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Punição das pessoas físicas, autoras e partícipes, nos ilícitos plurissubjetivos anticoncorrenciais.

Uma visão à luz do Direito Penal

Na imputação de responsabilidade aos dirigentes das sociedades empresárias, é necessário complementar a teoria do domínio do fato com o raciocínio adotado pelo Código Penal, que, ao tratar dos crimes omissivos impróprios, elencou os indivíduos em posição de garante.

I. Introdução: a tutela da livre concorrência

A proteção à livre concorrência repercute em importantes segmentos e estruturas da sociedade. Além de sua função na atividade econômica, a livre concorrência figura-se como bem público social, em que a satisfação de necessidades da sociedade também perfaz um de seus papéis.

Quanto aos vários campos em que a livre concorrência ressoa na sociedade, cita-se, a título de elucidação, o da estrutura política democrática: agentes com um poder de mercado podem exercer demasiada influência nas decisões acerca de políticas públicas. Dessa forma, a livre concorrência, incluindo a liberdade ação e atuação de agentes econômicos no mercado, assim como a liberdade do consumidor, deve convergir para a eficiência social-democrática da economia.

Constitucionalmente, a livre concorrência encontra-se como um dos princípios da atividade econômica. Além dos pilares de atuação negativa do Estado, há direitos de segunda geração de atuação estatal positiva, que visam reprimir infrações à ordem econômica e objetivam fomentar a livre concorrência tendo em vista a importância da ação do Estado para que esta provoque seus efeitos positivos na economia e na sociedade.

Diante da inserção do fundamento da livre concorrência na Constituição Federal, surge o Direito Penal Econômico, nova área de incriminação que inaugurou conceitos dogmáticos. A partir de conceitos do Direito Penal, pode-se tecer algumas elucidações sobre a possibilidade de punibilidade de pessoas físicas em ilícitos econômicos plurissubjetivos, como o cartel.


II. Dos ilícitos penais plurissubjetivos: a atuação dos co-autores e dos partícipes

No âmbito da dogmática penal, quanto aos agentes, dividem-se os crimes em unissubjetivos e plurissubjetivos. A despeito do que o primeiro termo parece refletir, este não se refere somente a crimes realizados por uma única pessoa, podendo abranger crimes praticados por diversos agentes, tal como sucede no concurso eventual.

Entretanto, os crimes unissubjetivos não dependem da multiplicidade de agentes para que sejam exauridas todas as elementares do crime, a saber, tipicidade, culpabilidade e antijuridicidade. Deste ponto sucede, então, sua denominação.

Quanto aos crimes plurissubjetivos, é imperioso que haja multiplicidade de agentes, podendo haver, entre eles, homogeneidade ou não entre as vontades. Desta forma, as vontades podem ser paralelas (como ocorre na formação de quadrilha), convergentes (bigamia) ou contrapostas (rixas).

O concurso de pessoas, fator necessário neste tipo de crime, é definido pelo professor Julio Fabbrini Mirabete como: “a ciente e voluntária participação de duas ou mais pessoas na mesma infração penal”.[1]

Neste sentido, quando uma conduta é cometida por mais de uma pessoa, há um concurso de pessoas. A fim de apenar os atos cometidos, é preciso definir qual a culpabilidade de cada agente participante do concurso.  Estes crimes podem ser classificados quanto três itens: (a) consciência do agente quanto à ilicitude, (b) relevância do ato que por ele foi praticado e (c) domínio que o agente tem sobre o fato. Quando combinados, tem-se que o agente pode ser autor, co-autor ou partícipe do ato criminoso.

Com referência a Silva Franco, podemos dizer que o legislador de 84, ao construir nosso Código Penal, não adotou explicitamente nenhuma posição dogmática, o que prejudica, até hoje, uma postura absoluta quanto à distinção entre as condutas de autoria e de participação. Doutrinadores como Juarez Cirino e César Bittencourt defendem que o atual CP adota a uma "teoria unitária temperada", conquanto Oswaldo Henrique Duek Marques entende que o Direito Penal Brasileiro admite uma teoria extensiva de autor. Outra posição, defendida por boa parte da doutrina, é a de que acolhemos a teoria restritiva de autor.

Adotando a teoria restritiva, temos que autor é aquele que possui domínio absoluto do crime, desenvolve a ideia, arquiteta o mecanismo, busca efetivamente o resultado e possui influência e poder de decisão sobre a prática. Sua conduta está tipificada, se encaixa naquilo que está disposto no Código Penal.

Co-autor é aquele que divide o fato com outrem, ambos são donos da vontade e dos atos; não há subordinação ou hierarquia, existe uma vontade comum entre eles.

O partícipe age de maneira limitada, coadjuvante e subsidiária à do autor ou co-autores; sua conduta não se ajusta ao tipo penal, apenas converge e contribui para que este seja concretizado. Há uma ampliação daquilo do que de fato configura o tipo e é esta extensão que alcança a participação, que é sua contribuição.

Para melhor definir a condição de partícipe, adotamos, assim como boa parte da doutrina, a teoria da acessoriedade limitada, que diz que a ação do partícipe constitui sempre acessório à conduta principal, não estando tipificada. O partícipe será alcançado por uma extensão da tipicidade do ato cometido pelo autor. Nessa medida, só será punido o partícipe que tenha colaborado para um ato ilícito tipificado e tentado. Por se classificar como figura dolosa, a participação só é punida quando seu agente tem conhecimento de sua conduta e da ilicitude desta.

As definições supratranscritas são muito pertinentes, uma vez que ressaltam dois aspectos de extrema relevância para a concreção do ilícito, quais sejam, a ciência e voluntariedade. O jurista Hans Welzel, em sua teoria, já classificava o dolo como vontade consciente. Portanto, percebe-se que em crimes originados da adesão de vontades, a presença de dolo é fulcral.

Nesse esteio, ater-se-á agora a análise do crime plurissubjetivo de formação de cartel. De início, repise-se que a prática de cartel é extremamente danosa a toda sociedade, haja vista que afeta o bem-estar social quando oblitera artificialmente as relações de consumo e os setores a elas concernentes.


III. Análise da conduta dos agentes nos crimes plurissubjetivos lesivos à livre concorrência

O Ministério da Justiça define o cartel como ilícito concorrencial caracterizado como acordo entre empresas concorrentes que objetiva, ao alterar artificialmente as condições de mercado em relação a certos bens ou serviços, restringir ou eliminar a concorrência, com graves prejuízos ao consumidor final.

Outrossim, acerca da figura do cartel, é importante precisar que para sua formação, assim como para sua manutenção, são indispensáveis diversos participantes, os quais, por vezes, não têm poder de mando, porém se vinculam ao resultado dali resultante por aderirem à vontade do mandante.

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Entretanto, nem sempre ocorre esta adesão, como verificado pelo STJ, no voto do Ministro-Relator Hamilton Carvalhido no julgamento do Recurso em Habeas Corpus n.º 18.257 – PE (2005/0139296-6): 

Por outro lado, são evidentes os indícios de que diversas pessoas estão associadas ou reunidas com o objetivo comum de cometimento de crimes contra a ordem econômica.

Os acusados, junto com uma gama enorme de pessoas não identificadas, formaram um cartel – uma espécie de organização criminosa – que tem por objetivo específico a prática do delito estabelecido no art. 4º, incisos I, ‘a’ e II, ‘a’, da Lei 8.137/90.

Usam da coação (ameaças e atentados) para fazer com que todos, inclusive os que não desejariam aderir espontaneamente ao ajuste de preços, desse modo passem a agir.

A adesão de vontades refere-se estritamente a exigência de que haja liame ou vínculo subjetivo. Entretanto, essa vinculação não demanda a existência de um ajuste prévio (pactum sceleris) entre os criminosos, apenas que as vontades se convirjam.

Assim, diante da numerosidade de indivíduos de envolvidos na prática do cartel, é difícil a especificação do responsável por cada ação na cadeia delituosa. Por isso, já é pacífica jurisprudencialmente a prescindibilidade da descrição individualizada da ação de cada acusado, quando da denúncia, podendo esta descrição ser feita a qualquer momento do processo, contanto que antes da decisão.

É o que se extrai das ementas e trecho de voto que se seguem:

HABEAS CORPUS. DIREITO PROCESSUAL PENAL. FORMAÇÃO DE QUADRILHA. CRIMES CONTRA AS RELAÇÕES DE CONSUMO - CARTEL. MINISTÉRIO PÚBLICO. PROCEDIMENTO INVESTIGATÓRIO. PARTICIPAÇÃO DE MEMBRO DA INSTITUIÇÃO NA FASE INVESTIGATÓRIA. IMPOSSIBILIDADE E IMPEDIMENTO. INEXISTÊNCIA. DENÚNCIA. INÉPCIA. INOCORRÊNCIA.

1. É da natureza mesma da instituição do Ministério Público o poder investigatório.

2. "A participação de membro do Ministério Público na fase investigatória criminal não acarreta o seu impedimento ou suspeição para o oferecimento da denúncia." (Súmula do STJ, Enunciado nº 234).

3. A denúncia que se mostra ajustada ao artigo 41 do Código de Processo Penal, ensejando o pleno exercício da garantia constitucional da ampla defesa, não deve, nem pode, ser tida e havida como inepta.

4. Em faltando à Acusação Pública, tal como ordinariamente ocorre nos crimes plurissubjetivos, no ensejo do oferecimento da denúncia, elementos bastantes ao rigoroso atendimento do seu estatuto legal, é válida a imputação geral do fato-crime, sem a particularização das condutas dos agentes, co-autores e partícipes, até porque a lei processual penal admite que as suas omissões possam ser supridas a todo tempo antes da sentença final (Código de Processo Penal, artigo 569).

5. Ordem denegada.

(HC 35.592/PE, Relator Ministro Hamilton Carvalhido, in DJe 04/08/2008)

In casu, o crime imputado aos pacientes, qual seja, a formação de quadrilha e de cartel, plurissubjetivos que são, necessariamente, tornam dificultosa a individualização da conduta de todos os agentes com a riqueza de detalhes que exige o artigo 41 do Código de Processo Penal, mormente em casos tais como o dos autos, em que foram denunciados nada menos do que noventa acusados.

(HC 35.592/PE, Voto do Relator Ministro Hamilton Carvalhido, fl. 19, in DJe 04/08/2008)

"HABEAS CORPUS. DENUNCIA. INEPCIA. CRIMES SOCIETARIOS. PRISÃO PREVENTIVA. MOTIVAÇÃO. FUGA.

1. Não há que se falar em inépcia da denuncia por falta de rigor em detalhar as condutas individuais dos envolvidos, pois, admite a jurisprudência, nos chamados crimes coletivos ou societários, como suficiente a mera descrição genérica, calcada, todavia, em fatos, com remessa da eventual pormenorização para a instrução criminal.

2. A fuga ou a sua real possibilidade, principalmente em casos de crimes perpetrados em locais próximos a fronteira, pode de forma valida, embasar a prisão preventiva, fundada na garantia da aplicação da lei penal. Não se trata, como pode parecer, de simples invocação "in abstracto", dado, inclusive na espécie, a condição de piloto de um dos envolvidos.

3. Ordem negada.”

(HC 6.077/AM, Relator Ministro Fernando Gonçalves, in DJ 20/10/1197)

Dessa forma, verifica-se que há certa dificuldade de adaptação de preceitos tradicionais do Direito Penal aos crimes organizados, como a perfeita individualização da conduta, principalmente em relação ao crime de cartel. Neste, os organizadores e os verdadeiros responsáveis pelo ilícito estão, na maioria das vezes, ocultos no processo causal.

Não obstante a isso e embora haja o entendimento de ser desnecessário individualizar as condutas no crime de cartel, identificar os verdadeiros agentes criminosos ocultos e distingui-los dos meros partícipes são tarefas essenciais, em vista não somente das garantias constitucionais do indivíduo, que ao começar a ser investigado já se torna paciente de uma sanção social, mas também dos preceitos de legalidade e proporcionalidade.


IV. Posicionamento acerca das teorias para a sanção de pessoas físicas autoras e partícipes nos ilícitos anticoncorrenciais

Nos ilícitos plurissubjetivos anticoncorrenciais, entende-se como adequada a utilização de um conceito aberto de autor, a partir da teoria do domínio do fato de Claus Roxin, que desenvolve conceitos como o da autoria mediata através do domínio da organização. Essa linha de raciocínio é substancialmente superior ao conceito extensivo de autor e à teoria subjetiva da participação.

Tal se justificada porque, por um lado, o conceito extensivo de autor, segundo Bitencourt, tem como fundamento dogmático a idéia da teoria da equivalência das condições[2]. Essa teoria não distingue autoria de participação: é autor todo aquele que, de certa forma, contribui para o resultado, podendo ser instigador ou cúmplice. Adota como preceitos especiais da participação apenas causas de restrição ou limitação da punibilidade, cumprindo a teoria subjetiva da participação um papel complementar necessário para caracterização do partícipe.

Por outro lado, a adoção da teoria extensiva, stricto sensu, poderia levar à despropositada investigação de um número imenso de agentes que apenas contribuíram secundariamente à prática ilícita. Além de injusta, a inclusão de todos aqueles que contribuíram para o crime causaria certamente um embaraço insolúvel ao prosseguimento das investigações e à punibilidade dos verdadeiros agentes infratores, já que a responsabilidade de muitos pode levar à punibilidade de ninguém.

Já no que concerne, primeiramente, à teoria subjetiva, autor é quem realiza uma contribuição causal ao fato, seja qual for seu conteúdo, com animus auctoris, enquanto o partícipe quer o fato como alheio, agindo com animus socii. Os problemas da distinção puramente subjetiva entre autoria e participação são evidentes: recorre-se apenas à vontade do autor para verificar se o sujeito quis ou não o fato como próprio. De fato, não é possível definir a autoria unicamente com recursos eminentemente psicológicos. A vontade do autor sempre acaba por ser delimitada através do comportamento ao qual ela se dirige. Assim, segundo Arthur Pinto de Lemos Junior, é forçoso, pois, reconhecer a imprescindibilidade de se recorrer aos elementos objetivos do fato, já que o animus auctoris não é uma determinante suficiente[3].

Quanto à teoria do domínio do fato, surgida em 1939, com o finalismo de Welzel, são abarcados aspectos objetivos e subjetivos para fundamentar a essência da autoria e fazer a delimitação correta entre autoria e participação. Partindo do conceito restritivo de autoria, a teoria do domínio do fato defende que autor é quem tem o poder de decisão sobre a realização do fato. É autor não só o agente que executa a ação típica, como também aquele que se utiliza de outrem como instrumento para a execução da infração (autoria mediata). De acordo com Jescheck, não só a vontade de realização resulta decisiva para a autoria, mas também a importância material da parte que cada interveniente assume no fato.

Segundo Carlos Roberto Bitencourt, a teoria do domínio do fato tem as seguintes conseqüências:

i.  A realização pessoal e plenamente responsável de todos os elementos do tipo fundamentam sempre a autoria;

ii.  É autor quem executa o fato utilizando a outrem como instrumento  (autoria mediata);

iii.  É autor o co-autor que realiza uma parte necessária do plano global ("domínio funcional do fato"), embora não seja um fato típico, desde que integre a resolução delitiva comum.

Assim, a participação de todos os co-autores na prática do comportamento típico não exige que todos atuem na fase executiva, mas deve haver por parte dos intervenientes a vontade comum de dominar o fato e a anuência à decisão comum. Cada interveniente deve contribuir com uma parte do plano acordado, de forma que cada contributo se apresente como intervenção essencial para o sucesso da resolução comum.

É exatamente com fundamente no domínio funcional que a cada um dos co-autores é imputada como própria a infração praticada pelos demais agentes. Como já citado, as contribuições individuais completam-se de tal forma unitária que, diversas vezes, torna-se quase impossível a individualização das condutas e o resultado total deve ser imputado a todos os agentes. As intervenções conscientes e necessárias, fora do risco permitido (segundo a teoria da imputação objetiva), fazem do co-autor um verdadeiro autor.

Seguindo Köstlin, quem somente realiza atos preparatórios ou de ajuda é co-autor, na medida em que é co-portador da decisão comum do fato. Por isso, a participação deve ser especialmente comprovada através da decisão do delito, e para tanto, deve levar-se em conta, como indícios, todas as circunstâncias objetivas e subjetivas do fato. Também, desde que as atuações dos intervenientes sigam um plano comum de atuação, no qual se estabelece uma divisão de trabalho, e o fato seja efetivamente praticado conforme o anterior acordo prévio, quem apenas organiza ou planeja a prática delituosa terá o domínio do fato e será co-autor.

Situação distinta é a que ocorre com o partícipe. Semelhantemente ao autor, o partícipe possui a potencial consciência de participar da ação principal, prestando livre anuência ao resultado através da sua conduta que possui necessariamente eficácia causal. No entanto, ele não contribui essencialmente para realização da prática delitiva. O partícipe não pratica a conduta nuclear, mas mera conduta secundária, não propriamente executiva. De modo geral, ele possui duas formas de participação: a instigação e a cumplicidade. A instigação é uma contribuição moral do indivíduo para a formação da vontade do autor, e a cumplicidade é quando o partícipe, de fato, participa materialmente da preparação do crime até a fase executória.

Cabe ressaltar que se tratando de uma organização criminosa, o chefe e o organizador do plano criminoso geralmente não atuam na execução material do crime, distinguindo sua conduta do autêntico co-autor, como verificado em muitos casos de formação de cartel analisados pelo CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). Não obstante a isso, não é razoável enquadrar os verdadeiros chefes do crime como meros partícipes. Limitar o conceito de autor somente àquele que executa o delito é inadequado segundo a teoria do domínio do fato. Os chefes do bando devem ser definidos como co-autores na medida em que seus domínios da fase de preparação sejam atualizados durante a execução do fato ilícito. Por sua vez, os executores só devem ser definidos como co-autores com os chefes organizacionais quando tenha ocorrido um acordo entre eles ou quando o executor possuía meios suficientes para identificar a ordem executiva como ilegal.

  Para fins exemplificativos, podemos imaginar um dirigente ou órgão diretivo de uma grande sociedade empresária que decide realizar algum fato delituoso sem intervir na execução, mas tampouco induz ao erro seu funcionário, já que se assim fosse, tratar-se-ia de autoria ou co-autoria mediatas. Dessa forma, cumpre identificar o "autor atrás do autor" porque, em geral, os crimes cometidos no âmbito empresarial respeitam a estrutura e a forma de trabalho hierárquica. Como já exposto, diversas vezes há irrelevância das ações executivas já que diversas condutas são corriqueiras e, em si, penalmente irrelevantes, assumindo significado ilícito apenas em um determinado contexto, no qual seja possível identificar a ilicitude, ou na medida em que formam parte de um plano conjunto de decisão criminal. É exatamente por isso que em muitos casos o executor material se constitui num personagem secundário, sem capacidade de decisão e inclusive sem consciência clara da relevância penal de seu comportamento.

Dessa forma, novamente, apesar de se ter ressaltado a desnecessidade de individualização perfeita da conduta de cada agente em crimes plurissubjetivos, deve-se buscar a imputação de penas de cima para baixo, a partir da análise do material probatório. Ou seja, deve-se responsabilizar com prioridade aquele que desenha burocraticamente o plano criminoso e que se constitui o verdadeiro responsável.

Cabe ressaltar que a teoria do domínio do fato nem sempre fornece respostas satisfatórias, principalmente quando não há um material probatório robusto da participação dos verdadeiros mentores, quais sejam os administradores das sociedades empresárias nas condutas lesivas à livre concorrência. Como forma de complementação, temos a responsabilização daqueles em posição de garante.

A jurisprudência brasileira, bem como a alemã, portuguesa e espanhola, admite como teoria subsidiária a que trata do dever jurídico de garante dos administradores estabelecidos como tais nos estatutos sociais das empresas ou que tenham cargos relacionados à produção do ilícito:

“A autoria delitiva, por sua vez, é incontroversa. Conforme apurado em sede administrativa (fls. 1428 do procedimento administrativo), compareceram na reunião com a SEAE os diretores comerciais de cada uma das usinas, quais sejam, [...], este último ocupando o cargo de superintendente de preços e suprindo a ausência do diretor comercial da CSN. Sendo responsáveis pela política de preços, estratégias de vendas e ocupação de mercado das empresas, certamente também o são pela concertação que antecedeu e deu causa ao encontro que tornou pública a intenção do reajuste. Sua responsabilidade confirma-se pela estrutura organizacional das empresas à época dos fatos (fls. 1178/1220 do processo administrativo), a qual lhes atribuía papel fundamental no estabelecimento das políticas de venda e de relacionamento com os concorrentes.

Já com relação aos diretores presidentes das usinas, são eles os responsáveis legais por todos os atos praticados pelas pessoas jurídicas que presidiam e a quem se reportavam todos os demais diretores, a eles diretamente subordinados, sendo certa sua participação na definição da política de preços praticada pelas empresas”.

(Manifestação nº. 14.663 do MPF no HC 108.695/SP. Ministro Relator Joaquim Barbosa)

ECONÔMICA. LEI N.º 8.137/90, ART. 4º. PRÁTICA DE CARTEL. AUTORIA DELITIVA. INÉPCIA DA DENÚNCIA. RESPONSABILIDADE CRIMINAL OBJETIVA. ORDEM DENEGADA.

1. A denúncia atribui aos pacientes conduta típica, prevista no art. 4º, inciso I, alínea “a”, da Lei n.º 8.137/90.

2. Não consagra a responsabilidade penal objetiva e tampouco é inepta a denúncia que descreve o crime tipificado no art. 4º, inciso I, alínea “a”, da Lei n.º 8.137/90, imputando sua prática aos diretores de empresas siderúrgicas que, respondendo pelas respectivas políticas de preços, teriam concertado reajuste simultâneo e semelhante, abusando do poder econômico.

3. Ordem denegada.

(HC 64344 SP 2007.03.00.064344-4. Relator Desembargador Federal Nelton dos Santos. Julgamento: 04/09/2007. Órgão Julgador: Segunda Turma. TRF 3ª Região)


V. Conclusão

Ao término desse artigo, não se defende, pois, a imputação de responsabilidade objetiva aos dirigentes das sociedades empresárias. Trata-se tão somente que a teoria do domínio do fato seja complementada com o raciocínio adotado pelo Código Penal, que ao tratar dos crimes omissivos impróprios em seu artigo 13, §2º, elencou os indivíduos em posição de garante.

Dessa forma, ainda que não se vislumbre material probatório robusto da atuação dos chefes empresariais na prática da conduta lesiva à livre concorrência, a omissão destes é administrativamente relevante quando aqueles deveriam e podiam agir para evitar o ilícito: de forma análoga ao CP, o dever de agir incumbe a quem, a partir do estatuto social da empresa, possui dever de cuidado, proteção ou vigilância para que tais atos não ocorressem, bem como incumbe àqueles que, ao assumir um cargo de chefia, assumiu a responsabilidade lógica de evitar tais práticas.

Apenas com esse tipo de interpretação dos ilícitos societários é que, de fato, poder-se-á dar concretude àquilo disposto no artigo 170 da Constituição Federal de 1988, que determina que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observado o princípio da livre concorrência. A defesa de tal exegese é imprescindível para a defesa da ordem econômica, dos consumidores e da própria possibilidade de desenvolvimento econômico do Estado brasileiro.


Bibliografia

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. Vol. 1. 13ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

LEMOS JÚNIOR, Arthur Pinto de. Crime organizado: uma visão dogmática do concurso de pessoas. Porto Alegre : Verbo Jurídico, 2012.

MIRABETE, Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal - Parte Geral - Volume I. São Paulo: Atlas, 2ª Ed.


Notas

[1] Mirabete, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal - Parte Geral- Volume I. São Paulo: Atlas, 2ª Ed. 1986, p.223.

[2] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. Vol. 1. 13ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 195 e ss.

[3] LEMOS JÚNIOR, Arthur Pinto de. Criem organizado: uma visão dogmática do concurso de pessoas. Porto Alegre : Verbo Jurídico, 2012. p. 253 e ss. 

Sobre os autores
Amanda Bertolin

Graduanda em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (CEUB). Ex- estagiária da Procuradoria Federal especializada junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).

André Molinar Veloso

Graduando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Estagiário de Direito do Ministério Público Federal, Procuradoria da República no Distrito Federal.

Jéssica Maria Sabino Guedes

Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília. Estagiária da Procuradoria Federal especializada junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).

Victória Albuquerque

Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília. Ex-estagiária da Procuradoria Federal especializada junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).

Rosa Carolina Teixeira

Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília. Estagiária da Procuradoria Federal especializada junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BERTOLIN, Amanda; VELOSO, André Molinar et al. Punição das pessoas físicas, autoras e partícipes, nos ilícitos plurissubjetivos anticoncorrenciais.: Uma visão à luz do Direito Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3516, 15 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23727. Acesso em: 22 dez. 2024.

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