Resumo: O presente trabalho pretende reconstruir a compreensão jurisprudencial do STF acerca da relação entre interesses públicos e interesses privado a fim de demonstrar como o primeiro não mais pode avocar primazia sobre o segundo. Tal conclusão, no direito brasileiro, foi obtida a partir do uso pelo Tribunal da técnica de “ponderação de princípios” de Robert Alexy, que também será analisada. Ao final , conclui-se leitura jurisprudencial, em razão do uso de tal técnica, não é uma via adequada ao Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: Supremacia do interesse público; Aplicação e conflito entre princípios; legitimidade das decisões judiciais.
Sumário: 1. Considerações Iniciais: o conflito entre interesses públicos e interesses privados como conceito-chave para uma mudança na hermenêutica do STF; 2. A proporcionalidade como proposta de método solucionador do conflito entre princípios (valores) jurídicos; 3. Considerações Finais: a ponderação é uma resposta adequada ao problema do conflito entre princípios?; Referências Bibliográficas.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS: O CONFLITO ENTRE INTERESSES PÚBLICOS E INTERESSES PRIVADOS COMO CONCEITO-CHAVE PARA UMA MUDANÇA NA HERMENÊUTICA DO STF.
“Em que medida a Constituição de 1988 importa numa mudança na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal? Em que medida as bases interpretativas no Supremo Tribunal Federal foram modificadas após a promulgação da Constituição de 1988?” Essas são as perguntas principais feitas por Baracho Júnior (2004:509), em seu ensaio sobre a possibilidade de se identificar uma “nova hermenêutica” nos julgados do Supremo Tribunal Federal (STF).
Ora, se é possível identificar alguma forma de inovação, no curso da linha de raciocínio que o Tribunal vinha tomando, é de se pressupor também a existência de algo anterior, algo que foi ou está sendo superado.1 Para tal empreitada, faz-se necessária a observância dos julgados não apenas como casos isolados, mas como “precedentes”, ou seja, como fundamentos para as decisões seguintes – prática utilizada pelo STF para possivelmente representar uma forma de sistematizar a sua jurisprudência.2
Mas, diante da história institucional brasileira, esse trabalho pode se ver ameaçado: “Evidentemente que uma corte cujo trabalho é constantemente interrompido por golpes de Estado, tem maior dificuldade em consolidar uma orientação jurisprudencial minimamente coerente” (BARACHO JÚNIOR, 2004:510).
O tema que pode funcionar como guia dessa tarefa, uma vez que sempre esteve presente, sendo tomado como um dogma, é a prevalência do interesse público sobre o interesse privado. Como lembra Ávila (2005:171), para a dogmática jurídica, seu desenvolvimento teórico viria a partir dos estudos do Direito Administrativo,3 mas com ramificações e influências para outros “ramos” do Direito, como o direito tributário.
Se, por um lado, a discussão sobre a supremacia do interesse público sobre o privado era posta como um axioma4 – por partir das lições do positivismo jurídico, que considerava a separação rígida entre Direito e Política, excluindo a possibilidade de um Tribunal apreciar “questões políticas” – por outro, tal afirmação também serviu como “forma de fragilizar a tutela de direitos individuais em face do poder público” (BARACHO JÚNIOR, 2004:513).
Com isso, evitava a tutela de direitos individuais. E essa não era um debate novo no Supremo Tribunal Federal. Já no governo Floriano Peixoto, no início da República, logo após a implantação do Supremo Tribunal Federal, algumas questões que envolviam ofensas a direitos individuais não foram por ele apreciadas, pois, segundo dizia a Corte, eram questões políticas. Em 1893, em estado de sítio decretado por Floriano Peixoto, o Supremo se recusou a apreciar uma série de lesões a direitos individuais ao argumento de que aquelas questões eram políticas e que, portanto, não poderiam ser objeto de apreciação pelo Poder Judiciário (BARACHO JÚNIOR, 2004: 512-513).
Entretanto, havia opositores a essa tese, como lembram Rodrigues (1991:20) e Souza Cruz (2004:277). Segundo a historiadora, o discurso de Rui Barbosa,5 na defesa dos direitos individuais, representa um contraponto necessário ao exercício democrático dos direitos políticos:
As palavras de Rui Barbosa em 1892 indicam essa concepção: “os casos, que, se por um lado toca a interesses políticos, por outro lado, envolvem direitos individuais, não podem ser defesos à intervenção dos tribunais, amparo de liberdade pessoal contra as invasões do executivo. [...] Onde quer que haja um direito individual violado, há de haver um recurso judicial para a debelação da injustiça. Quebrada a égide judiciária do direito individual, todos os diretos desaparecem, todas as autoridades se subvertem, a própria legislatura esfacela-se nas mãos da violência; só uma realidade subsiste: a onipotência do executivo, que a vós mesmos vos devorará, se nos desarmardes da vossa competência incontestável em todas as questões concernentes à liberdade” (RODRIGUES, 1991:20-21, grifos no original).
Dessa forma, como afirma Souza Júnior (2004:88), foi-se construindo a noção de que a condição para o exame judicial de questões políticas seria a possibilidade de lesão a direitos individuais.
Em um dos [julgados] mais antigos (HC 3061, julgado em 1911), o Supremo afirmou a possibilidade de conhecimento judicial do caso político quando acompanhado de uma questão judiciária. Logo depois, em 1914, aquela corte resguardou do exame judicial os motivos determinantes ou as conseqüências políticas dos atos de intervenção nos Estados. Construiu também o entendimento de que podia o Judiciário conhecer de casos puramente políticos, desde que se alegasse lesão de direito individual (SOUZA JÚNIOR, 2004:88).
Todavia, a noção de prevalência do interesse público sobre o interesse privado, mesmo com riscos à violação de direitos fundamentais, acaba se fortalecendo, principalmente a partir de 1960, intensificando-se no período autoritário que se seguiu.
Vamos ter, especialmente, a partir de 1965, com a edição do Ato Institucional n. 2, decisões do Supremo Tribunal Federal que importam em negar tutela de uma série de direitos individuais, fortalecendo a idéia de prevalência do interesse público sobre o privado. É o que vamos ver em algumas decisões, como por exemplo, no caso João Goulart, em 1967. De uma maneira geral, as questões que envolviam a segurança nacional, se pautavam pela idéia de prevalência do interesse público sobre o privado (BARACHO JÚNIOR, 2004:514).
Essa interpretação permaneceu, contudo, com o advento da Constituição da República de 1988; como afirma Baracho Júnior (2004-514), basta analisar a decisão proferida na ADI n. 47, que tratou da interpretação do art. 100 da Carta Magna, estabelecendo que “à exceção dos créditos de natureza alimentícia, a execução contra a fazenda pública se fará através de precatório”.6
De uma maneira geral, para os publicistas, mas principalmente para os administrativistas, o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular se apresenta como um princípio implícito na ordem jurídica brasileira e seria usado para justificar uma série de prerrogativas titularizadas pela Administração Pública. Isso ocorre por se entender que a mesma seria a “tutora” e a “guardiã dos interesses da coletividade” (SARMENTO, 2005:24). Como conseqüência, verifica-se a existência de uma verticalidade na relação entre a Administração Pública e os administrados, de modo que o desequilíbrio seria sempre em favor do Estado.
Mas o que se pode considerar como interesse público? Talvez essa questão devesse ser mais bem problematizada pelos publicistas, que muitas vezes igualam a dimensão do público à coletividade e, outras vezes, ao estatal (governamental).
Para Bandeira de Melo (2003:57) – valendo-se das lições de Alessi7, seria possível distinguir dois tipos de interesse público: interesse público primário e interesse público secundário (SARMENTO, 2005:24; BARROSO, 2005:xiii). Nessa ótica, identifica-se o interesse primário como sendo a razão de ser do Estado ou como os interesses gerais da coletividade; já o segundo tipo representa os interesses particulares que o Estado possui como pessoa jurídica e não mais como expressão de uma vontade coletiva. Logo, alguns administrativistas buscam fazer uma ponte entre o interesse público primário e o bem comum como forma de afirmação de sua superioridade em face do interesse privado.
Binenbojm (2005:137) faz uma crítica precisa à tentativa de alguns juristas de justificar a supremacia do interesse público como princípio norteador da ação administrativa. Nesse sentido, a supremacia do interesse público atuaria como garantia de proteção, inclusive do interesse privado, já que impediria o Estado de atuar a favor de interesses privatísticos, desviando-se dos fins coletivos. Todavia, a corrente a que se filia Di Pietro (2004:69-70) nada esclarece sobre a relação público/privado; além do mais, os problemas por ela apontados não são resolvidos nesse plano, mas no plano dos princípios da impessoalidade e da moralidade.
Salles (2003:58) reconhece a dificuldade de se chegar a um conceito de fácil assimilação, haja vista a natureza genérica que o conceito deve assumir para abranger uma pluralidade de interesses dispersos pela sociedade. Dessa forma, vale-se do Teorema de Arrow (Arrow’s theorem)8 para assegurar que tomadas de posição que parecem envolver uma discricionariedade, seria melhor, se deixadas a cargo da decisão estatal (política), representativa do interesse público. Todavia, tal posição pode parecer por demais cética e, até mesmo, ingênua – por vezes, autoritária – ao imaginar que o Estado seja capaz de corporificar todos os anseios e desejos de uma sociedade. Além do mais, vale aqui o alerta de Sarmento (2005:27), já que tal tese pode representar uma forma de ressurreição das “razões de Estado”, colocando-se como obstáculo intransponível para o exercício de direitos fundamentais.9
A outra proposta que identifica o público ao componente majoritário também se mostra delicada. Tomando como referência aplicada dessa concepção a decisão proferida no julgamento do Recurso Extraordinário n. 153.531-8, de Santa Catarina, fica claro que o interesse público aqui é igualado a uma maioria da sociedade. Ao examinar o questionamento de se a farra do boi – prática de alguns descendentes de açoreanos residentes em Florianópolis – representaria um risco para a segurança dos participantes e uma ação cruel para com os animais, Baracho Júnior afirma que:
O Supremo Tribunal Federal trabalha com dois fundamentos para dizer que o Estado de Santa Catarina deveria atuar, através da Polícia Militar, no sentido de reprimir a farra do boi. O primeiro argumento é que os animais estariam submetidos à crueldade. O art. 225 da Constituição, inciso VII, diz que o Estado não deverá tolerar crueldades contra animais. O segundo fundamento é o mais curioso desta decisão, porque é exatamente a prevalência de uma visão majoritária sobre a de uma coletividade [minoritária]. Há uma idéia de que as tradições de um grupo minoritário não podem prevalecer sobre as tradições que não são compartilhadas pela maioria da sociedade brasileira. As expressões utilizadas no voto vencedor são ilustrativas, pois os descendentes de açoreanos são comparados a uma “turba ensandecida”que adota procedimentos estarrecedores (2004:516).
Dessa forma, o Supremo Tribunal Federal deixou de observar a dimensão hermenêutica envolvida na questão. Tomando apenas a posição de um observador sociológico, compreendeu-se que o interesse público aqui seria o de proteger os animais de uma prática violenta. Todavia,
[...] esta idéia de violência não existe para os açoreanos. Os descendentes de açoreanos que faziam da farra do boi uma celebração anual, não associavam à manifestação uma idéia de violência que nós, que não somos descendentes de açoreanos, associamos. Este é um dado importante, pois, na Espanha, por exemplo, em práticas semelhantes, a idéia de violência não está associada. Dificilmente tais práticas seriam atribuídas a uma “turba ensandecida” na Espanha. Muito menos seriam os procedimentos considerados como estarrecedores (BARACHO JÚNIOR, 2004:517).
Dessa forma, pode-se perceber que a associação do interesse público ao interesse de uma maioria da sociedade mostra-se insuficiente sob o prisma de uma democracia pluralista, que garante a inclusão da perspectiva de todos os envolvidos.
Logo, definir o interesse público como interesse geral de uma coletividade e contrapô-lo a um interesse privado limitado ao perímetro das vivências experimentadas pelos indivíduos fora do alcance da polis (SARMENTO, 2005:30) é insuficiente. Primeiro, porque não pode o indivíduo ignorar a dimensão imposta pela vida em sociedade; sua casa não pode servir como metáfora da ilha imaginada por Crusoé, ou ser entendida como uma fortaleza que coloque o público na porta da rua; pois o processo de socialização acontece concomitantemente com o processo de individualização.10 Sarmento (2005:47) lembra que a sociedade contemporânea é por demais complexa para se apoiar em pilares estanques. Vive-se em um tempo que imprime um novo sentido à concepção de espaço público, que não vem mais associada unicamente ao elemento estatal.11
A pergunta sobre qual é o interesse da coletividade leva, então, a uma outra pergunta: quem é a coletividade?, ou a outra ainda mais radical: “quem é o povo?”, que já suscitou um importante ensaio pelo jurista alemão Müller (1998). Nesse trabalho, Müller alerta para a figura do povo como um ícone – em igual precisão, Carvalho Netto (2003:84) lembra que o conceito de povo é por demais “gordo”, isto é, pode ser manipulado ao sabor de conveniências políticas.
Outro importante trabalho é o texto de Rosenfeld sobre a Identidade do Sujeito Constitucional (2003). Através das reflexões do professor da Cardozo School of Law, pode-se compreender o conceito de povo como um eterno hiato, aberto a um processo dinâmico de elaboração e revisão. É justamente no seu fechamento como conceito que se encontra o perigo para a democracia:
Esse rápido olhar inicial sobre a identidade constitucional, bem como sobre o sujeito e a matéria constitucionais revela que é bem mais fácil determinar o que eles não são do que propriamente o que eles são. Ao construir essa intuição, esse insight, exploro a tese segundo a qual, em última instância, é preferível e mais acurado considerar o sujeito e a matéria constitucionais como uma ausência mais do que como uma presença. Em outros termos, a própria questão do sujeito e da matéria constitucionais é estimulante porque encontramos um hiato, um vazio, no lugar em que buscamos uma fonte última de legitimidade e autoridade para a ordem constitucional. Além do mais, o sujeito constitucional deve ser considerado como um hiato ou uma ausência em pelo menos dois sentidos distintos: primeiramente, a ausência do sujeito constitucional não nega o seu caráter indispensável, daí a necessidade de sua reconstrução; e, em segundo lugar, o sujeito constitucional sempre envolve um hiato porque ele é inerentemente incompleto, e então sempre aberto a uma necessária, mas impossível, busca de completude. Conseqüentemente, o sujeito constitucional encontra-se constantemente carente de reconstrução, mas essa reconstrução jamais pode se tornar definitiva ou completa. Da mesma forma, de modo consistente com essa tese, a identidade constitucional deve ser reconstruída em oposição às outras identidades, na medida em que ela não pode sobreviver a não ser que pertença distinta dessas últimas. Por outro lado, a identidade constitucional não pode simplesmente dispor dessas outras identidades, devendo então lutar para incorporar e transformar alguns elementos tomados de empréstimo. Em suma, a identidade do sujeito constitucional só é suscetível de determinação parcial mediante um processo de reconstrução orientado no sentido de alcançar um equilíbrio entre a assimilação e a rejeição das demais identidades relevantes acima discutidas (2003:26-27).
Para isso, Rosenfeld utiliza três instrumentos teóricos:
A negação, a metáfora e a metonímia combinam-se para selecionar, descartar e organizar os elementos pertinentes com vistas a produzir um discurso constitucional no e pelo qual o sujeito constitucional possa fundar sua identidade. A negação é crucial à medida que o sujeito constitucional só pode emergir como um “eu” distinto por meio da exclusão e da renúncia. A metáfora ou condensação, por outro lado, que atua mediante o procedimento de se destacar as semelhanças em detrimento das diferenças, exerce um papel unificador chave ao produzir identidades parciais em torno das quais a identidade constitucional possa transitar. A metonímia ou deslocamento, finalmente, com a sua ênfase na contigüidade e no contexto, é essencial para evitar que o sujeito constitucional se fixe em identidades que permaneçam tão condensadas e abstratas ao ponto de aplainar as diferenças que devem ser levadas em conta se a identidade constitucional deve realmente envolver tanto o eu quanto o outro (2003:50).
Dessa forma, dentro de uma mesma sociedade, há não apenas uma identidade coletiva, mas diversas e até mesmo concorrentes, de modo que uma interpretação da Constituição que leve em conta apenas uma identidade, por mais majoritária que seja, pode lançar complicações para o desenvolvimento da democracia. Afinal a identidade constitucional, embora aberta às diversas identidades coletivas, não se confunde com nenhuma delas.
Todavia, como o próprio julgamento do Recurso Extraordinário n. 153.531-8 irá revelar, a noção de interesse público não foi tomada como um dogma, mas sim compreendida de maneira a ter de se “compatibilizar” com o interesse privado pela via da utilização. Para tanto, conforme inspiração no Direito alemão, mais exatamente na tradição da jurisprudência de valores alemã, o STF fez uso da técnica de ponderação, por meio da qual: “[...] Quanto maior o grau de não satisfação ou de afetação de um princípio, tanto mais tem que ser a importância da satisfação do outro” (ALEXY, 1997:161, tradução livre).12
Como observa Souza Cruz (2004:160), o pensamento utilitarista serve de base para a ponderação;13 todavia seus defensores alegam que o “princípio” da proporcionalidade seria capaz de impedir a escolha arbitrária, vinculando o operador jurídico ao uso de meios adequados e proporcionais. Um desses defensores é o jurista deKiel, Alexy (1997). Mas, como se verificará, o presente trabalho irá sustentar a tese de que, no pensamento de Alexy, ainda persiste uma dificuldade em assimilar completamente o giro hermenêutico-pragmático,14 por ainda buscar no método a expressão de uma racionalidade capaz de neutralizar toda a complexidade inerente à linguagem (ALEXY, 1998:32; 2003:139; 1997:98; 1997b:136).15
2. A PROPORCIONALIDADE COMO PROPOSTA DE MÉTODO SOLUCIONADOR DO CONFLITO ENTRE PRINCÍPIOS (VALORES) JURÍDICOS
A partir dessa ótica, tanto o interesse público quanto o interesse privado podem ser considerados à luz de princípios. Alexy (1998:09) concorda com a compreensão de regras e de princípios como espécies de normas jurídicas – o que leva à necessidade de empreender uma digressão sobre uma compreensão do Direito para além de um mero conjunto de regras.16
Partindo dessa premissa, lembra-se que freqüentemente a distinção entre ambos os standars normativos se dá em razão da generalidade dos princípios frente às regras. Isto é, muitos autores compreendem os princípios como normas de um grau de generalidade relativamente alta, ao passo que as regras seriam dotadas de uma menor generalidade.17 Contudo, tal abordagem quantitativa, levada adiante por autores como Del Vecchio e Bobbio, mostra-se insuficiente à luz do pensamento desenvolvido já em Esser,18 como demonstra Galuppo (2002:170-171). Tal tese é denominada por Alexy (1998:09) como a tese fraca da separação, de modo que uma tese forte, como a que o autor pretende adotar, considera a distinção como qualitativa. Logo, pode-se perceber que a generalidade não é um critério adequado para tal distinção, pois é, quando muito, uma conseqüência da natureza dos princípios, sendo incapaz de proporcionar uma diferenciação essencial (GALUPPO, 1999:137).
Afirma-se, então, que regras, diferentemente dos princípios, são aplicáveis na maneira do tudo-ou-nada (all-or-nothing-fashion);19 isso significa dizer que, se uma regra é válida, ela deve ser aplicada da maneira como preceitua, nem mais nem menos, conforme um procedimento de subsunção silogístico (AFONSO DA SILVA, 2002:25). Todavia, o principal traço distintivo com relação aos princípios é observado quando, diante de um conflito entre regras, algumas posturas deverão ser tomadas para que apenas uma delas seja considerada válida (ÁVILA, 2004:30). Como conseqüência, a outra regra não somente não será considerada pela decisão, mas deverá ser retirada do ordenamento jurídico, como inválida, salvo se não for estabelecido que essa regra se situa em uma situação que excepciona a outra – trata-se do critério da excepcionalidade das regras. Um exemplo é fornecido pelo próprio Alexy (1997b:163-164): uma Lei Estadual proibia o funcionamento de estabelecimentos comerciais após as 13:00 e, concomitantemente, existia uma Lei Federal estendendo esse funcionamento até às 19:00. Nesse caso, o Tribunal Constitucional alemão solucionou a controvérsia, apoiando-se no cânone da hierarquia das normas, de modo a entender pela validade da legislação federal.
Já os princípios, por sua vez, não são determinantes para uma decisão, de modo que somente apresentariam razões em favor de uma ou de outra posição argumentativa (ALEXY, 1998:09-10); logo apresentam obrigações prima facie, na medida em que podem ser superadas em função de outros princípios (ÁVILA, 2004:30; AFONSO DA SILVA, 2005:32), o que difere na natureza de obrigações absolutas das regras. É, por isso, que o autor afirma existir uma dimensão de peso entre princípios – que permanece inexistente nas regras – principalmente nos chamados casos de colisão, exigindo para a sua aplicação um procedimento de ponderação (balanceamento). Destarte, em face de uma colisão entre princípios, o valor decisório será dado a um princípio que tenha, naquele caso concreto, maior peso relativo, sem que isso signifique a invalidação do princípio compreendido como de peso menor. Em face de outro caso, portanto, o peso dos princípios poderá ser redistribuído de maneira diversa,20 pois nenhum princípio goza antecipadamente de primazia sobre os demais.21 É desta forma que Alexy (1998:12) apresenta a distinção fundamental entre regras e princípios:
[...] princípios são normas que ordenam que algo se realize na maior medida possível, em relação às possibilidades jurídicas e fáticas. Os princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização que se caracterizam porque podem ser cumpridos em diferentes graus e porque a medida de seu cumprimento não só depende das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. [...]. Por outro lado, as regras são normas que exigem um cumprimento pleno e, nessa medida, podem sempre ser somente cumpridas ou não. Se uma regra é válida, então é obrigatório fazer precisamente o que se ordena, nem mais nem menos. As regras contêm por isso determinações no campo do possível fático e juridicamente (ALEXY, 1998:12, grifos no original, tradução livre).22
Mas como explicar a natureza de mandamentos de otimização23 atribuída aos princípios? Ou de outra forma, como uma norma pode ter sua aplicação em diferentes graus? Para Alexy (1998:14, 1997:138), isso pode ser explicado quando se compreende que princípios podem ser equiparados a valores. Uma concepção sobre valores – isto é, axiológica – dirá Alexy (1997:139), traz uma referência não no nível do dever-ser (deontológico), mas no nível do que pode ou não ser considerado como bem. Os valores têm como características a possibilidade de valoração, isto é, permitem que um determinado juízo possa ser classificado, comparado ou medido. Destarte,
Com a ajuda de conceitos de valor classificatório se pode dizer que algo tem um valor positivo, negativo ou neutro; com a ajuda de conceitos de valor comparativo, que a um objeto que se deve valorar corresponde um valor maior ou o mesmo valor que outro objeto e, com ajuda de conceitos de valor métrico, que algo tem um valor de determinada magnitude (ALEXY, 1997:143, tradução livre).24
Todavia, apesar de dizer que princípios podem ser equipados aos valores, Alexy (1997:147) dirá que princípios não são valores. Isso porque os princípios, como normas, apontam para o que se considera devido, ao passo que os valores apontam para o que pode ser considerado melhor.25 Assim, mesmo tendo uma operacionalização idêntica aos valores, ainda assim princípios apresentam uma diferença básica frente aos valores.26
Para concluir, dirá que, se alguém estiver diante de uma norma que exige um cumprimento na maior medida do possível, estará diante de um princípio; em contrapartida, se tal norma exigir apenas o cumprimento em uma determinada medida, ter-se-á uma regra. Logo, a diferença se centraria em um aspecto da estrutura dos princípios e das regras, de uma maneira morfológica, fazendo com que regras sejam aplicadas de maneira silogística e princípios, por meio de uma ponderação ou balanceamento (ALEXY, 2003; AFONSO DA SILVA, 2002:25).
Dessa forma, os princípios que prescrevem a proteção tanto do interesse público de um lado, quanto do interesse privado de outro, deverão ser ponderados por meio do “princípio” da proporcionalidade,27 para que se possa atingir um resultado em face de um caso concreto. Assim, o próximo passo da presente explanação é analisar melhor o mecanismo da proporcionalidade teorizado por Alexy. Para tanto, deve-se lembrar que nem princípios nem regras são capazes de regular por si mesmos suas condições de aplicação, de modo que o jurista de Kiel reconhece a necessidade de promover uma compreensão da decisão jurídica regrada por uma teoria da argumentação (ALEXY, 1997b:173).28 A partir disso, o sistema jurídico, além de conter regras e princípios, comporta um terceiro nível, no qual são feitas considerações sobre um procedimento – seguindo o modelo da razão prática – que permitiria alcançar e assegurar a racionalidade de aplicação jurídica (CHAMON JUNIOR, 2004:103).
A argumentação jurídica é vista por Alexy (1998:18) como um caso especial da argumentação prática geral, ou seja, da argumentação moral. Sua peculiaridade, contudo, está na série de vínculos institucionais que a caracteriza, tais como a lei, o precedente e a dogmática jurídica.29 Mas mesmo esses vínculos – concebidos como um sistema de regras, princípios e procedimento – são incapazes de levar a um resultado preciso. As regras do discurso serviriam apenas para que se pudesse contar com um mínimo de racionalidade. Tudo, para Alexy (1998:18-19), gira em volta de um problema referente à racionalidade jurídica. Como não é possível uma teoria moral de cunho substantivo, somente se pode apelar para as teorias morais procedimentais, que formulariam regras ou condições para a argumentação ou para uma decisão racional.30
Para desenvolver sua teoria da argumentação, o professor alemão irá proceder a uma minuciosa análise de diversas teorias, retirando delas o que considera notável, como lembra Souza Cruz:
Dos julgamentos morais de Stevenson, destacou as distintas formas de argumentos e de argumentações. Da filosofia lingüística de Wittgenstein, observou que a linguagem normativa não poderia ser reduzida à linguagem descritiva, ao passo que da Teoria Discursiva de Austin aproveitou os aspectos performativos da linguagem e sua relação com os dados da realidade.
Da teoria metaética de Hare, destacou o esforço na comensurabilidade de valores, ao exigir que o juiz não apenas se colocasse na posição do réu, mas que levasse a sério todos os interesses daqueles que de alguma forma pudessem ser afetados pela decisão, enquanto da filosofia psicológica de Toulmin aproveitou a concepção da existência de regras no discurso moral que permitiam um exame racional.
Da Teoria da Argumentação Moral de Baier notou que a argumentação prática possui regras distintas da argumentação desenvolvida nas ciências naturais, mas que ambas devem/podem ser taxadas como atividades racionais. Por sua vez, da Teoria do Consenso da Verdade de Habermas, ele percebeu que as ações são jogos de linguagem e que num discurso é possível depurar-se argumentos válidos de argumentos inválidos, em razão de sua aceitabilidade numa “situação ideal de discurso”.
Contudo, ao entender que tal situação dificilmente ocorreria factualmente, Alexy estipulou o critério de Hare como condição mínima de sua teoria. Da Teoria da Liberação Prática da Escola de Erlanger, observou a necessidade da padronização da linguagem.
Finalmente, da Nova Retórica de Perelman assumiu a idéia de que não é possível definir um único resultado como correto e duradouro, dando abertura a um criticismo heurístico (2004:165-166).
Todo esse instrumental teórico irá contribuir para estruturar o procedimento da ponderação a partir de três sub-regras (regra de adequação, regra da necessidade e regra da proporcionalidade em sentido estrito). Essas sub-regras são estruturadas de maneira a funcionarem sucessiva e subsidiariamente, mas nunca aleatoriamente;31 por isso nem sempre será necessária uma análise de todas as três sub-regras.32
Em termos claros e concretos, com subsidiariedade quer-se dizer que a análise da necessidade só é exigível se, e somente se, o caso já não tiver sido resolvido com a análise da adequação; e a análise da proporcionalidade em sentido estrito só é imprescindível, se o problema já não tiver sido solucionado com as análises da adequação e da necessidade (AFONSO DA SILVA, 2002:34).
Afonso da Silva alerta que, no Brasil, difundiu-se o conceito de adequação como aquilo que é apto a alcançar o resultado pretendido (SARMENTO, 2000:87; MENDES, 1994:371). Todavia, trata-se de uma compreensão equivocada da sub-regra, derivada da tradução imprecisa do termo alemão fördern como alcançar, ao invés de fomentar, o que seria mais correto. Nessa leitura:
Adequado, então, não é somente o meio com cuja utilização um objetivo é alcançado, mas também o meio com cuja utilização a rejeição de um objetivo é fomentada, promovida, ainda que o objetivo não seja completamente realizado. Há uma grande diferença entre ambos os conceitos, que fica clara na definição de Martin Borowski, segundo a qual uma medida estatal é adequada quando o seu emprego faz com que o “objeto legítimo pretendido seja alcançado ou pelo menos fomentado”. Dessa forma, uma medida somente pode ser considerada inadequada se sua utilização não contribuir em nada para fomentar a realização de objetivo pretendido (AFONSO DA SILVA, 2002:36-37).
Pode-se tomar o exemplo da ADC n. 9-6 (racionamento de energia), como forma de esclarecer melhor o conteúdo da regra da adequação: para impedir o risco de questionamento judicial, principalmente dos artigos 14 a 18 da Medida Provisória n. 2.152-2 – que disciplinava as metas de consumo de energia elétrica e previa as sanções no caso de descumprimento, foi proposta a ADC n. 9-6, visando à declaração de constitucionalidade, com efeitos vinculantes. O STF entendeu, em sede de medida cautelar, que estava demonstrada a proporcionalidade e a razoabilidade das medidas tomadas pelo governo. Como lembra Afonso da Silva, o teste de adequação da medida deveria se limitar “ao exame de sua aptidão para fomentar os objetivos visados” (2002:37). Assim, mesmo que fosse questionável o fato de essas medidas tomadas serem as mais adequadas, para o constitucionalista, mostra-se inegável – devido ao caráter coercitivo – que as medidas levariam os consumidores a economizarem energia elétrica e, mesmo que sozinhas não possam solucionar o problema de interrupção do fornecimento de energia elétrica, as medida tomadas mostram-se capazes de colaborar para que o mesmo seja atingido. Por tal observação, elas poderiam ser consideradas adequadas nos termos exigidos pela proporcionalidade.
Mas será que elas poderiam passar também pelo grifo da regra de necessidade? Essa afirma o seguinte: “Um ato que limita um direito fundamental é somente necessário caso a realização do objetivo perseguido não possa ser promovida, com a mesma intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o direito fundamental atingido” (AFONSO DA SILVA, 2002:38). Segundo Sarmento, “impõe que o Poder Público adote sempre a medida menos gravosa possível para atingir a determinado objetivo” (2000:88). Assim, a adequação exige um exame absoluto do ato, ao passo que a necessidade, um exame comparativo (ALEXY, 1998:30), isto é:
Suponha-se que, para promover o objetivo O, o Estado adote a medida M1, que limita o direito fundamental D. Se houver uma medida M2 que, tanto quanto M1, seja adequada para promover com igual eficiência o objetivo O, mas limite o direito fundamental D em menor intensidade, então a medida M1, utilizada pelo Estado, não é necessária (AFONSO DA SILVA, 2002:38).
Voltando ao exemplo do julgamento da ADC n. 9-6, Afonso da Silva considera que as medidas tomadas pelo governo podem ser consideradas adequadas, por ajudarem a promover a economia de energia. Mas o exame da necessidade exige que, primeiro, se identifique os direitos que serão limitados. Muitos, então, poderiam ser apontados como direitos possivelmente lesionados: direito de acesso a um serviço público, direito de igualdade, direito à livre iniciativa, direito ao trabalho, e, em última análise, o direito a uma vida digna (AFONSO DA SILVA, 2002:38-40).
O passo seguinte seria identificar medidas alternativas que também pudessem satisfazer os objetivos da medida governamental.33 Se fosse demonstrada a existência – o que é bem plausível – de medida tão (ou até mais) adequada que as tomadas pelo governo, o STF teria de considerar a medida escolhida como desproporcional e, por isso, declarar a inconstitucionalidade da Medida Provisória n. 2.152-2.
O último passo a ser verificado, a proporcionalidade em sentido estrito, apenas acontecerá depois de verificado que o ato é adequado e necessário (ALEXY, 1998:31). Por isso,
[...] o exame da proporcionalidade em sentido estrito, que consiste em um sopesamento entre a intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção da medida restritiva (AFONSO DA SILVA, 2002:40).
Segundo Sarmento (2000:89), há aqui um raciocínio baseado na relação custo-benefício da norma avaliada, isto é, o ônus imposto pela norma deve ser inferior ao benefício que pretende gerar. A constatação negativa deve ser tomada, portanto, como um juízo pela inconstitucionalidade do ato. Todavia,
[p]ara que uma medida seja reprovada no teste da proporcionalidade em sentido estrito, não é necessário que ela implique a não-realização de um direito fundamental. Também não é necessário que a medida atinja o chamado núcleo essencial de algum direito fundamental. Para que ela seja considerada desproporcional em sentido estrito, basta que os motivos que fundamentam a adoção da medida não tenham peso suficiente para justificar a restrição ao direito fundamental atingido. É possível, por exemplo, que essa restrição seja pequena, bem distante de implicar a não-realização de algum direito ou de atingir o seu núcleo essencial. Se a importância da realização do direito fundamental, no qual a limitação se baseia, não for suficiente para justificá-la, será ela desproporcional (AFONSO DA SILVA, 2002:41, grifo no original).
No exemplo que até agora foi desenvolvido, o STF, por olvidar analisar a necessidade das medidas do governo, prejudicou a análise da proporcionalidade em sentido estrito. Mas, em um outro exemplo – ADI n. 855-2 (pesagem de botijões de gás), a exigência de pesagem dos botijões de gás na presença dos consumidores foi considerada adequada pelo STF. Também pode ser considerada por Afonso da Silva (2002:40-41) necessária, pois a medida alternativa apresentada – pesagem por amostragem – embora pudesse restringir em menor escala a livre iniciativa das empresas distribuidoras de gás, não pareceu ter a mesma capacidade de fomentar a proteção do consumidor. Assim, pode-se avançar para a análise da proporcionalidade em sentido estrito: verificar se a proteção ao consumidor se justifica em face da limitação à liberdade de iniciativa sofrida pelas empresas distribuidoras de gás. Para Afonso da Silva (2002:41), o peso maior deveria ser dado à proteção do consumidor, todavia o entendimento do STF pendeu para uma solução inversa.