Resumo: As microfinanças, sobretudo por meio das operações de microcrédito, têm sido percebidas como importantes ferramentas mitigação da pobreza em todo o mundo. Contudo, o exame de seus meios de oferta no país, feito neste trabalho, indica que é necessário explorar novos mecanismos que permitam o aumento do emprego de recursos do sistema financeiro nacional nas operações de microcrédito, bem como a ampliação da oferta de outros serviços de microfinanças.
Palavras-chave: Microfinanças. Microcrédito. Inclusão Financeira. Desenvolvimento Econômico. Sistema Financeiro Nacional.
Sumário: Introdução. 1. Características das Microfinanças. 2. Importância das Microfinanças. 3. Oferta de Microcrédito. 3.1 Apoio Governamental. 4. Oferta de Microfinanças. 4.1 Bancos Comunitários e Contratos de Correspondente.
Introdução
Em todo o mundo, programas específicos têm sido desenvolvidos com formas não tradicionais de lidar com a superação da pobreza da população local e do baixo desenvolvimento econômico das regiões onde atuam. (SCHULMAN, 2008, p. A03; PANT, 2008, [s.p.]; UNITED NATIONS CAPITAL DEVELOPMENT FUND, 2005, [s.p.]). Respeitadas as idiossincrasias que visam a atender às questões específicas de cada região ou grupo social, o traço singular que une esses programas é a atenção por eles conferida à promoção de acesso a crédito por indivíduos de baixa renda, normalmente excluídos do sistema financeiro.
De maneira geral, programas do gênero já haviam sido largamente implementados, com enfoque assistencial, por governos de diversos países e apresentaram eficácia variável, porém majoritariamente negativa, a depender do local em que se desenvolveram e da forma como foram planejados e executados. (ARMENDÁRIZ; MORDUCH, 2007, p. 8-11).[1] Durante a década de 1970, uma série de projetos, inovadores em sua forma de lidar com o fornecimento de crédito e de outros serviços financeiros a indivíduos de baixa renda, começaram a surgir ao redor do mundo (FIORI, 2004, p. 13, 73-89)[2] e a evidenciar, anos adiante, resultados destacáveis em relação aos tradicionais programas de subsídios governamentais. (YUNUS, 2003, p. 133-151). Às instituições e entidades que desenvolveram os aludidos programas bem-sucedidos, convencionou-se chamá-las de instituições de microfinanças (IMF).
Em razão de seu sucesso no impacto positivo que tiveram sobre as vidas de milhões de indivíduos, as IMF despontaram como esperança de mudança na forma de tratamento de problemas relativos à pobreza, tendo o microcrédito ganhado o centro das atenções de formuladores de políticas públicas em nível mundial. Exemplos disso veem-se na escolha do ano de 2005 como o “Ano do Microcrédito”, pela Organização das Nações Unidas[3], e na atribuição do prêmio Nobel da Paz de 2006 ao Grameen Bank, conhecida instituição fornecedora de microcrédito à população de baixa renda de Bangladesh, e a seu criador Muhammad Yunus. No Brasil, embora já houvesse legislação atinente à atividade de cooperativas de crédito e similares, observam-se, a partir de 1999, políticas voltadas caracteristicamente para o apoio ao microcrédito, tornando viável o repasse de recursos públicos para entidades sem fins lucrativos que se dedicassem a desenvolver sistemas alternativos de crédito,[4] bem como o direcionamento de parcela dos depósitos à vista captados por instituições financeiras bancárias para operações de microcrédito[5] e a instituição do Programa Nacional de Microcrédito Produtivo Orientado (PNMPO).[6]
O que se percebe, em todo o caso, é que a vantagem competitiva apresentada pelas IMF em relação aos tradicionais programas de subsídios governamentais está na metodologia por elas utilizada, que possibilita a superação de boa parte dos custos de transação[7] naturalmente encontrados por instituições financeiras ao se depararem com solicitações de empréstimo ou de outros serviços financeiros formuladas por indivíduos de baixa renda e com pouco ou nenhum patrimônio. Essa metodologia, vale dizer, também tem assegurado baixas taxas de inadimplências às entidades que atuam no setor.
O objetivo deste artigo é investigar as principais formas criadas no Brasil para a oferta de serviços de microfinanças. Para tanto, consultou-se, primordialmente, a literatura especializada em microfinanças, que se dirige ao tema com perspectiva marcadamente econômica, e os textos normativos que disciplinam essa matéria.
Nos tópicos 1 e 2, serão abordadas as características das microfinanças e, em linhas gerais, de como elas têm sido importantes para a superação da pobreza de muitas pessoas ao redor do mundo, inclusive no Brasil.
Os tópicos 3 e 4 são dedicados à investigação dos meios de oferta de microfinanças. Passa-se, primeiramente, pelo acesso ao microcrédito, principal produto das microfinanças, com destaque ao apoio que o governo brasileiro tem fornecido a essa atividade, para chegar ao problema de subutilização dos recursos disponíveis em operações de microcrédito e às dificuldades na oferta de serviços de microfinanças de maneira completa.
No tópico 4.1, serão examinados os bancos comunitários e os contornos de sua contratação como correspondentes de instituições financeiras, que se mostra como interessante alternativa para resolver a constrição da oferta de microfinanças. A opção pelo estudo dos bancos comunitários, como fechamento deste trabalho, justifica-se pelo relevante trabalho que eles vêm desenvolvendo, não somente na oferta de microcrédito produtivo, mas também na operação de sistemas de “moeda sociais”, isto é, sistemas de intercâmbio de mercadorias e serviços que se utilizam de papéis emitidos por esses bancos para o pagamento, como se moeda fossem, de obrigações assumidas por seus detentores, em caráter complementar à moeda oficial do país (Real).
1 Microfinanças
Entende-se por microfinanças o conjunto de serviços financeiros que envolvem valores de pequena monta, oferecidos a indivíduos de baixa renda. (ARMENDÁRIZ; MORDUCH, 2007, p. 1; FIORI, 2004, p. 12).[8] Tais serviços podem compreender ampla gama, desde o fornecimento de crédito à oferta de mecanismos de investimento e de seguro. O crédito, por sua vez, sob a nomenclatura de “microcrédito”, tem ganhado grande destaque internacional, em especial com os relatos de experiências bem sucedidas em países reconhecidamente mais pobres, como é o caso do Grameen Bank, fundado em Bangladesh, que recebeu, juntamente com seu idealizador e criador Muhammad Yunus, o prêmio Nobel da Paz em 2006. (ARMENDÁRIZ; MORDUCH, 2007, p. 1; FIORI, 2004, p. 12; YUNUS, 2003, 133-151).
Em essência, as microfinanças são serviços e produtos desenvolvidos para atender às necessidades financeiras de pessoas com parcos rendimentos e pouco ou nenhum patrimônio economicamente apreciável. Esse leque de serviços e produtos financeiros tem apoio fundamental no crédito, que é concedido com base em metodologias de análise de crédito especificamente desenvolvidas para esse setor, de grande simplicidade e flexibilidade quanto aos requisitos de acesso, quanto à documentação e às garantias exigidas, e com envolvimento direto do mutuante no cotidiano do mutuário, para compreender suas dificuldades de natureza técnica, administrativa, ou mesmo relativa à apresentação de garantias, e fornecer auxílio ou soluções capazes de superar semelhantes obstáculos à concessão do crédito e a seu regular pagamento. (UNITED NATIONS, 2005, passim).[9]
Dentre essas metodologias e técnicas de análise de crédito, de aceitação de garantias e de acompanhamento dos mutuários, têm sido muito aplicados os já citados empréstimos em grupo, com garantia solidária entre seus membros, que ganharam largo espaço no desenvolvimento das microfinanças, em razão de sua eficiência em reduzir custos de transação advindos da assimetria de informações[10], da seleção adversa[11] e do risco moral.[12]
A sistemática desses expedientes é relativamente simples e consiste na formação de grupos de indivíduos para a tomada de empréstimos. A redução na assimetria de informações vem do aproveitamento dos dados que os próprios mutuários têm a respeito dos demais integrantes do grupo, oriundos do convívio social. De maneira semelhante, os riscos oriundos da seleção adversa também se reduzem com a formação de grupos, pois aqueles com perfil mais conservador tenderão a se afastar dos que apresentam atitude mais arrojada – mais propensos ao risco, portanto –, e os grupos acabarão formados por indivíduos com perfil de risco similar. Por sua vez, também fica diminuído o risco moral, isto é, a possibilidade de o mutuário tomar o crédito para finalidade produtiva e utilizá-lo em consumo, comprometendo sua capacidade de pagamento, pois a presença de pessoas de um mesmo círculo social no grupo produz o incentivo ou o constrangimento a que as dívidas sejam regularmente honradas, ao passo que o trabalho de monitoramento da atividade produtiva dos devedores é diuturnamente realizado pelo contato pessoal entre os próprios membros do grupo. Afinal, com a concessão de garantia solidária entre eles, todos se tornam responsáveis pelo débito alheio e por ele devem zelar.
Não obstante o sucesso dessa prática, Armendáriz e Morduch (2007, p. 119-122) relatam que muitas IMF têm recuado da exigência generalizada de formação de grupos para a concessão dos empréstimos. Cada vez mais, a concessão de microcrédito tem sido feita individualmente. Com isso, outras metodologias e mecanismos de incentivos têm sido criados para superar as mesmas falhas de mercado acima apontadas (assimetria de informações, seleção adversa e risco moral). Dentre as mais comuns, destacam-se a restrição de crédito, em caso de inadimplemento; os empréstimos progressivos, com aumentos sucessivos das linhas de crédito para bons pagadores; a amortização frequente do mútuo, em pequenas parcelas;[13] a aceitação de bens não convencionais em garantia, tais como bens de alto valor sentimental para o mutuário, embora de pequeno valor econômico para a IMF; a formação de ativos financeiros dos mutuários, para servir de garantia aos empréstimos, mediante a exigência de poupança regular; dentre outros. (ARMENDÁRIZ; MORDUCH, 2007, p. 122-141)
2 Importância das Microfinanças
Fundadas, portanto, nas operações de microcrédito é que as microfinanças aparecem como relevante forma de inclusão de indivíduos de menor renda no sistema financeiro. Extremamente comuns são já os relatos de casos em que o fornecimento de microcrédito e de outros serviços financeiros foi capaz de produzir mudança significativa na vida de pessoas que tinham pouco mais do que sua força de trabalho e se encontravam em situação de extrema pobreza. (YUNUS, 2003, passim).
Essencial, aqui, recordar a relação que Sen (2000, p. 55-56) estabelece entre o acesso a facilidades econômicas, tais como o crédito, e a construção das liberdades que conduzem ao desenvolvimento de um povo. Em verdade, percebida a capacidade do crédito em potencializar o crescimento da atividade econômica (MARTINS, 2005, passim), seja qual for a escala ou o tamanho do empreendimento, a generalização do acesso a essa facilidade tende a contribuir para o progresso de pessoas que se encontram em situação de pobreza. (BESLEY; BURGESS, 2003, p. 14).
E o progresso verificado, não raro, estende-se para o desenvolvimento de outras liberdades, para usar a terminologia de Sen. O que se tem verificado, nos locais onde projetos de microfinanças têm sido bem sucedidos, é a emergência de mobilização política da comunidade, que se inicia com sua participação ativa na organização e na condução dos projetos e culmina com a formação de fóruns locais, regionais para a discussão e atuação em diversos temas de seu interesse. (YUNUS, 2003, p. 97-103).[14]
É digno de nota que, embora seja recente o grande e significativo desenvolvimento das microfinanças, ocorrido em meados dos anos 1970 e 1980 (FIORI, 2004, p. 13), não é possível afirmar que, antes disso, indivíduos com pouca renda fossem privados do acesso a recursos financeiros. Ao contrário, as famílias mais pobres mostram ter, comumente, mais de uma fonte de crédito na economia local, sejam essas fontes membros da família, amigos, vizinhos, agiotas (moneylenders), ou mesmo esquemas informais de poupança e empréstimo em grupo. (ARMENDÁRIZ; MORDUCH, 2007, p. 13, 55 et seq.).[15]
Portanto, operações semelhantes às realizadas pelas IMF parecem sempre ter existido, não constituindo algo totalmente inédito o que praticam essas entidades. Contudo, o desenvolvimento das microfinanças apresenta algumas importantes vantagens às alternativas mencionadas, que merecem ser destacadas. Em primeiro lugar, como visto no item anterior, o movimento representa uma tomada de atitude perante o antigo problema de oferecer recursos e outros serviços financeiros a pessoas que, por suas diversas limitações – principalmente, mas não exclusivamente, patrimoniais[16] –, estão alijadas do sistema financeiro. Por sua vez, essa atitude colabora para a institucionalização de mecanismos ou esquemas de empréstimos que têm demonstrado ser possível oferecer serviços financeiros àquelas pessoas, com baixas taxas de inadimplência e retorno financeiro significativo para o capital empregado. Outra vantagem dos esquemas desenvolvidos recentemente com as microfinanças está na possibilidade de que (i) recursos existentes no sistema financeiro passem a ser acessados por indivíduos dele usualmente excluídos (ASTHA, 2007, p. 77-87), (ii) mediante a cobrança de taxas de juros menores do que as obtidas nas vias usuais de fornecimento de crédito, citadas acima. (ARMENDÁRIZ; MORDUCH, 2007, p. 29-46). Por fim, as microfinanças também possibilitaram a expansão dos serviços financeiros para além do fornecimento do crédito, assim complementando o atendimento às necessidades dessas pessoas, que demonstram precisar não somente de empréstimos, mas também de meios de poupança e investimento, de contratação de seguros, de previdência, bem como de acesso ao sistema de pagamentos para realizar transações comerciais com segurança, pagar contas, tributos etc. (ARMENDÁRIZ; MORDUCH, 2007, p. 14-16).
Voltando os olhos para a experiência brasileira e para o que tem sido comumente praticado pelos bancos comunitários, espécie de IMF que será adiante examinada, as atividades por eles praticadas têm demonstrado capacidade de ir além da oferta desses serviços financeiros, chegando ao desenvolvimento de sistemas de trocas de produtos e serviços, que têm como base a realização de acordos com os empresários do local, para a aceitação dos papéis representativos de valor emitidos pelos bancos comunitários, usualmente chamados de “moedas sociais”, “moedas complementares” ou “circulantes locais”. Com isso, os recursos que seriam entregues em reais aos tomadores de operações de microcrédito, aos beneficiários da Previdência Social ou de programas de assistência social ou, em alguns casos, a servidores públicos, a título de remuneração, podem ser fornecidos total ou parcialmente em moedas sociais, para utilização na rede de estabelecimentos que as aceitam.[17]
A adição desse esquema de trocas tem a relevante consequência de fomentar o comércio local, pois os recursos passam a circular somente ali, o que cria condições para o fortalecimento de toda a economia do lugar. De um ponto de vista microeconômico, semelhantes efeitos indiretos das moedas sociais tornam viáveis a multiplicação da riqueza do local e o consequente desenvolvimento e fortalecimento de um mercado interno, com importantes repercussões para o desenvolvimento do país. (FURTADO, 2000, passim).
À vista disso, em termos jurídicos, é possível afirmar que o desenvolvimento das microfinanças contribui direta e significativamente para a concretização da cidadania, da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, elencados como fundamentos da República no art. 1º da Constituição. Assim também para construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, tal como prescreve à República pátria o art. 3º do texto constitucional, ao tratar de seus objetivos fundamentais.
Nesse diapasão pode-se falar ainda em atendimento ao disposto no art. 170 da Constituição, tanto no que tange ao fim buscado pela ordem econômica (“assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”), quanto aos princípios observados para alcançá-lo (“redução das desigualdades regionais e sociais”; “busca do pleno emprego”). Ademais, em se tratando de promoção de acesso ao sistema financeiro, não se pode deixar de considerar o que prescreve o art. 192 da Carta Política no que se refere aos deveres que tem esse sistema de contribuir para o desenvolvimento equilibrado do País e servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem.
Por fim, em sede infraconstitucional, o aprimoramento das microfinanças no País colaboram para a realização dos objetivos propostos pelo Programa Nacional de Microcrédito Produtivo Orientado (PNMPO), criado pela Lei 11.110, de 25 de abril de 2005, que estatui sistemática destinada ao fornecimento de microcrédito para atividades produtivas de pequeno porte.
3 Oferta de Microcrédito
Como afirmado ao final do tópico anterior, o acesso ao crédito por indivíduos de baixa renda pode ser obtido por diversas fontes, principalmente as informais. Dentre tais esquemas informais, tornaram-se conhecidas, pelos estudos que sobre elas se realizaram, as associações de poupança e empréstimo rotativos.[18] Sua principal característica está ligada à presença de um objetivo em comum dos indivíduos que dela participam, qual seja, de adquirir bens indivisíveis cujo valor é elevado demais para que o façam isoladamente. Assim, todos os participantes devem contribuir periodicamente com quantias previamente definidas, e alguns deles vão sendo contemplados com a possibilidade de realizarem o empréstimo para a aquisição do bem. Assim o fazendo, devem retornar os recursos à associação, eventualmente acrescidos dos respectivos juros, conforme o prevejam as regras de empréstimo informalmente acertadas entre os participantes. (ARMENDÁRIZ; MORDUCH, 2007, p. 57-61).
Também as cooperativas de crédito, essas de constituição formal, podem oferecer microcrédito a seus associados. Entidades que surgiram na área rural da Alemanha de 1850, por iniciativa de Friedrich Raiffeissen, como forma de prover serviços financeiros aos pobres mediante a formação de grupos de interessados, as cooperativas de crédito logo tomaram corpo e foram reproduzidas por toda a Europa, com grande facilidade. (ARMENDÁRIZ; MORDUCH, 2007, p. 68-69). No Brasil, o cooperativismo de crédito tem sido experimentado desde 1902, por iniciativa do padre suíço imigrante Theodor Amstad, que criou a Sociedade Cooperativa Caixa de Economia e Empréstimos de Nova Petrópolis. (SOARES; MELO SOBRINHO, 2007, p. 62).
As cooperativas de crédito funcionam mediante a formação de fundos constituídos com a poupança de seus associados, cujos recursos passam a ser empregados em operações de empréstimo aos próprios cooperados. Essas entidades, como visto, têm longa história no País e já estavam presentes quando do advento da Lei 4.595, de 31 de dezembro de 1964, que organizou o Sistema Financeiro Nacional. Por essa razão histórica, somada à sua capacidade para receber depósitos à vista e a prazo dos associados, foram elas expressamente mencionadas no texto da lei[19] e devem ser autorizadas a funcionar pelo BCB. Destaque-se que o acesso formal ao sistema financeiro confere-lhes a vantagem de poder oferecer uma gama mais completa de serviços de microfinanças, como se verá adiante.
Também podem praticar operações de microcrédito as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP)[20] que se dedicarem, nos termos do art. 3º, IX, da lei 9.790, de 23 de março de 1999, à “experimentação, não lucrativa, de novos modelos sócio-produtivos e de sistemas alternativos de produção, comércio, emprego e crédito”, grupo no qual se incluem os mencionados bancos comunitários que ostentem a qualificação de OSCIP. Essas entidades, contudo, não podem ser integrantes do sistema financeiro nacional, por expressa vedação do art. 2º da mencionada lei.[21]
Igualmente, diversas instituições autorizadas a funcionar pelo BCB também podem oferecer microcrédito a clientes com menor renda. São elas bancos comerciais, bancos múltiplos com carteira comercial, caixas econômicas, sociedades de crédito, financiamento e investimento, dentre outras. Nesse universo, merecem destaque as sociedades de crédito ao microempreendedor e à empresa de pequeno porte (SCM), pessoas jurídicas empresárias cujo objeto social é a concessão de créditos a pessoas físicas, a microempresas e a empresas de pequeno porte, nos termos da legislação em vigor.[22] Criadas pela Medida Provisória 1.894-19, de 29 de junho de 1999,[23] e regulamentadas pela Resolução CMN 2.627, de 2 de agosto de 1999[24], as SCM têm função quase exclusiva de fornecimento de crédito, não podendo praticar outras operações de microfinanças.
3.1 Apoio Governamental
O microcrédito, quando definido simplesmente como “operação de crédito de pequeno valor”, abrange operações com todas as finalidades: produção, investimento e consumo. Não obstante, para os propósitos de uma política governamental de geração de trabalho e renda, a concessão de crédito com finalidade produtiva ou de investimento mostra-se mais apropriada. O incentivo ao crédito voltado para o consumo pode criar efeitos negativos, mediante aumento do nível de endividamento dos indivíduos sem o correspondente incremento de sua capacidade de produzir renda.
Com esse espírito, ações governamentais vêm sendo tomadas no intuito de ampliar a oferta de microcrédito no país. Em 1999, foi criado, por meio da Medida Provisória 1.922, de 5 de outubro,[25] um mecanismo de garantia de empréstimo denominado Fundo de Aval para Geração de Emprego e Renda – FUNPROGER, com o fito de assegurar parte do risco dos financiamentos concedidos pelas instituições financeiras oficiais federais, no âmbito do Programa de Geração de Emprego e Renda - PROGER, Setor Urbano.[26] De maneira bastante clara, a intenção da medida foi possibilitar que a redução do risco das operações incentivasse as instituições financeiras a emprestar seus recursos aos beneficiários do PROGER, público que compreende micro e pequenos empresários e empreendedores individuais, inclusive os que laboram na informalidade.[27]
Na mesma linha, a Medida Provisória 122, de 25 de junho de 2003, convertida na Lei 10.735, de 11 de setembro de 2003, buscou incrementar, nesse caso por meios forçados, o volume de recursos destinados pelo sistema bancário a operações de microcrédito, utilizando-se, para tanto, do mecanismo de direcionamento de percentual dos depósitos à vista captados por bancos comerciais, bancos múltiplos com carteira comercial e pela Caixa Econômica Federal.[28] Nessa sistemática, os recursos não direcionados por aquelas instituições a operações de microcrédito devem ser recolhidos compulsoriamente ao BCB, ficando sem qualquer remuneração. O direcionamento, por sua vez, pode ser feito por meio de outras instituições financeiras ou mediante aquisição de operações de microcrédito realizadas por outras instituições financeiras, SCM, OSCIP de microcrédito ou organizações não governamentais que tenham por objetivo realizar operações de microcrédito.[29]
Em complemento a essas ações, foi criado em 2004 o Programa Nacional de Microcrédito Produtivo Orientado (PNMPO),[30] destinado a estabelecer de maneira sistematizada uma série de ações voltadas à ampliação do acesso ao crédito a microempreendedores no país. O microcrédito objeto do PNMPO não é, portanto, concedido com destinação ao consumo do mutuário, preferindo-se o financiamento de despesas com investimento ou produção, como define o § 3º do art. 1º da Lei 11.110, de 25 de abril de 2005,[31] que estipula uma série de requisitos para o que considera microcrédito produtivo orientado.
A Lei 11.110, de 2005, estabelece também que as operações de crédito realizadas no âmbito do PNMPO contarão com recursos oriundos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), do direcionamento de depósitos estabelecido pela Lei 10.735, de 2003,[32] e do orçamento geral da União ou de fundos constitucionais de financiamento.[33] Além disso, a União pode conceder subvenção econômica para cobrir[34] parte dos custos a que estão sujeitas as instituições financeiras para contratação e acompanhamento de operações de microcrédito produtivo orientado.
Para fazer uso esses recursos, as instituições financeiras devem atuar por intermédio de instituições de microcrédito produtivo orientado, categoria da qual fazem parte cooperativas singulares de crédito, agências de fomento estaduais,[35] SCM e OSCIP que fornecem crédito a microempreendedores, utilizando o repasse de recursos, a aquisição de operações de crédito ou instrumentos de mandato.[36] Alternativamente, as instituições financeiras podem fornecer crédito por meios próprios, mas, nesses casos, a lei impõe que elas constituam estruturas específicas, aprovadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), para o atendimento dos requisitos previstos para o microcrédito produtivo orientado.[37]
O exposto acima sugere que existe no Brasil um arcabouço normativo relativamente robusto para o fornecimento de microcrédito, que direciona para essa modalidade recursos aparentemente abundantes. Porém, observando os dados sobre a aplicação da parcela de 2% dos depósitos a vista que devem ser direcionados ao microcrédito, vê-se o volume de recursos efetivamente empregados nessas operações fica muito aquém do total disponível pelo supracitado direcionamento de depósitos à vista.
Segundo dados do BCB (2010, p. 79-80; 2011, p. 95-98)[38] sobre esse direcionamento, cerca de 1 bilhão de reais têm ficado, desde janeiro de 2004, mensalmente depositados em contas mantidas na autarquia, sem remuneração, em virtude da não aplicação da parcela de 2% dos depósitos a vista em operações de microcrédito. Esse valor, em 2004, correspondia a mais de 90% do total de recursos que deveriam ser aplicados (também chamados de exigibilidade). Atualmente, o montante direcionado às operações de microcrédito supera os 70% da exigibilidade, o que significa que apenas 30% desse valor ficam depositados em contas no BCB, sem remuneração. Não obstante essa melhora proporcional na aplicação dos recursos, em valores absolutos, ainda se trata de cerca de 1 bilhão de reais.
Outro ponto digno de nota nas estatísticas do BCB (2011, p. 97) é a tímida participação das instituições financeiras privadas nesse mercado. A dominação das instituições financeiras oficiais é marcante, chegando a 88% nas operações de microcrédito produtivo orientado.