo na tributação sobre a renda, a saber, o regime de “caixa” para as pessoas físicas e de “competência” para as pessoas jurídicas.
Com efeito, a Fazenda Nacional, em memorial acostado aos autos da Arguição de Inconstitucionalidade nº 2003.61.00.000024-5, em trâmite perante o Tribunal Regional Federal da 3ª Região, afirma expressamente:
“e) não é aplicável no caso o precedente do Supremo Tribunal Federal tomado no julgamento do RE 172.058, eis que ali se examinada a disponibilidade da renda para a pessoa física, que segue o regime de caixa para fins de apuração do tributo, hipótese em que é curial o efetivo ingresso do recurso para que ocorra a tributação. Nesse sentido, cabe transcrever trecho do parecer da lavra do douto Procurador da República, da Procuradoria Regional da República da 3ª Região, Dr. Osório Barbosa, acostado aos autos: ´Já para as pessoas físicas, prevalece o regime de caixa, já que não há a complexidade como ocorre no caso das pessoas jurídicas. Tal entendimento foi aplicado ao RE 172.058 citado pelo D. Relator, o que se coaduna, naquele caso concreto, já que se tratava de sócios de empresa individual, e desta forma, correto o afastamento do art. 74 da MP nº 2.158-35/01. Porém, tal precedente do STF não merece aplicabilidade ao presente caso, como foi demonstrado anteriormente, por se tratar de tributação de sócios de empresa individual, ou seja, pessoas físicas sujeita ao regime de caixa´” (sic, destaque no original – fl. 412).
Ao pretender restringir às pessoas físicas investidoras o alcance do precedente estabelecido pela quase unanimidade do Plenário do Supremo Tribunal Federal no RE nº 172.058[1], a União labora em equívoco manifesto.
Em verdade, ao julgar a inconstitucionalidade material do art. 35 da Lei nº 7.713/88 em relação ao caso concreto das sociedades anônimas, o Plenário do Supremo Tribunal Federal entendeu que, nesses casos, a titularidade dos lucros da sociedade investida não se transmitiria à sociedade investidora pela simples razão de que “a distribuição de lucros, segundo as leis comerciais, é dependente principalmente da manifestação da assembleia geral”,[2] sendo inadmissível cogitar-se da ocorrência de fato gerador da tributação dos lucros quando da mera apuração de resultados por parte da sociedade anônima objeto do investimento, independentemente de tal investimento ser feito por pessoas físicas ou jurídicas.
Reversamente, em se tratando da firma individual a distribuição de lucros operar-se-ia automaticamente, tendo o tribunal julgado constitucional a exação incidente quando da apuração de seus lucros. No que tange às limitadas, a distribuição automática ou subordinada dos lucros, com a respectiva constitucionalidade ou inconstitucionalidade da incidência, estaria a depender do que estabelecesse o respectivo contrato social a respeito da matéria, independentemente de quem fossem os sócios quotistas, se pessoas físicas ou jurídicas.
Equívoco monstruoso, portanto, se não tergiversação dolosa, comete a União, ao pretender que o alcance da decisão proferida no âmbito do RE nº 172.058 ter-se-ia restringido às situações em que os investidores fossem apenas e tão somente pessoas físicas. Nunca o discrimen utilizado naquele julgamento foi a qualidade do investidor, mas sim a automaticidade ou subordinação da distribuição dos lucros.
À época a incidência tributária no âmbito do investidor recaía sobre a disponibilização dos lucros tanto para os investidores pessoas físicas quanto para os investidores pessoas jurídicas, não tendo a natureza do investidor, se pessoa física ou jurídica, sequer sido cogitada quando daquele julgamento (Leis nºs 8.849/94 e 9.064/95).
O que o art. 35 da Lei nº 7.713/88 pretendeu fazer, naquele contexto, foi substituir a tributação que recaía sobre a distribuição de lucros, sendo, portanto, diferida até o momento da disponibilização, por uma incidência imediata a recair quando da mera apuração do lucro líquido pela sociedade investida, exatamente nos moldes do que pretende o atual art. 74 da MP nº 2.158-35/01.
A nova disciplina pretendeu alcançar as firmas individuais, e as sociedades limitadas e anônimas. O Supremo Tribunal Federal entendeu constitucional a nova incidência sobre os resultados apurados pelas firmas individuais, alcançando, portanto, as pessoas físicas investidoras, ao contrário do que vem alegando a União e o próprio Ministério Público.
No que concerne às sociedades anônimas, independentemente de o acionista ser pessoa física ou jurídica o dispositivo foi afastado, inclusive por Resolução do Senado Federal. Com respeito às limitadas, caberia o exame caso a caso, considerando-se inconstitucional aquelas situações em que os contratos sociais não implicassem na distribuição automática dos lucros aos sócios quotistas.
Neste sentido, por conseguinte, foi proclamada a inconstitucionalidade plena do art. 35 da Lei nº 7.713/88 em relação aos acionistas de sociedades anônimas, tendo sido, inclusive, editada a competente Resolução do Senado Federal para a suspensão da execução da expressão “o acionista” do texto normativo em questão.[3]
Tendo em vista que, à época do julgamento do RE nº 172.058 o MEP (Método da Equivalência Patrimonial) já se encontrava em vigor por quase duas décadas, é evidente que o Plenário da Corte Suprema não julgou o critério contábil que envolve um registro reflexo de acréscimo patrimonial fundamento suficiente para caracterizar a disponibilização da renda empresarial.
Esse o sentido e o substrato da decisão proferida pela quase unanimidade do Plenário do Supremo Tribunal Federal no RE nº 172.058. Naquele julgamento ficou assentado que não bastava haver acréscimo patrimonial para atrair a tributação sobre a renda. Decidiu-se que o conceito constitucional de renda estava vinculado à ocorrência de acréscimo patrimonial disponível.
Tudo com base no conceito constitucional de renda, moldado na conformidade com o princípio constitucional da capacidade contributiva.
Traduz-se tal princípio na capacidade econômica de o contribuinte arcar com a porção que lhe é atribuída no financiamento dos gastos públicos através da tributação. Uma exação tributária que exceda a capacidade contributiva torna-se confiscatória, por consequência contrária ao balizamento constitucional. A capacidade contributiva é conceito aberto, cujo alcance há de ser preenchido pelo intérprete à luz de fatos e circunstâncias específicas. Mas seu conteúdo é inegavelmente de natureza econômica.
É por esta razão que a aplicação dos regimes de “caixa” e de “competência” para a apuração da renda, respectivamente da pessoa física e jurídica, há de se fazer sem a rigidez absoluta pretendida pela União, mas com as mitigações que impõe a realidade dos fatos envolvidos em cada uma das situações jurídicas examinadas pelo intérprete.
Assim, se é verdade que a “renda virtual” a que se referia o eminente jurista Bulhões Pedreira pode caracterizar acréscimo patrimonial[4], não é menos verdade que na tributação desta renda, em homenagem ao princípio da capacidade contributiva, há de se aplicar a técnica do diferimento. Vale dizer, constitui decorrência lógica deste princípio constitucional, a regra de que a cobrança do tributo deve atrelar-se à efetiva possibilidade de o contribuinte realizar a renda tributada.
Neste diapasão, se o recebimento do preço, traduzido em documento que torna o contribuinte titular de direito de crédito, há de se fazer a curto prazo, considera-se ocorrida de imediato a venda para fins tributários, visto que o contribuinte pode a seu talante converter tal direito de crédito em espécie, gozando, desse modo, do direito de dispor da renda, elemento indispensável à configuração da capacidade contributiva.
Se, ao revés, trata-se de um contrato de longo prazo, em excesso ao período de um ano, é dado ao contribuinte o diferimento do pagamento do tributo ao longo do período do contrato. Vale dizer, o tributo será pago à medida em que forem recebidas (realizadas) as parcelas contratuais.
O conceito de renda virtual a que se referiu o saudoso jurista carioca sempre esteve ligado à aquisição do poder de dispor da moeda e só será passível de tributação quando se constatar que “já ocorreram todos os fatos que são requisitos essenciais para que a pessoa jurídica venha a obter o poder de dispor da moeda”.[5] Na lição lapidar do mestre: “A disponibilidade virtual da renda pressupõe que a pessoa já tenha adquirido o direito ao rendimento e já se tenham verificado todas as demais condições necessárias para que venha a adquirir o poder de dispor da moeda, de modo que as circunstâncias de fato indiquem que ela deverá, a qualquer momento ou em futuro próximo, adquirir efetivamente a disponibilidade de moeda”.[6]
Não é por outra razão que, quando da nova avaliação de ativos, seja pelo antigo mecanismo da reavaliação, seja pelos modernos mecanismos contábeis de ajuste a valor presente (Leis nºs 11.638/07 e 11.941/09), a despeito do registro de acréscimo patrimonial pelo contribuinte (renda virtual) em obediência ao regime de competência, os efeitos tributários ficam diferidos para o momento da efetiva realização do valor atribuído ao bem objeto de nova avaliação.
E se assim não fosse estar-se-ia tributando uma renda de natureza puramente escritural, sem que o detentor desta renda tivesse meios de solver a obrigação tributária, que é sempre em dinheiro, em manifesta afronta à sua capacidade contributiva.
Imagine-se uma sociedade imobiliária pertencente a uma viúva e filhos cujos ativos se limitassem a alguns imóveis no Rio de Janeiro, a gerar rendas locatícias. Em virtude da extraordinária valorização naquela praça, a sociedade deveria reajustar o valor de seus ativos, refletindo a nova realidade de mercado. A cobrança de tributo sobre tal acréscimo patrimonial constituiria flagrante violação ao princípio da capacidade contributiva, pois obrigaria os controladores da sociedade a segregar não uma parcela da renda locatícia para pagamento do imposto, mas uma parte do próprio patrimônio, visto que a solução da obrigação tributária os obrigaria à venda de parte dos ativos societários que, em virtude da nova avaliação, teriam produzido o acréscimo patrimonial tributável. Tal situação constituiria, à toda vista, flagrante violação ao princípio da capacidade contributiva, assim como aos postulados da razoabilidade e da proporcionalidade.[7]
É exatamente para evitar tal descalabro que as rendas virtuais a que se refere Bulhões Pedreira são objeto de tributação diferida, vale dizer postergada para o momento da realização financeira do acréscimo patrimonial por elas representado, qual seja o momento de sua disponibilização em favor de seu titular.
Assim é que a receita de equivalência patrimonial, ainda que possa representar renda virtual para a pessoa jurídica titular do investimento, não poderá ser objeto de tributação como renda dela própria, visto tratar-se de renda reflexa, de caráter meramente escritural, a corresponder a uma nova avaliação do ativo “investimentos”, a promover mero espelhamento dos resultados produzidos na sociedade investida sobre o ativo representativo do referido investimento.
É curial que a disponibilidade de moeda sobre tal acréscimo patrimonial virtual só ocorrerá ordinariamente na hipótese de alienação do investimento, em que se há de apurar ganho ou perda de capital submetidos às inferências tributárias que lhe são próprias, ou de creditamento dos lucros, seja como dividendo, seja a título de participação de qualquer tipo nos resultados da sociedade investida. Extraordinariamente a disponibilidade de moeda poderá verificar-se em operações específicas como a de liquidação da sociedade investida, de sua reorganização societária pela via de incorporação, fusão ou cisão, ou ainda, por meio da permuta com outros ativos, e coisas do gênero.
Mas nunca, em nenhuma hipótese, poderá a tributação da renda recair sobre o mero registro contábil correspondente à nova avaliação do ativo “investimento” pela agregação à conta representativa do montante inicialmente despendido na aquisição do ativo da parcela de lucros que caberia à sociedade investidora nas hipóteses ordinárias e/ou extraordinárias acima referidas.
Malferindo o princípio da capacidade contributiva, a eventual tributação de resultados da sociedade controlada ou coligada como renda disponível da pessoa jurídica investidora, de igual modo, ofende a toda vista a isonomia.
É que em situações equivalentes em que as sociedades objeto do investimento se situam no âmbito do território nacional os lucros dessas não são adicionados aos lucros das sociedades investidoras para efeito de tributação. E mais: na hipótese de novas avaliações de ativos geradoras de rendas virtuais as sociedades investidoras gozam da regra do diferimento, a mitigar a aplicação do regime de competência à luz dos postulados jurídicos da razoabilidade e da proporcionalidade e com fulcro no princípio da capacidade contributiva.
A tributação de resultados da sociedade controlada ou coligada como renda disponível da pessoa jurídica investidora, nos moldes em que pretende o art. 74 da MP nº 2.158-35/01, como bem enunciou a 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região ao suscitar a referida Arguição de Inconstitucionalidade, serve apenas a um propósito: “majorar o resultado de arrecadação”. E isto, é de se frisar, em detrimento da moldura constitucional e do entendimento jurisprudencial mansa e pacificamente firmado pelo STF, quando do julgamento do RE nº 172.058.
E a consequência é inexorável: ao servir ao propósito único arrecadatório, ignora as consequências de seus efeitos nas relações internacionais, distanciando-se da prática dos países que, com acerto, adotam a tributação imediata na hipótese de comprovada prática de ação fraudulenta, como a remessa a paraísos fiscais, sem o retorno do caráter produtivo.
Nessa toada é que se deve prestigiar o acórdão proferido pela 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, segundo o qual:
“A extraterritorialidade tributária deve estar voltada, em virtude de seus efeitos nas relações internacionais, a uma finalidade maior do que o mero incremento da arrecadação; deve ser dirigida ao esforço não apenas nacional, mas de todo o concerto de Nações, de coibir práticas fraudulentas, como remessa de lucros a paraísos fiscais, sem o retorno produtivo, promovendo, por meios indevidos, a nacionalização, com fraude e sem oferecer a riqueza à tributação, não apenas elidindo, mas suprindo e sonegando legítima tributação devida ao Estado. Não pode, porém, ser técnica como forma de punir ou atingir legítimas opções econômicas, financeiras e comerciais das empresas com atuação no mercado internacional.
O direito comparado revela que tributação de forma extraterritorial exige requisitos específicos, relacionados ao uso indevido e abusivo do poder de controle empresarial para frustrar interesse tributário do país de origem do capital investido, e não uso da extraterritorialidade como técnica de aprimoramento da arrecadação fiscal, como se fez no caso em análise.”
Diante disso, com fundamento nos princípios constitucionais da capacidade contributiva e da isonomia, bem assim no robusto precedente firmado pelo Supremo Tribunal Federal (RE 172.058), é pertinente tornar ineficaz, por inconstitucional, a regra contida no caput do art. 74 da MP 2.158-35/01, na esteira do entendimento prolatado pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região (3ª Turma) no julgamento per saltum que deu origem à Arguição de Inconstitucionalidade retro mencionada:
“8. A cobrança de IRPJ/CSL, conforme o artigo 74 da MP 2.158-35/2001, nasce de presunção ou ficção de disponibilidade jurídica ou econômica, ao reputar que o lucro teria sido pago, creditado, nacionalizado e distribuído a favor da controladora ou coligada, a partir da mera apuração contábil na controlada ou coligada no exterior, sem considerar destinação diversa licitamente dada aos recursos, inserida dentro do campo da livre gestão empresarial. Embora, economicamente, a apuração de lucros no exterior, por controlada ou coligada, possa eventualmente produzir efeito patrimonial positivo na controladora ou coligada brasileira, a valorização cogitada, se efetivamente existir, será resultado não de fato jurídico relacionado à disponibilidade econômica ou jurídica de lucro, mas de avaliação feita pelo mercado e fundada em critério econômico, sem compromisso algum com parâmetros jurídico-constitucionais.”
Na hipótese de não vir a prevalecer tal entendimento, o que se admite para argumentar, cabe cogitar da interpretação conforme a Constituição, sem redução de texto, com o reconhecimento da integral aplicação do texto normativo no caso de controladas constituídas em países de tributação favorecida, e com o acatamento de sua ineficácia nas situações que não envolvam a utilização de controladas em países de tributação favorecida, ressalvadas em ambos os casos as situações de controladas constituídas em países com os quais o Brasil tenha firmado tratado para evitar a dupla tributação, situações estas em que as regras aplicáveis devem ser perquiridas à luz dos tratados correspondentes, dada a sua natureza de lex specialis.
Notas
[1] O único voto contrário à tese da inconstitucionalidade foi do Min. Ilmar Galvão.
[2] Cf. voto do Min. Carlos Velloso no RE nº 172.058-1/SC.
[3] Cf. RSF nº 82, de 18/11/96, Ementa: Suspende, em parte, a execução da Lei 7.713, de 29 de dezembro de 1988, no que diz respeito a expressão “o acionista” contida no seu artigo 35.
[4] PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Imposto Sobre a Renda: Pessoas Jurídicas. 1ª. ed. Rio de Janeiro: ADCOAS JUSTEC, 1979, p. 197.
[5] PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Imposto Sobre a Renda: Pessoas Jurídicas. 1ª. ed. Rio de Janeiro: ADCOAS JUSTEC, 1979, p. 199.
[6] Op. cit. p. 199/200.
[7] Cf. João Victor Guedes Santos, Lucros no Exterior Direito Comparado e o Princípio da Proporcionalidade, in: Revista Dialética de Direito Tributário nº 145, 2007, pp. 71-85; e Luís Eduardo Schoueri, Transparência Fiscal Internacional, Proporcionalidade e Disponibilidade: Considerações acerca do art. 74 da Medida Provisória nº 2.158-35, in: Revista Dialética de Direito Tributário nº 142, 2007, pp. 40-50.