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Para uma teoria do Estado pós-moderno: a razão política no entendimento do Direito

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Agenda 23/02/2013 às 14:05

6. A Ciência Social Moderna

Durkheim e o Direito como Fato Social

Com sua concepção/teoria do Direito como Fato Social, Durkheim teria antecipado as principais implicações e/ou efeitos práticos do Estado Jurídico41? Teria sido um continuador da perspectiva de Max Weber ao propor as bases do Estado de Direito, a partir da dominação racional-legal (legítima), interposta por meio do império da lei? Ou não há nenhuma relação? Vejamos, para o próprio Durkheim, como se constituem os efeitos do denominado fato social42:

“É fato social toda maneira de agir fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou então ainda, que é geral na extensão de uma sociedade dada, apresentando uma existência própria, independente das manifestações individuais que possa ter” (Durkheim, 1988, p. 52).

Acerca da coerção inerente ao Direito, dirá Reale que pode se tratar de pressão social condicionada, que é preciso boa dose de razoabilidade ou, simplesmente, que a coação potencial não é totalmente satisfatória: “Podemos dizer que o pensamento jurídico contemporâneo, com mais profundeza, não se contenta nem mesmo com o conceito de coação potencial, procurando penetrar mais adentro na experiência jurídica, para descobrir a nota distintiva essencial do Direito. Esta é a nosso ver a bilateralidade atributiva” (Reale, 2005, p. 50). Agora, quando é que verificamos a própria bilateralidade? Reale retoma toda a tradição jurídica para acentuar seu conceito, mas vamos direto ao ponto: “[...] há bilateralidade atributiva quando duas pessoas43 se relacionam segundo uma proporção objetiva que as autoriza a pretender ou a fazer garantidamente algo. Quando um fato social apresenta esse tipo de relacionamento dizemos que ele é jurídico” (Reale, 2005, p. 51).

Ou ainda, mais uma vez: “Bilateralidade atributiva é, pois, uma proporção intersubjetiva44, em função da qual os sujeitos de uma relação ficam autorizados a pretender, exigir, ou a fazer, garantidamente, algo” (Reale, 2005, p. 51). Assim, vimos como se estabelece um plano linear entre dois sujeitos de direitos, porém, deve-se frisar que este plano em si não é suficiente para caracterizar o direito como fato social, pois falta-lhe a condição de ser geral: componente que, talvez, se esgote melhor nas alegações sobre as chamadas normas gerais e abstratas45. Esta condição que também estaria mais próxima do efeito erga omnes, e a isso Reale irá acentuar como o necessário entrelaçamento de duas ou mais pessoas: “a) sem relação que una duas ou mais pessoas não há Direito (bilateralidade em sentido social, como intersubjetividade) (Reale, 2005, p. 51)” 46. Também vemos em Reale o liame entre objetividade e intersubjetividade na definição do Direito:

b) para que haja Direito é indispensável que a relação entre os sujeitos seja objetiva, isto é, insuscetível de ser reduzida, unilateralmente, a qualquer dos sujeitos da relação (bilateralidade em sentido axiológico); [...] c) da proporção estabelecida deve resultar a atribuição garantida de uma pretensão ou ação, que podem se limitar aos sujeitos da relação ou estender-se a terceiros (atributividade) (Reale, 2005, p. 51).

E mesmo o Estado deverá pautar-se pela relação de bilateralidade, no sentido de que suas implicações também atingiriam este chamado Estado Jurídico:

Dir-se-á que nesta espécie de normas não há nem proporção, nem atributividade, mas é preciso não empregar aquelas palavras em sentido contratualista47. Na realidade, quando se institui um órgão do Estado ou mesmo uma sociedade particular, é inerente ao ato de organização a atribuição de competências para que os agentes ou representantes do órgão possam agir segundo o quadro objetivo48 configurado na lei. Há, por conseguinte, sempre proporção e atributividade (Reale, 2005, p. 52).

Nos direitos difusos (art. 81, parágrafo único, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor), o efeito da coisa julgada nas ações coletivas será erga omnes (art. 103, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor), isto é, valerá para todas as pessoas se a ação for julgada procedente ou improcedente pela análise de mérito com provas produzidas adequadamente. Na hipótese de procedência da ação, todos os consumidores se beneficiarão da sentença definitiva, inclusive para mover ações individuais. No caso de improcedência, há impedimento para a propositura de nova ação coletiva, mas não ficará impedido aquele que ajuizar ações individuais. Conforme definição jurídica, erga omnes significa: “Perante todos. Ato, lei ou decisão que a todos obriga ou é oponível contra todos ou sobre todos tem efeito” (PAULO, 2002, p.127). Também se define como locução latina que se traduz:

Contra todos, a respeito de todos ou em relação a todos. É indicativa dos efeitos em relação a terceiros,de todos os atos jurídicos ou negócios jurídicos a que se atenderam todas as prescrições legais, em virtude do que a ninguém é licito contrariá-los ou feri-los. Aplica-se indistintamente ao direito subjetivo e ao direito alheio (neminem laedere), desde que a norma jurídica assegura aos respectivos titulares uso, gozo e posse, em relação a todas as demais pessoas (erga omnes), contra quem possam valer. (DE PLÁCIDO, 2002, p. 312).

Para Bobbio, no entanto, mesmo as referidas condições de generalidade e de abstração devem ser diferenciadas, bem como veremos que se trata de mera criação ideológica:

[...] julgamos oportuno chamar de “gerais” as normas que são universais em relação aos destinatários, e “abstratas” aquelas que são universais em relação à ação. Assim, aconselhamos falar em normas gerais quando nos encontramos frente a normas que se dirigem a uma classe de pessoas, e em normas que regulam uma ação-tipo (ou uma classe de ações) (Bobbio, 2005, pp. 180-181).

Estas condições de generalidade e de abstração, como dissemos, por sua vez, são apenas implicações ideológico-ideais e inerentes ao próprio Estado de Direito:

Se refletirmos sobre a quanto tenha inspirado a moderna concepção do Estado de direito à ideologia da igualdade e da certeza frente à lei, não será mais difícil dar-se conta do estreitíssimo nexo intercorrente entre teoria e ideologia, e compreender, portanto, o valor ideológico da teoria da generalidade e abstração, que tende não a descrever o ordenamento jurídico real, mas a prescrever regras para tornar o ordenamento jurídico ótimo, aquele em que todas as normas fossem em seu conjunto gerais e abstratas (Bobbio, 2005, p. 183).

Em concepção também baseada em Bobbio (2005), diz Celso Antonio Bandeira de Mello que a norma geral se refere a uma classe de sujeitos:

Generalidade opõe-se a individualização, que sucede toda vez que se volta para um único sujeito, particularizadamente, caso em que se deve nominá-la lei individual [...] a regra geral, isto é, dotada de teor de generalidade, apanha toda uma classe de indivíduos. Pode alcançá-los quer no presente, quer no futuro. Por isso, nada obsta que — sem prejuízo de sua generalidade — eventualmente colha, no presente, apenas um indivíduo e os demais, alojáveis na categoria, venham a existir somente no futuro (Mello, 2005, pp. 26-7).

O Direito como fato social, portanto, ao mesmo tempo em que expressa o chamado Estado-força49, revela a ideologia integradora que há por trás do Estado de Direito. Uma condição ideológica/idealista que, por sua vez, deverá ter um pouco mais de materialidade no Estado Jurídico – uma materialidade em dois sentidos: a) a materialidade ou a objetividade50 (jurídica) expressa no maior grau de juridicidade; b) a sociedade civil organizada (não-estatal ou estandartizada) é fonte de enorme demanda jurídica, de pressão social e, assim, exerce controle sobre o Poder Político. A exigência social de novos direitos impõe (obviamente) ao Estado a contenção de certas ações políticas – neste sentido, a soberania estatal, historicamente51, sempre foi controlada, impulsionada pela soberania popular (a fonte da principal demanda dos novos direitos). Quanto ao Direito como realidade da Coerção, e que corresponde à primeira parte da observação feita por Durkheim, em sua clássica definição de fato social, Reale ainda nos lembra da teoria de Ihering — o pensador originário deste binômio Direito/Coerção:

Para Ihering, um dos maiores jurisconsultos do passado milênio, o Direito se reduz a “norma + coação”, no que era seguido, com entusiasmo, por Tobias Barreto, ao defini-lo como “a organização da força”. Ficou famoso o seu temerário confronto do direito à “bucha do canhão”, o que se deve atribuir aos ímpetos polêmicos que arrebatavam aquele grande espírito (Reale, 2005, p. 47).

Então, vejamos o próprio Ihering (2002) quando se refere ao binômio:

O fim do direito é a paz, o meio de que se serve para consegui-lo é a luta. Enquanto o direito estiver sujeito às ameaças da injustiça — e isso perdurará enquanto o mundo for mundo —, ele não poderá prescindir da luta. A vida do direito é a luta: a luta dos povos, dos governos, das classes sociais, dos indivíduos [...] O direito não é uma simples ideia, é uma força viva. Por isso a justiça sustenta numa das mãos a balança com que pesa o direito, enquanto na outra segura a espada por meio da qual o defende. A espada sem a balança é a força bruta, a balança sem a espada, a impotência do direito. Uma completa a outra, e o verdadeiro estado de direito só pode existir quando a justiça sabe brandir a espada com a mesma habilidade com que manipula a balança (Ihering, 2002, p. 27).

A luta e a defesa pelo Direito, ações típicas e próprias da passagem do Estado de Direito Formal ao Estado Jurídico, encontra-se em meio à tempestade social e não de acordo com a calmaria da dogmática jurídica, e ainda que tenhamos de ter sempre em conta essa característica ideal/contratualista que ainda dá suporte aos ideais de Justiça e de Direito:

A lei é igual para todos”, é, indubitavelmente, a generalidade da norma, isto é, o fato de que a norma se dirija não àquele ou a este cidadão, mas à totalidade dos cidadãos, ou então a um tipo abstrato de operador na vida social. Quanto à descrição abstrata, ela é considerada como a única capaz de realizar um outro fim a que tende todo ordenamento civil: a certeza. Por “certeza” se entende a determinação, de uma vez por todas, dos efeitos que o ordenamento jurídico atribui a um dado comportamento, de modo que o cidadão esteja em grau de saber, com antecedência, as conseqüências das próprias ações (Bobbio, 2005, p. 182).

Neste caso, trata-se da principal garantia da máxima que se desejaria fosse o fundamento do nosso ordenamento jurídico.

Marx e o Realismo da Modernidade

Quando todo o mundo é corcunda,

O belo porte torna-se a monstruosidade.

Honoré de Balzac

Karl Marx (1818 — 1883): Quando Marx cita o Fausto (de Goethe) e, depois, quando resume o mundo moderno em tudo que é sólido, desmancha no ar, são duas indicações simples, mas diretas da força de sua projeção sobre a modernidade. As duas torres gêmeas, no 11/09, vindo ao chão, desmanchando-se literalmente, são duas visões dessa hiper-realidade moderna de Marx. O materialismo histórico e seus temas decorrentes seguiram Marx por toda a vida, sendo os principais:

  1. Autocriação: a razão universal retrata o pensamento do trabalho humano. “O primeiro ato histórico”.

  2. Alienação: um fenômeno histórico aprimorado pelo capitalismo. Mas é um conceito de filosofia abstrata, por isso abandona o conceito.

  3. Abolição do Estado.

  4. Práxis: união entre teoria e prática. Há reciprocidade constante entre consciência e prática social. As ideias não são mero reflexo da realidade material, há também uma modificação do mundo objetivo pela subjetividade: a militância e a consciência revolucionária são provas disso. As circunstâncias são alteradas pelo homem: o educador tem de ser educado.

O materialismo histórico parte da premissa de que o homem precisa se realizar continuamente: “Para Marx, a história é um processo de criação, satisfação e recriação contínuas das necessidades humanas. É isso que distingue o homem dos animais, cujas necessidades são fixas e imutáveis. É por essa razão que o trabalho, o intercâmbio criador entre os homens e o seu ambiente natural, está na base da sociedade humana” (Giddens, 2005, p. 53). O hiper-realismo de Marx decorre da proposição moderna de que o mundo deveria ser visto pelo realismo: “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência”. A modernidade exigia que se mudasse a sua realidade, que não fosse apenas interpretada. O projeto da modernidade tem dois pólos: o Iluminismo, anterior e o comunismo posterior; o Iluminismo, propriamente idealista e o comunismo, utópico-revolucionário. O progresso social, econômico, tecnológico (e que desemboca na modernidade) decorre da alteração das relações sociais de produção, isto é, o modo como se organiza o trabalho a cada fase distinta da história. Conforme resumo do próprio Marx, as principais etapas de desenvolvimento dos modos de produção são: “Em um caráter amplo, os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês moderno podem ser qualificados como épocas progressivas da formação econômica da sociedade” (Marx, 2003, p. 06). Ou, seguindo-se um resumo mais amplo e detalhado de Engels:

A concepção materialista da história parte da tese de que a produção, e com ela a troca dos produtos, é à base de toda a ordem social; de que em todas as sociedades que desfilam pela história, a distribuição dos produtos, e juntamente com ela a divisão social dos homens em classes ou camadas, é determinada pelo que a sociedade produz e como produz e pelo modo de trocar os seus produtos. De conformidade com isso, as causas profundas de todas as transformações sociais e de todas as revoluções políticas não devem ser procuradas nas cabeças dos homens nem na ideia que eles façam da verdade eterna ou da eterna justiça, mas nas transformações operadas no modo de produção e de troca: devem ser procuradas não na filosofia, mas na economia da época de que se trata. Quando nasce nos homens a consciência de que as instituições sociais vigentes são irracionais e injustas, de que a razão se converteu em insensatez e a benção em praga, isso não é mais que um indício de que nos métodos de produção e nas formas de distribuição produziram silenciosamente transformações com as quais já não concorda a ordem social, talhada segundo o padrão de condições econômicas anteriores. E assim já está dito que nas novas relações de produção têm forçosamente que conter-se – mais ou menos desenvolvido – os meios necessários para por fim aos males descobertos. E esses meios não devem ser tirados da cabeça de ninguém, mas a cabeça é que tem de descobri-los nos fatos materiais da produção, tal e qual a realidade os oferece (Engels, s/d, p. 49. – grifos nossos).

A transformação das relações sociais de produção da vida social, portanto, implica na mudança das condições reais, materiais em que a vida social está aportada: “As relações sociais de produção (i.é, organização social no mais lato dos sentidos) e as forças produtivas materiais (a cujo nível aquelas correspondem) não podem ser separadas [...] ‘A estrutura econômica da sociedade é formada pela totalidade dessas relações de produção” (Hobsbawm, 1991, p. 16). Ou como diz o próprio Marx no famoso Prefácio:

Na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral [...] A transformação da base econômica altera, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura. Ao considerar tais alterações é necessário sempre distinguir entre alteração material – que se pode comprovar de maneira cientificamente rigorosa – das condições econômicas de produção, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito, levando-o às suas últimas consequências (Marx, 2003, p. 05).

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A divisão social do trabalho inicial, além de elevar a produção (excedente), permitia a constituição de outra forma de trabalho: o trabalho intelectual. Se havia excedente, nem todos precisavam se dedicar à produção dos insumos propriamente materiais da vida social, e ao que se segue que alguns poderiam se dedicar tanto à política, quanto à religião, às artes ou à filosofia. De certo modo, o mundo grego externou bem essa passagem da nossa história política, bem como das origens e da evolução do trabalho intelectual. Também não há exagero em se dizer que o homem é social por necessidade, a necessidade da sobrevivência52, e que isto não se dá por alguma condição inata ou excepcional que o conduz a tanto. Quanto à ideologia em si mesma ou quanto à determinação do lugar, da posição das ideias no mundo real, não há passagem mais clara do que esta outra do Prefácio. Portanto, fora disso, todo o conjunto restante de ideias é pura ideologia ou simplesmente abstração das condições reais de existência. Do passado para o presente, o homem primeiro cria as mais simples condições de sobrevivência, e com o passar do tempo é que transforma os meios de vida em meios de produção. Da produção individual da vida à produção da vida social: esta pode ser a história dos meios de produção, mas vejamos do início, quando o que importa é apenas sobreviver. A partir das condições naturais é que o homem produzirá seu primeiro ato histórico, e é interessante frisar como este ato social é decorrente de nossa maior investida sobre o mundo natural. Esse dado ainda revela ao homem uma posição de interventor na vida social, antes mesmo de qualquer presunção de que deva manifestar uma determinada ordem jurídica ou política, isto é, a vida social precede à política, ao Estado, à religião, à própria noção de ordem e de regramento social.

Assim, a moral, a religião, a metafísica e todo o restante da ideologia, bem como as formas de consciência a elas correspondentes, perdem logo toda a aparência de autonomia. Não têm história, não têm desenvolvimento; ao contrário, são os homens que, desenvolvendo sua produção material e suas relações materiais, transformam, com a realidade que lhes é própria, seu pensamento e também os produtos do pensamento. Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência (Marx, 2002, pp. 19-20).

De modo mais preciso, o primeiro ato histórico da humanidade fez elidir, suprimiu a ideia de uma representação sem base material, ou seja, no materialismo, prevalece a análise dos elementos de formação da vida social e não das formas de representação política ou religiosa53:

A primeira condição de toda história humana é, naturalmente, a existência de seres humanos vivos. A primeira situação a constatar é, portanto, a constituição corporal desses indivíduos e as relações que ela gera entre eles e o restante da natureza [...] Mas, para viver, é preciso antes de tudo beber, comer, morar, vestir-se e algumas outras coisas mais. O primeiro fato histórico é, portanto, a produção dos meios que permitem satisfazer essas necessidades, a produção da própria vida material; e isso mesmo constitui um fato histórico, uma condição fundamental de toda a história que se deve, ainda hoje como há milhares de anos, preencher dia a dia, hora a hora, simplesmente para manter os homens com vida [...] O segundo ponto a examinar é que uma vez satisfeita à primeira necessidade, a ação de satisfazê-la e o instrumento já adquirido com essa satisfação levam a novas necessidades — e essa produção de novas necessidades é o primeiro ato histórico [...] A terceira relação, que intervém no desenvolvimento histórico, é que os homens, que renovam a cada dia sua própria vida, passam a criar outros homens, a se reproduzir. É a relação entre homem e mulher, pais e filhos, é a família [...] Produzir a vida, tanto a sua própria vida pelo trabalho, quanto à dos outros pela procriação, nos parece portanto, a partir de agora, como uma dupla relação: por um lado como uma relação natural, por outro como uma relação social — social no sentido em que se entende com isso a ação conjugada de vários indivíduos, sejam quais forem suas condições, forma e objetivos (Marx, 2002, pp. 10-21-22-23).

O primeiro ato histórico, portanto, é social e só muito tempo depois é que será político – e bem após esta fase é que se poderá dizer que algumas relações sociais também seriam relações jurídicas. Enfim, as três fases da vida social podem ser assim resumidas: produção das condições básicas de subsistência; produção de novas necessidades (como por exemplo, buscar novos instrumentos ou técnicas); reprodução do núcleo social, da família. Por que Marx destacaria uma frase aparentemente óbvia como esta: A primeira condição de toda história humana é, naturalmente, a existência de seres humanos vivos. Porque daí se subentende mais claramente porque não há humano abstrato. Ou seja, mesmo a espécie humana é analisada de acordo com o período histórico e diante das condições objetivas de reprodução material das formas de vida social. Neste sentido, também se vê que tanto a política quanto o Estado não são formas autônomas de representação social, devendo ser analisadas articuladamente com as formas sociais que predominam em determinado período e contexto histórico (sociedade civil): “Ao contrário, é a sociedade civil que cria o Estado. A sociedade civil é o verdadeiro lar e cenário da história. Abarca todo o intercâmbio material entre os indivíduos, numa determinada fase do desenvolvimento das forças produtivas” (Gorender, 2002, p. xxxi). Deve-se notar que se repete o uso das determinações, como em indivíduos e relações determinadas, justamente para se dissolver toda ideia geral, que possa aparecer como fora da história ou que esteja ausente de história e de sua materialidade. Assim, sempre serão relações sociais determinadas pelo contexto e pelas condições materiais gerais: não há nada, nem ninguém fora das determinações históricas.

Essas premissas são os homens, não os homens isolados e definidos de algum modo imaginário, mas envolvidos em seu processo de desenvolvimento real em determinadas condições, desenvolvimento esse empiricamente visível [...] É aí que termina a especulação, é na vida real que começa portanto a ciência real, positiva, a análise da atividade prática, do processo, do desenvolvimento prático dos homens (Marx, 2002, p. 20).

A história política que nos interessa, portanto, não é a história do Estado Ideal, mas sim a das condições reais sobre as quais o Estado está assentado. Desse ponto de vista, não há teleologia, mas sim desenvolvimento histórico do Estado, tal qual devemos perguntar pelo desenvolvimento prático dos homens. Sob a era do capitalismo, o próprio modo de produção capitalista conhecerá fases subsequentes de desenvolvimento, com a intensa e imensa transformação das bases materiais de produção — é como se fosse um capitalismo dentro do capitalismo, tal a sensação provocada de que muitas fases novas transformam e se sucedem progressivamente, impositivamente. E isso já está no jovem Marx, do Manifesto do Partido Comunista:

A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção e, por conseguinte, as relações de produção, portanto todo o conjunto das relações sociais [...] O contínuo revolucionamento (Umwälzung) da produção, o abalo constante de todas as condições sociais, a incerteza e a agitação eternas distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Todas as relações fixas e cristalizadas, com seu séquito de crenças e opiniões tornadas veneráveis pelo tempo, são dissolvidas, e as novas envelhecem antes mesmo de se consolidarem (Marx, 1993, p. 69).

Este contínuo processo de revolucionamento dos meios de produção implica que também as formas de consciência se alteram e se ajustam às novas condições reais de vida. A maneira de se ver a vida, muda conforme se modifica a própria vida — dito assim, é sem dúvida uma obviedade, mas é preciso entender o fluxo histórico em que essas mudanças se operam. Portanto, o homem como animal social tem uma longa história, ou seja, apresenta formas diferentes de se organizar ao longo do tempo. Essa capacidade de organização para o trabalho que produz a vida é que nos permite viver54. Por fim, essa atividade de organização se dá sobre as condições naturais que nos cercam, isto é, os homens também se tornam ainda mais sociáveis na medida em que mais e mais se transforme a natureza. A sociedade, com isto, também será o resultado de sua articulação e produção social, portanto, uma criação, uma artificialidade55, uma construção sobre as próprias condições naturais. Esse trabalho sobre a natureza é o que produz o homem e a sociedade, e por isso o trabalho é uma categoria central na afirmação do homem como ser social56. Se construir a sociedade é mudar a natureza, também podemos dizer que ao organizar esta dimensão social, o homem modifica a natureza e a si mesmo. Desse modo, evoluir é tornar-se cada vez mais social57, alterando-se e apropriando-se dos recursos ofertados pela natureza e, a essa altura, pela própria sociedade58. No início dessa história social, essa apropriação dos recursos será coletiva, comunal, e mesmo quando a propriedade se refira exclusivamente ao indivíduo, será para sua manutenção, para seu uso pessoal: não como hoje, na forma da propriedade privada. Ainda no início da organização social, nas primeiras comunidades, a capacidade de cooperação entre os homens os levaria a buscar identidade entre si, mas também diferenciação, pois percebendo as habilidades em destaque os homens começaram a buscar a divisão social do trabalho, aumentando a própria produção. Este excedente da produção que se origina da cooperação e da especialização do trabalho gera, por sua vez, a possibilidade da troca.

O homem – ou melhor, os homens – realizam trabalho, isto é, criam e reproduzem sua existência na prática diária, ao respirar, ao buscar alimento, abrigo, amor, etc. Fazem isto atuando na natureza, tirando da natureza (e, às vezes, transformando-a conscientemente) com este propósito. Esta interação entre o homem e a natureza é – e ao mesmo tempo produz – a evolução social. Retirar algo da natureza, ou determinar um tipo de uso para alguma parte da natureza (inclusive o próprio corpo) pode ser considerado e é o que acontece na linguagem comum, uma apropriação, que é, pois, originalmente, apenas um aspecto do trabalho. Isto se expressa no conceito de propriedade (que não deve ser, de forma alguma, identificado com a forma histórica específica da propriedade privada). No começo, diz Marx, “o relacionamento do trabalhador com as condições objetivas de seu trabalho é de propriedade; esta constitui a unidade natural do trabalho com seus pré-requisitos materiais” [...] Sendo um animal social, o homem desenvolve tanto a cooperação como uma divisão social do trabalho (isto é, especialização de funções) que não só é possibilitada pela produção de um excedente acima do que é necessário para manter o indivíduo e a comunidade da qual participa, mas também amplia as possibilidades adicionais de geração desse excedente. A existência deste excedente e da divisão social do trabalho torna possível a troca. Mas, inicialmente, tanto a produção como a troca têm, como finalidade, apenas o uso – isto é, a manutenção do produtor e de sua comunidade (Hobsbawm, 1991, p. 16).

Como vimos, qualquer forma de organização e de expressão política deriva dessa capacidade de organização do social; a política decorre do social. Qualquer mudança social também decorre dessa capacidade de modificarmos, ao longo da história, as próprias condições de organização e de produção do social (trabalho). Ou seja, a transformação social é mais do que vontade de se mudar a sociedade, é resultado das condições reais de possibilidade de transformação dos meios e dos recursos ofertados pela sociedade em determinado momento de sua história. Isto é progresso, na medida em que nos distancia da mera imposição das condições naturais, desse nosso desenvolvimento natural (não há desenvolvimento natural, mas tão-somente esse esforço social). Parte dessa alteração e do novo ajustamento implica em adequar-se à consciência da propriedade — pois é daí que provêm o arranjo necessário dos meios da vida e a consequente divisão social do trabalho.

Max Weber: uma vida acadêmica e política

Podemos encontrar pistas nos moldes familiares em que cresceu Weber, com dois pólos diferentes: o pietismo protestante da mãe e um pragmatismo político-profissional do pai. É provável que esse choque o tenha direcionado para a exploração da dimensão ética do cotidiano, permitindo-lhe observar uma noção de ética que inclui a responsabilidade individual e cotidiana. Uma ética diferente daquela que atribui tudo a um Estado ou a algum ente superior.

Weber terá, desde muito novo, uma vida pública incomum, distinta – uma duplicidade acadêmica e política: educação humanista apurada59. Na maioridade, já perto da morte, participou das discussões e da elaboração da conhecida Constituição de Weimar (1919), tida como um dos três pontos (documentos60) de sustentação do Estado Democrático de Direito: o modelo estatal predominante. Em síntese, para Weber, a sociologia é a ciência que objetiva compreender a atividade social pela interpretação, para depois explicar os efeitos dessa mesma atividade – ação social -, no contexto global das redes de relações sociais. Weber estará atento para os sentidos, para as próprias intenções sociaisos sentidos ocultos do chamado senso comum – que não estão ao alcance pleno e imediato de todos os envolvidos nas próprias relações sociais. Digamos que esta seja uma forma de se abordar um objeto social, especialmente quanto aos seus aspectos globais/gerais - e que estes seriam definidos como modelos típicos ideais.

Objetividade

Apenas as ideias de valor que dominam o investigador e uma época podem determinar o objeto do estudo e seus limites. Porque só é uma verdade científica aquilo que pretende ser válido para todos os que querem a verdade (Max Weber).

Comentário: A objetividade do mundo (a cultura) fala diretamente à subjetividade do autor (suas afinidades eletivas).

Modelos Típicos e ideais: Modernidade e Estado Racional

Os modelos ideais, no entanto, são constructos objetivos, nem puramente teóricos (livres do mundo) nem puramente sócio-culturais (livres do investigador: há uma competência no cotidiano que estimula a interação com o objeto):

A conceituação da Sociologia encontra seu material, como casos exemplares e essencialmente, ainda que não de modo exclusivo, nas realidades da ação consideradas também relevantes do ponto de vista da história [...] Em todos os casos, racionais como irracionais, ela se distância da realidade, servindo para o conhecimento desta da forma seguinte: mediante a indicação do grau de aproximação de um fenômeno histórico a um ou vários desses conceitos torna-se possível classificá-lo [quanto ao tipo]. O mesmo fenômeno histórico, por exemplo, pode ter, numa parte de seus componentes, caráter “feudal”, noutra parte, caráter “patrimonial”, numa terceira, “burocrático” e, numa quarta, “carismático”. Para que com estas palavras se exprima algo unívoco, a Sociologia, por sua vez, deve delinear tipos “puros” (“ideais”) dessas configurações, os quais mostram em si a unidade consequente de uma adequação de sentido mais plena possível, mas que, precisamente por isso, talvez sejam tão pouco frequentes na realidade quanto uma reação física calculada sob o pressuposto de um espaço absolutamente vazio. Somente dessa maneira, partindo do tipo puro (“ideal”), pode realizar-se uma casuística sociológica [...] Mas os conceitos construtivos da Sociologia são típico-ideais não apenas externa como também internamente. A ação real sucede, na maioria dos casos, em surda semiconsciência ou inconsciência de seu “sentido visado”. O agente mais o “sente”, de forma indeterminada, do que sabe ou tem “clara” ideia dele [...] Mas isto não deve impedir que a Sociologia construa seus conceitos mediante a classificação do possível “sentido subjetivo”, isto é, como se a ação, seu decorrer real, se orientasse conscientemente por um sentido (Weber, 2004, pp. 12-13).

Toda ação acaba sendo comparada a um tipo ideal:

Esse modelo distinto envolve seis processos sociais e culturais fundamentais e largamente ramificados: 1. O desencanto e a intelectualização do mundo, e a resultante tendência a ver o mundo como um mecanismo causal sujeito, em princípio, ao controle racional; 2. O surgimento de um ethos de realização secular impessoal, historicamente alicerçado na ética puritana da vocação; 3. A crescente importância do conhecimento técnico especializado em economia, administração e educação; 4. A objetificação e despersonalização do direito, da economia e da organização política do Estado, e o consequente recrudescimento da regularidade e da calculabilidade da ação nesses domínios; 5. O progressivo desenvolvimento dos meios tecnicamente racionais de controle sobre o homem e a natureza; e 6. A tendência ao deslocamento da orientação da ação tradicional e assente em valores racionais (wertrational) para a ação puramente instrumental (zweckrational) (Outhwaite & Bottomore, 1996, p. 642).

E não só o pensamento teórico, desencantando o mundo, levava a essa situação, mas também a própria tentativa da ética religiosa de racionalizar prática e eticamente o mundo [...] E em meio de uma cultura que é racionalmente organizada para uma vida vocacional de trabalho cotidiano, dificilmente haverá lugar para o cultivo da fraternidade acósmica, a menos que seja entre camadas economicamente despreocupadas. Sob as condições técnicas e sociais da cultura racional, uma imitação da vida de Buda, Jesus ou São Francisco parece condenada por motivos exclusivamente externos (Weber, 1979, p. 408).

Quanto ao sistema em geral, há outro ponto a ressaltar.

Há crescente especialização e divisão do trabalho intelectual

O progresso científico é um fragmento, o mais importante indubitavelmente, do processo de intelectualização a que estamos submetidos desde milênios [...] Equivale isso a despojar de magia o mundo [...] O destino de nosso tempo, que se caracteriza pela racionalização, pela intelectualização e, sobretudo, pelo “desencantamento do mundo” levou os homens a banirem da vida pública os valores supremos e mais sublimes (Weber, 1993, pp. 30-51).

  1. Por um lado o processo é benéfico, porque acirra a competição, quando se elevam as “qualificações técnicas” e também burocráticas das universidades;

  2. Por outro, há um grande choque entre gerações e isso afeta as próprias “tradições acadêmicas” (o que não deixa de ser uma questão ética). Weber nos diz que:

Há um abismo, tanto visto de fora quanto visto de dentro, entre essa espécie de grande empresa universitária capitalista e o professor titular comum, de velho estilo. Isto se traduz até na maneira íntima de ser” (Weber, 1993, p. 20).

  1. “Em nosso tempo, obra verdadeiramente definitiva e importante é sempre obra de especialista” (Weber, 1993, p. 24).

  2. A racionalização e intelectualização, em Max Weber, têm várias esferas e acompanham todo o longo processo histórico do desencantamento do mundo (como se fosse o “motor” do milenar processo civilizatório).

  3. A ideia de escolarização, aprendizado, conhecimento, para a sociologia de Max Weber, é parte integrante do amplo processo de “desencantamento do mundo”, ou seja, de racionalização e de intelectualização.

i. Por desencantamento do mundo, Weber indica duas possíveis compreensões: “desmagificação” e “perda dos sentidos”.

  1. Com a racionalização da sociedade ocidental, Weber trata da modernidade e de como o homem aprendeu a ser moderno, processo que compreende a escola.

  2. O processo do conhecimento (especialmente na vida moderna) desembocou na ciência (e no seu negativo: “cientificismo” e/ou “razão instrumental”), mas também na expectativa de explicações razoáveis à vida do homem comum.

  3. Este processo de (auto) conhecimento passa, evidentemente, pela escola, mas não se limita à escolarização, pois o razoável é um princípio ou possibilidade de que seja racionalizável. E isto transcorre em vários níveis da vida: da religião à estética ou erotismo, economia, direito e política (Estado Racional).

a. O erotismo, aliado à cultura e à intelecutalização, levaria ao gozo consciente (Weber, 1979) programado, estudado, pensado, instigado, legislado.

  1. Assim, a própria religião, tema tão caro a Weber, para explicar a racionalização como crescimento intelectual que nos trouxe à modernidade, é ela mesma um processo de conhecimento do mundo moderno.

  2. Estudar a religião em Max Weber é, portanto, adentrar um pouco no espírito crescente de intelectualização que nos trouxe à modernidade; afinal, “a religião é o mito racionalizado” pelo ascetismo.

a. No sentido que nos interessa mais de perto, Max Weber investigou o conceito em dois planos: 1º) ascetismo extramundano – consiste em retirar-se do mundo (misticismo); 2º) ascetismo intramundano — consiste em praticar a abstenção dentro desde mundo terreno. O ascetismo intramundano, que também é o que nos interessa mais especificamente, coincide com a efervescência da ética do capitalismo moderno, desde que este surgiu e se solidificou, impulsionado por vários grupos protestantes: calvinista, pietista, metodista e batistas.

  1. A intelectualização, em Max Weber, é um grande arco que recobre as iniciativas humanas no seu curso de aprendizado (racionalização) e conhecimento, isto é, dentro e fora da escola: como vemos na indicação da análise do mito.

  2. A diferença básica entre educação e escolarização é que esta exige uma instituição para que se efetive (escola, Liceu etc.) e a educação é o próprio "processo interativo" em que se dá a construção do conhecimento (com ou sem escola), como um "processo de ensino-aprendizagem".

Em síntese, para Weber, a sociologia é a ciência que objetiva compreender a atividade social pela interpretação, para depois explicar os efeitos dessa mesma atividade – ação social -, no contexto global das redes de relações sociais. Weber estará atento para os sentidos, para as próprias intenções sociaisos sentidos ocultos do chamado senso comum – que não estão ao alcance pleno e imediato de todos os envolvidos nas próprias relações sociais. A pergunta clássica que o próprio Weber direciona a este aspecto é a seguinte: quem (re) conhece o verdadeiro significado de uma lei? Weber se refere tanto à lei, no sentido dogmático, quanto ao sentido empregado para lei social (fato social), e que lhe propicie conhecer em profundidade um determinado conjunto de relações sociais.

Darwinismo Social

Charles Darwin (1809 - 1882) é um autor "sensível ao social" e não um biólogo obsessivo como se retrata e ainda que alguns digam que esta “sensibilidade social” não foi tão segura quanto gostaríamos, como no caso de uma crítica severa à escravidão brasileira: o que também não é verdadeiro. De todo modo, no Dário de Bordo “O Beagle61 na América do Sul”, Darwin inicia sua descrição sócio-ambiental com a demonstração do que se pode chamar de método narrativo:

Fernando de Noronha, 20 de fevereiro — tanto quanto pude observar [...] A característica mais notável [...] A partir da primeira impressão, ao se observar essas isoladas, tende-se a acreditar que o todo foi repentinamente empurrado para cima em estado semifluído [...] Em Santa Helena, entretanto [...] A ilha toda está coberta de floreta; mas, devido à aridez do clima, não há nenhuma aparência de exuberância (Darwin, 1996, p. 07).

O texto é um misto de diário pessoal, informal, à procura da descrição detalhada, minuciosa. Seu estilo é limpo, como o de um narrador realmente, mas nem por isso despretensioso. É quase poético, a exemplo de quando se declara um naturalista. De um modo ou de outro, sempre retoma o método descritivo, mas ainda assim ressalta o exercício da reflexão motivada pela (bio) diversidade (Darwin, 1996, p. 09-10). A observação cuidadosa pode favorecer outro método — comparativo — e sem desconsiderar o mesmo “bom senso observador dos nativos”. Porém, como cientista está à procura de uma razão que explique determinados fenômenos e, assim, observa em detalhes como é que um peixe baiacu ou diodon se enche de água e de ar. Depois, descreve borboletas preguiçosas como se conversasse com elas — na verdade, o que faz é interagir com o meio, com todos os seus aguçados sentidos de observador meticuloso, detalhista, criterioso e, acima de tudo, curioso. Portanto, sua curiosidade o leva a observar a cadeia social da escravidão brasileira, quando demonstra sensibilidade diante do significado e dos feitos da escravidão:

Como a lua surgiu cedo, decidimos partir naquela mesma tarde para a Lagoa Maricá, onde pernoitaríamos. À medida que foi escurecendo, passamos sob um daqueles enormes morros de granito, íngremes e nus, tão comuns neste país. Este lugar é famoso por ter sido, durante muito tempo, a morada de alguns escravos fugidos que conseguiram tirar sua subsistência do cultivo de um pequeno pedaço de terra perto do topo. Finalmente descobertos, foram todos capturados por um grupo de soldados, com exceção de uma velha que, recusando-se a voltar a ser escrava, preferiu atirar-se do alto da montanha, despedaçando-se contra as pedras da base. Numa matrona romana, isso teria sido chamado de um nobre sentimento de liberdade, mas numa pobre negra, é apenas uma brutal obstinação (Darwin, 1996, p. 14. – grifos nossos).

Vê-se na descrição/interpretação citada seu interesse pela história social e como sugere uma articulação entre o cotidiano (“Como a lua surgiu cedo... À medida que foi escurecendo”), a história natural (“passamos sob um daqueles enormes morros de granito, íngremes e nus”), a história social e política (“Este lugar é famoso por ter sido... a morada de alguns escravos fugidos”), um ideal como pano de fundo (“um nobre sentimento de liberdade”) e, por fim, um realismo assombroso (“numa pobre negra, é apenas uma brutal obstinação”). Se não fosse pela escravidão, o país seria uma maravilha. O escravismo no Brasil não gerou nenhum sentimento de individualismo liberal, mas sim egoísmo:

"13 de abril [...] propriedade do Sr. Manuel Figuireda [...] por pouco não me tornei testemunha ocular de um daqueles atos de atrocidade, que só podem acontecer num país escravocrata. Devido a uma briga e a uma ação judicial, o proprietário estava prestes a tirar todas as mulheres e crianças da companhia dos homens e vendê-las separadamente num leilão público no Rio. O interesse, e não nenhum sentimento de compaixão foi o que impediu esse ato [...] Pode-se dizer que não há limite para a cegueira advinda do interesse e de hábitos egoístas." (Darwin, 1996, pp. 18-21).

Sua recaída, todavia, foi ter confundido patriarcalismo com cuidado e felicidade: a autonomia não pode ser substituída pelo assistencialismo, por mais generoso que possa ser: “Em fazendas como essa, não tenho dúvida de que os escravos vivem satisfeitos e felizes” (Darwin, 1996, p. 20). Conclui chamando nossa atenção para uma “perspectiva ecológica”: “podemos inferir, a partir desses fatos, que devastação deve causar a uma região a introdução de qualquer animal de rapina, antes que os instintos dos aborígines se adaptem à habilidade ou poder do desconhecido” (Darwin, 1996, p. 72). É como se dissesse que a colonização ecológica é tão predatória quanto à expropriação humana. Esta mesma relação entre política e técnica, já identificada nos primórdios das sociedades humanas, é também realçada por Alfred W. Crosby (em Imperialismo ecológico). A técnica também parece associada ao desenvolvimento dos sentidos, em especial o tato. A articulação do polegar, “livre da mão”, propiciava o movimento de pinça, diferentemente dos macacos que tem o polegar “colado à mão”. Crosby, ao identificar no polegar livre a possibilidade do movimento de pinça, parece confirmar a tese que já aparecia em Marx e Engels (Darwin):

Com todos os seus notáveis avanços na metalurgia, nas artes, na escrita, na política e na vida urbana, a Revolução Neolítica do Velho Mundo teve como fundamento o controle direto e a exploração de muitas espécies em benefício de uma só: o Homo sapiens. O polegar oposto aos outros dedos da mão capacitara o hominídio a agarrar e manipular segmentos completos da biota a seu redor (Crosby, 1993, p. 30. - grifos nossos).

Esta é a contribuição do neolítico: o Homo sapiens que inventara a arte, a política e a técnica. É como se disséssemos que nosso “estado de ser atual”, quando nos preocupamos com o sentido político que a tecnologia adquire atualmente, é um sinal de desapontamento com a criatividade dos ancestrais, uma vez que eles “inventaram” o maior desafio que temos hoje: a Tecnologia política. Porém, para Crosby, é um sinal claro da denúncia frente à angústia do mundo moderno, em que precisamos enquanto Homens capacitar-nos para “saltos” maiores. Um “salto qualitativo” que englobe a toda a humanidade e não apenas a poucos. Lembra assim, mais uma vez, o período do Neolítico, onde tudo começou, para dizer que nossos sonhos têm de resgatar a mesma qualidade que um dia nos caracterizou, quando tínhamos unidas a arte, a política e a técnica:

As responsabilidades dos neo-europeus exigem uma sofisticação ecológica e diplomática sem precedentes: habilidade política no campo e nas embaixadas, e uma verdadeira grandeza de espírito [...] Carecemos hoje de um florescimento de inventividade equivalente ao ocorrido no Neolítico — ou, na ausência disso, de sabedoria (Crosby, 1993, p. 30).

Como se sabe, os “saltos” que se prevê para o futuro não prometem “respostas igualitárias” para a humanidade. Os especialistas em informática esperam para o próximo século um “salto qualitativo” em termos de “interfaces”, entre os aplicativos e os usuários, através do desenvolvimento das “fibras óticas” e da “digitalização”. Dissemos que os saltos não prometem nada ao futuro integrado da humanidade, porque não há vestígios no presente que garantam uma “evolução equitativa”. E se Crosby nos remete ao Neolítico, para encontrarmos essa garantia de futuro, é porque ele também não as encontrou no presente. Mas, como cronologicamente ainda estamos no século XX, voltemos para os dados que o constituem (Martinez, 1997).

Socialismo Científico

Nota-se, em parte pelo que já vimos, neste subitem que se inicia, um esforço para que tenham melhor esclarecidos alguns apontamentos da luta de classes, entendendo-se esta situação como uma relação antagônica, contraditória e oposta entre as classes fundamentais; mas especificamente no capitalismo essas classes são burguesia e proletariado. Mas há outras classes, como o lumpemproletariado e a pequena burguesia e até frações de classe, também em luta, como: burguesia industrial X agropecuária ou financistas versus industriais. Uma relação de oposição pode implicar apenas em uma situação de conflito controlado, a exemplo do que se vê entre oposição e situação, relação mediada pelo Princípio do Contraditório: comum ao debate parlamentar (trabalhistas X conservadores) ou à relação jurídica. Será uma relação antagônica quando a conflituosidade e animosidade ganharem um nível muito superior de beligerância, antecipando-se à negação, porque os discursos ou ideologias estão em franco e aberto conflito: as visões de mundo se tornaram insuportavelmente diversas. Por fim, será uma relação contraditória porque, aquela negação anunciada estará em ação, o que implica que — apesar da mútua necessidade de existência entre os pólos em disputa (“não há diálogo de mudos ou de surdos”) — a vida de um acarreta obrigatoriamente a exclusão/eliminação do Outro. Diferentemente da dialética oriental (positivo versus negativo), a dialética ocidental marxista impõe a ocorrência da negação. Assim, a um processo dialético por contradição é obrigatória à ocorrência de uma tese (situação), antítese (oposição) e de suas respectivas superações em uma síntese (que não é nem a tese, nem a antítese, mas que contém parte das duas, transformadas, revigoradas em um dado novo, novo contexto). A síntese, portanto, como substrato das duas ocorrências anteriores, será a nova tese — o que implicará em outra antítese e assim por diante. Nesta fase, então, pode-se dizer que houve superação da própria luta de classes, pois sem que uma das classes fundamentais tivesse sobrevivido, necessariamente, a outra teria de se transformar em algo diverso daquilo que fora até então: as revoluções, portanto, transformam a própria luta de classes que as alimentou até aquele momento. Na seguinte síntese apresentada por Engels temos uma (re) visão histórico e crítica feita por Marx:

“O materialismo é filho nato da Grã-Bretanha” [...] O verdadeiro pai do materialismo inglês é Bacon. Para ele, a ciência da natureza é a verdadeira ciência, e a física experimental a parte mais importante da ciência da natureza [...] Toda ciência se baseia na experiência e consiste em aplicar um método racional de investigação ao que é dado pelos sentidos. A indução, a análise, a comparação, a observação, a experimentação são as condições fundamentais desse método racional [...] Hobbes sistematiza o materialismo de Bacon. A sensoriedade perde o seu brilho e converte-se na sensoriedade abstrata do geômetra [...] Se os sentidos fornecem ao homem todos os conhecimentos – argumenta Hobbes partindo de Bacon -, os conceitos, as ideias, as representações mentais, etc., não são senão fantasmas do mundo físico, mais ou menos despojado da sua forma sensorial. A ciência não pode fazer mais do que dar nomes a estes fantasmas [...] Locke, na sua obra [...] Ensaio sobre o Entendimento Humano fundamenta o princípio de Bacon e Hobbes [...] Assim se expressa Karl Marx referindo-se às origens britânicas do materialismo moderno (Engels, s/d, pp. 10-12).

Em seguida, Marx formula, no dizer de Engels, uma crítica mais rotunda acerca do conatus ou endeavor de Hobbes (1983). No fundo, uma crítica de base à ideia da reta razão (Angoulvent, 1996), porque a razão nunca seria reta se mais adiante sempre se colocassem obstáculos, diatribes62, estranhamentos do mundo material — atuando como sufocação das subjetividades:

Corpo, ser, substância, vêm a ser uma e a mesma ideia real. Não se pode separar o pensamento da matéria que pensa. Ela é o sujeito de todas as mudanças [...] Toda a paixão humana é movimento mecânico que termina ou começa. Os objetos do impulso são o bem [...] O poder e a liberdade são coisas idênticas [...] Hobbes sistematizou Bacon, mas sem oferecer novas provas a favor do seu princípio fundamental: o de que os conhecimentos e as ideias têm a sua origem no mundo dos sentidos (Engels, s/d, p. 11).

Em parte, este é o esforço analítico principiando pelo materialismo histórico, tendo-se a acumulação primitiva e a colonização (ultramar) como suportes extratores de riquezas que originaram ou “suportaram” o Estado Moderno — em seguida, ainda socorre-se especialmente do “papel político-institucional” exercido pelo Estado-Nação. Portanto, cabe bem uma distinção/complemento quanto à dialética, especificamente para que possamos destacar o papel do Estado na condição/condução das suas superestruturas: direito, educação, “função pública”. Então, vejamos um relato sobre o Renascimento, a partir da perspectiva do Materialismo Histórico:

As fortunas da Espanha, da Holanda, da Inglaterra, da França foram obtidas, não somente com o trabalho excedente de seu proletariado, não somente destroçando sua pequena burguesia, mas também com a pilhagem sistemática de suas possessões de ultramar. A exploração de classes foi complementada e sua potencialidade aumentada com a exploração das nações. A burguesia das metrópoles se viu em situação de assegurar uma posição privilegiada para seu próprio proletariado, especialmente para as camadas superiores, mediante o pagamento com lucros excedentes obtidos nas colônias [...] Espoliando a riqueza natural dos países atrasados e restringindo deliberadamente seu desenvolvimento industrial independente, os magnatas monopolistas e seus governos concedem simultaneamente seu apoio financeiro, político e militar aos grupos semifeudais mais reacionários e parasitas de exploradores nativos [...] A luta dos povos coloniais por sua libertação, passando por cima das etapas intermediárias, transforma-se na necessidade da luta contra o imperialismo e, desse modo, está em consonância com a luta do proletariado nas metrópoles [...] O capitalismo tem o duplo mérito histórico de ter elevado a técnica a um alto nível e de ter ligado todas as partes do mundo com os laços econômicos [...] No entanto, o capitalismo não tem condição de cumprir essa tarefa urgente. O núcleo de sua expansão continua sendo os estados nacionais circunscritos com suas aduanas e seus exércitos. Não obstante, as forças produtivas superaram faz tempo os limites do Estado nacional, transformando consequentemente o que era antes um fator histórico progressista numa restrição insuportável. As guerras imperialistas não são mais que explosões das forças produtoras contra os limites estatais, que se tornaram limitados demais para elas (Trotsky, 1990, p. 71-73-75).

Este texto de Trotsky sobre a colonização, o imperialismo e o papel do Estado-Nação europeu na exploração das colônias, foi escrito em 1939. Mas, historicamente, o movimento social e político que mais se aproximou disso foi à intentona perpetrada pela Comuna de Paris, em 1871, mas desde a Revolução Francesa, os partidários de Rousseau já saiam às ruas. Classes Fundamentais: no capitalismo, burguesia e proletariado:

Foi nas profundezas do submundo intelectual que esses homens se tornaram revolucionários: ali nasceu a determinação jacobina de exterminar a aristocracia do pensamento [...] O mundo dos subliteratos não tinha princípios; tampouco alguma instituição de tipo formal. Era um universo de gente à deriva — nada de cavalheirescos discípulos de Locke resignados às regras de algum jogo implícito, mas brutos partidários de Hobbes colhidos em meio à briga pela sobrevivência. Isso não ficava a menor distância de le monde que o café do salon (Darnton, 1987, pp. 31-33).

As revoluções foram intensas não só no aspecto material (acumulação primitiva, inversão de capitais), mas igualmente nas “mentalidades”: “Onde quer que tenha chegado ao poder, a burguesia destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas” (Marx & Engels, 1993, p. 68). Para Marx, o papel do Estado Moderno nunca foi de relevância muito superior ao que vimos em alguns de seus interlocutores e comentadores: “O poder político do Estado moderno nada mais é do que um comitê (Ausschuss) para administrar os negócios comuns de toda a classe burguesa” (Marx & Engels, 1993, p. 68. – grifos nossos). Em momento de reflexão semelhante, Marx ainda dirá que, entrelinhas, que o juiz crê que para chegar à verdade, é preciso aplicar a subsunção e, como se aplica a isto reiteradamente, acaba por atribuir à subsunção a própria força da verdade objetiva dos fatos sublimados, colimados pela ocorrência histórica e não pela retórica:

As relações, na jurisprudência, política etc. — convertem-se em conceitos na consciência; e por eles não se situarem acima dessas relações, os conceitos das mesmas, em suas cabeças, são conceitos fixos; o juiz, por exemplo, aplica o código e por isso, para ele, a legislação é tida como verdadeiro motor ativo. Respeito pela sua mercadoria; pois sua ocupação tem a ver com o geral (Marx, 1984, p. 134).

Por isso, pela ausência de realidade substancial que funcione como anteparo ao achaque à consciência do aplicador do Judiciário (e agindo quase que por inércia, osmose , sob o efeito direto da subsunção), a partir do Estado Moderno, não poderia ter havido um típico Renascimento do Direito. De modo complementar também se destaca o Estado Moderno como fixador material/ideológico do “sistema capitalista” já a partir do Renascimento. Em suma, trata-se de uma leitura complementar, crítica/realista acerca do Renascimento e da Renascença, pois, nem todas as ideias, vocações ou habilidades puderam (re) nascer livremente.

Poder Social e Legitimidade

O Poder Social é definido como a capacidade de organizar relações sociais, a fim de agir em relativa harmonia. Ainda diz-se que se constitui na capacidade de acessar recursos humanos e/ou materiais para obter e controlar os resultados almejados. Enfim, pode-se dizer que o Poder é social porque pertence a um grupo. Contudo, deve-se indagar se o Poder Social sempre será uma atividade racional. De modo simples, o Poder Social reflete a capacidade humana para se propor formas de organização social. Sendo assim é a capacidade humana:

Para Arendt: “A forma extrema de poder é o Todos contra Um, a forma extrema da violência é o Um contra Todos” (Arendt, 1994, pp. 35-6 – grifos nossos). Lembrando-se que este Um tanto pode ser um príncipe, um déspota quanto o próprio Estado quando assume a forma totalitária. Se há um revés nesta lógica da “luta por sobrevivência, mas com reconhecimento da intersubjetividade” (Honneth, 2003) ou simples práxis social, então, é porque já estão em vigor a impotência, a violência e a corrupção (o exato contrário, o oposto da política, para Arendt). Destacada que o “acordo genuíno” que constituiu o poder social não poderia se converter em coerção pelo sistema, uma vez que esta mutação simplesmente converteria poder em violência. Afinal, o poder do consenso/legítimo repousa na persuasão: “imposição singularmente não impositiva63”. Porque é um “poder proposto”, não imposto. Ainda é preciso lembrar que Habermas considera que o significado de poder em Arendt origina-se na vita activa, na sua práxis social — em outros termos, na “capacidade de se alcançar um acordo visando à ação conjunta”.

Ainda é preciso retomar algumas diferenciações, neste caso entre Arendt e Weber, pois o “poder como consenso” não se avalia pelo êxito dos atores, mas sim pela “aspiração comum à validade razoável”. Para Habermas, o poder em Arendt é fonte da legitimidade validada pela práxis social e figura, portanto, como fruto de um consenso almejado/alcançado na própria comunicação ou comunidade política (Habermas, 1980, 103). Ou, então, como quer definir a própria Hannah Arendt, de modo preciso, que vita activa é sinônimo de ação política e que esta estreita relação constitui o “cerne humano”. O homem é um animal social, de múltiplas relações de convivialidade, conectividade, civilidade, isonomia64, isegoria: sem liberdade de expressão, não há manifestação pública e todos seriam aneu logou: sem direito e sem voz ativa (Arendt, 1998). Mas, indubitavelmente, o homem é um animal político, aprioristicamente, com a vita activa que requer movimento e ação (Arendt, 1991, p. 15).

Em suma, para Arendt, o poder seria efeito da ação comunicativa, mas também se revelaria em três níveis ou modalidades: a) regulamento que sobrevém à práxis; b) resistência à opressão; c) atos revolucionários inaugurais (Habermas, 1980, p. 103). O poder é práxis, mas a práxis de Arendt vem da polis (Habermas, 1980, 104). Mesmo que limitado, esse conceito de práxis procura exasperadamente pelo reconhecimento de uma “intersubjetividade não mutilada”, mas multifacetada. O efeito direto dessa práxis no poder seria preservar a luta pelo reconhecimento da própria intersubjetividade no interior do mundo da vida. Mais especialmente, na modernidade, práxis e vita activa se aproximam do que chamamos de espaço público ou “esfera pública” — quando se encontram, na modernidade e diferentemente da polis grega, o sistema político-institucional com o mundo da vida: aí estaria, sobretudo, a ideia da representação política, parlamentar ou legislativa (como “transferência da capacidade de ação, da práxis, mas não postulativa da soberania popular”).

De todo modo, se o direito obedece à política (enquanto poder social ou instrumental do Estado), não é menos verdade que o direito precisa ser mais concreto do que a moral para, assim, não se diluir na própria arena política originária. Isto, evidentemente, evitaria um ciclo vicioso, opondo-se perigosamente o teleológico ao social. Aliás, este “mecanismo institucional de monopólio da produção legislativa” somente pode funcionar se o direito for aceito e reconhecido pela maioria como legítimo, isto é, se o direito se tornar verdadeiramente social. Portanto, uma das maiores dificuldades enfrentadas diante da realidade pragmática do direito (inclusive do “direito ao reconhecimento”) é, justamente, entender/encarar o direito como parte do poder social e não só como recurso instrumental do poder extroverso/funcional do Estado (Sundfeld, 2004, p. 94). Quanto mais for concreto o caráter socialmente impositivo65 do direito, tanto maior a legitimidade e a aceitabilidade das normas fundamentais de sociabilidade e tanto mais auto-reguláveis os projetos teleológicos de poder: os fins seriam mais comedidos pelos meios: Justamente porque as vontades ou os valores estariam “controlados” pelo direito positivado — este que é aberto à interpretação, mas já se partindo de um sentido firmado e não “figurado”. Enfim, como se vê, todo o “problema do direito” (mas também seria da arte, da política, da educação) é primeiro, quanto à legitimidade e, depois, quanto à validação. É sabido desde os romanos que “o direito não socorre a quem dorme”.

Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Para uma teoria do Estado pós-moderno: a razão política no entendimento do Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3524, 23 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23782. Acesso em: 23 dez. 2024.

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