4. CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Dessa forma, a contribuição de “acesso à Justiça” em termos discursivos nos leva a considerar não apenas a existência de um direito de ingresso da demanda perante o Judiciário, mas acima de tudo, a existência de um espaço processual em que são garantidos às partes todos os princípios componentes do devido processo legal (constitucional), como condição de construção de um provimento legítimo e, por isso mesmo, dotado de racionalidade comunicativa e observador da aplicação da “norma correta”. Para tanto, inclui-se nessa nova noção de “acesso à Justiça” a proteção constitucional de todos os meios processuais de impugnação de decisões, inclusive os de natureza recursal.
A mal falada “crise do judiciário”, em sua leitura feita pelos instrumentalistas do processo e constitucionalistas nacionais, deixa transparecer na realidade outro problema: uma crise de legitimidade das decisões proferidas pelo Judiciário brasileiro, quer por submisso aos interesses funcionais do Mercado ou do Poder Administrativo, quer por ainda apegado a uma leitura paradigmática de Estado incompatível (a nosso ver) com a atual.
Na realidade, como já afirmado anteriormente, a crise tem seu ponto positivo, que não pode – e nem tem como – ser eliminada. No caso das “crises” do judiciário e do “acesso à Justiça”, elas revelam a importância do judiciário, não mais apenas como um órgão de decisão estatal para uma sociedade “cliente”, mas, agora, como fórum de discussão pública, no qual esta sociedade participa em simétrica paridade – de maneira interna – ou através da crítica pública das decisões, mostrando que as mesmas não mais podem ser toleradas como frutos de consciências individuais (solipsista) ou justificadas exclusivamente pelo argumento de autoridade. A faticidade das mesmas (coercitivilidade) recorre, antes, do compartilhamento de uma pretensão de correção fundada em uma leitura do ordenamento jurídico como um sistema coerente de princípios e regras.
Finalizando, a defesa dos adeptos do movimento do “acesso à Justiça” quantitativa - tributários do Estado Social –, então, deveria ser no sentido de buscar uma ampliação dos espaços procedimentais, para que haja condição de exercício de uma cidadania ativa – que preserve tanto a autonomia privada quanto a autonomia pública – e a isto, denominamos de “acesso à Justiça” qualitativo e não apenas restrita ao primeiro grau de jurisdição.
Devemos lembrar, portanto, que o cidadão tem direito de, por ele mesmo, atuar na busca pela defesa e proteção de seus direitos (BAHIA, 2003:355), como exercício de sua autonomia privada. Para tanto, a garantia dos princípios processuais e uma compreensão acerca dos mesmos são fundamentais, bem como a existências de recursos que permitam ventilar o debate jurídico sobre a interpretação coerente de direitos.
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Notas
[1] Interessante é, todavia, perceber que essa “crise” merece receber um olhar não tão dogmático e sim, mais crítico- reflexivo, para assim poder ficar nítida a sua própria insolubilidade, bem como o seu aspecto positivo, como já demonstrado em outra obra, qual seja: FERNANDES, Bernardo Gonçalves. PEDRON, Flávio Quinaud. O Poder Judiciário e(m) Crise. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
[2] Para maiores detalhes, reporta-se as obras: 1) NUNES, Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático: uma análise crítica das reformas processuais. Curitiba: Juruá, 2008; 2) LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do Processo em Crise. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008.
[3] “Arrastada para cá e para lá, entre a faticidade e validade, a teoria da política e do direito decompõe-se atualmente em facções que nada têm a dizer umas às outras. A tensão entre princípios normativistas, que correm o risco de perder o contato com a realidade social, e princípios objetivistas, que deixam fora de foco qualquer aspecto normativo, pode ser entendida como admoestação para não nos fixarmos numa única orientação disciplinar e, sim, nos mantermos abertos a diferentes posições metódicas (participante versus observador), a diferentes finalidades teóricas (explicação hermenêutica do sentido e análise conceitual versus descrição e explicação empírica), a diferentes perspectivas de papéis (o do juiz, do político, do legislador, do cliente e do cidadão) e a variados enfoques pragmáticos na pesquisa (hermenêuticos, críticos, analíticos, etc.). As pesquisas delineadas a seguir movimentam-se nesse amplo espaço” (HABERMAS, 1997:25).
[4] “[...] nos Estados Liberais ‘burgueses’ dos séculos dezoito e dezenove, os procedimentos adotados para a solução dos litígios civis refletiam a filosofia essencialmente individualista dos direitos, então vigorante. Direito ao acesso à proteção judicial significava essencialmente o direito formal do indivíduo agravado de propor ou contestar uma ação. A teoria era a de que, embora o acesso à justiça pudesse ser um ‘direito natural’, os direitos naturais não necessitavam de uma ação do estado para sua proteção. Esses direitos eram considerados, anteriores ao Estado; sua preservação exigia apenas que o Estado não permitisse que eles fossem infringidos por outros. O Estado, portanto, permanece passivo, com relação a problemas tais como aptidão de uma pessoas para reconhecer seus direitos e defendê-los adequadamente na prática” (CAPPELLETTI e GARTH, 1988:09).
[5] Entendemos não haver aqui espaço para uma maior explicação do pensamento instrumentalista do processo, principalmente levado a cabo por Dinamarco, de modo que remetemos à leitura de nosso capítulo 2 na obra O Poder Judiciário e(m) Crise.
[6] Daí porque se escutar que “justiça tardia, não é justiça” ou pior, com a atual política de descongestionamento do Judiciário levada a cabo pelo CNJ em campanhas publicitárias de gosto e adequação paradigmática duvidosa se buscar afirmar que logo a “justiça não tardará, nem falhará”.
[7] Problemático, portanto, é perceber a miopia jurídica que assola a comunidade jurídica ao ponto de não consegui compreender o advogado como direito e consectário dos princípios contratuais como assinalam tão bem Soares (2004) e Tolentino (2007). Preocupante, então, foi a saída para o problema, autorizar a instauração de procedimento e a defesa de partes desassistidas por advogados em causas consideradas de “menor relevância econômica”. Agora, já aterradora foi a leitura da Associação dos Magistrados Brasileiros no sentido que a insurreição a esta norma, em sede da ADI 1.127-8/DF, tratava-se apenas de uma “defesa de mercado” por parte dos advogados.
[8] Na realidade brasileira, basta fazer um exame sobre a situação ainda desigual que se situa o funcionamento das Defensorias Públicas. A LC n. 132/2009 traz importantes modificações concretizando o ideal trazido pela Constituição de 1988.
[9] Essas class actions tem sua origem em 1938, baseadas na equity e pressupondo a existência de elevado número de titulares, de modo que um tratamento processual unitário e simultâneo por um representante em juízo.
[10] Não é, portanto, sem propósito que ainda se encontra em textos sobre o direito processual a afirmação de que o Judiciário é devedor de uma “prestação jurisdicional”, ou pior, órgão garantidor da “tutela” jurídica. Excluindo-se aqui desse cenário a participação democrática (em contraditório) da sociedade na formação do provimento.
[11] Para Calmon de Passos (2001:16), chega a afirmar que talvez o jovem Cappelletti da década de 50 tivesse tomado conhecimento do impacto e das conseqüências de suas idéias, talvez este teorizasse, inclusive, contra o Cappelletti da maturidade. Consciente
[12] Nunes (2008:142) lembra que a posição de Dinamarco nada tem de nova, sendo tributária do pensamento de Klein, do início do século passado.
[13] O Documento Técnico n. 319 é o que apresenta o maior nível de detalhamento quanto às propostas e expectativas do Banco Mundial para a reforma dos Judiciários latino-americanos, mas não é o único. Merece menção ainda o relatório anual n. 19, de 1997, “O Estado num mundo em transformação”, e o n. 24, de 2002, “Instituições para os mercados”. Conforme Silva Candeas (2004:19), o relatório de 1997 “discute o novo papel do Estado diante de acontecimentos como desintegração das economias planejadas da ex-União Soviética e da Europa Oriental, a crise fiscal do Estado-Providência, o papel do Estado no ‘milagre’ econômico do leste da Ásia, a desintegração de Estados e as emergências humanitárias em várias partes do mundo. Já o relatório de 2002 trata da criação de instituições que promovem mercados inclusivos e integrados e contribuem para um crescimento estável e integrado, para melhorar a renda e reduzir a pobreza”.
[14] Como alerta Melo Filho (2003:80): “O que a agência financeira internacional pretende, na realidade, é redesenhar as estruturas dos Poderes Judiciários da América Latina, a partir das premissas neoliberais, com o fito de adequá-las à prevalência do mercado sobre qualquer outro valor”.
[15] “(...) o Estado é essencial para a implantação dos fundamentos institucionais apropriados para os mercados, e a credibilidade do governo – a previsibilidade de suas normas e políticas e a constância de sua aplicação – pode ser tão importante para atrair investimentos privados quanto o conteúdo dessas normas e políticas” (SILVA CANDEAS, 2004:21-22).
[16] “Para o Banco Mundial, o Estado deve atuar como vetor de certezas. Na opinião do organismo, se um Estado muda freqüentemente as regras ou não esclarece as regras pelas quais ele próprio se guia, as empresas e os indivíduos não podem ter certeza hoje do que amanhã será lucrativo ou não lucrativo, lícito ou ilícito. Nesse caso, tendem a adotar estratégias arriscadas para se protegerem contra um futuro incerto – ingressando, por exemplo, na economia informal ou enviando capital ao exterior, prejudicando a economia nacional” (SILVA CANDEAS, 2004:33).
[17] Logo, uma solução mais democrática é a proposta por Souza Cruz (2004:412): utilizando os próprios instrumentos processuais existentes, dever-se-ia voltar a atenção para a coibição de posturas estratégicas que desnaturem o conteúdo comunicativo inerente aos recursos, tornando-os meros subterfúgios para protelações. Uma vez que o exame do caso específico em juízo pode demonstrar a existência de um abuso do direito processual, o que se teria é uma situação não tutelada pelo Direito, que, ao contrário, coíbe quando caracterizada em ilícito.
[18] Importante lembrar que as teorias semânticas do Direito são teorias que se apóiam nesse ponto de vista; portanto, compreendem o Direito como simples questão de fato (DWORKIN, 1999:38). Nessa linha, existiriam regras que estabeleceriam a atribuição de significado a uma determinada palavra; os advogados, os magistrados e outros juristas, compartilhando dessas regras, poderiam decidir quando uma proposição jurídica seria verdadeira ou falsa.
[19] Tomando como base a teoria de Austin, Dworkin mostra que o teste de pedigree seria a afirmação de que o Direito é aquilo que o soberano diz ser; correspondentemente, na tese sustenta por Hart, a regra de conhecimento desempenhará esse papel. Apesar de silente no texto, ao lançar um olhar sobre a teoria kelseniana, pode-se concluir que a norma fundamental seria a candidata ao teste.
[20] Para tanto, basta observar a postura assumida por Kelsen em sua Teoria Pura do Direito, afirmando que a decisão do tribunal é discricionária, mas permaneceria como jurídica desde que estivesse incluída dentro da moldura de interpretações possíveis (1999:390). Contudo, após a edição de 1960, Kelsen dá uma guinada completamente diferente em sua teoria – um giro decisionista, ao admitir que o tribunal possa escolher uma interpretação que se situe fora dessa moldura interpretativa (1999:392-395). Como bem afirma Cattoni de Oliveira (2001:51), tal posicionamento coloca em “panne” a teoria kelseniana, pois rompe com o postulado metodológico da separação entre teoria e sociologia do Direito.
[21] O convencionalismo e o pragmatismo possuem uma diferença básica: o segundo afirma que as pessoas nunca têm direito a nada, a não ser à decisão judicial, que, ao final, deve se revelar a melhor para a comunidade como um todo; e, por essa razão, não necessita estar atrelada a nenhuma decisão política do passado (DWORKIN, 1999:186).
[22] “Um argumento de princípio pode oferecer uma justificação para uma decisão particular, segundo a doutrina da responsabilidade, somente se for possível mostrar que o princípio citado é compatível com decisões anteriores que não foram refeitas, e com decisões que a instituição está preparada para tomar em circunstâncias hipotéticas” (DWORKIN, 2002:138).
[23] “Ao decidir um caso difícil Hércules sabe que os outros juízes decidiram casos que, apesar de não guardarem as mesmas características, tratam de situações afins. Deve, então, considerar as decisões históricas como parte de uma longa história que ele deve interpretar e continuar, de acordo com suas opiniões sobre o melhor andamento a ser dado à história em questão. Hércules adota o direito como integridade, uma vez que está convencido de que ele oferece tanto uma melhor adequação quanto uma melhor justificativa da prática jurídica como um todo” (LAGES, 2001:47).
[24] Segundo Habermas (1998:283): “La teoría del juez Hércules reconcilia las decisiones racionalmente reconstruidas del pasado con la pretensión de aceptabilidad racional en el presente, reconcilia la historia con la justicia. Esa teoría disuelve la «tensión entre la originalidad del juez y la historia institucional … los jueces han de emitir fallos nuevos sobre las pretensiones de partes que se presentan ante ellos, pero estos derechos políticos no se oponen a las decisiones políticas del pasado, sino que las reflejan»”.
[25] Dworkin (1999:276) reconhece que esse empreendimento pode ser considerado fantástico, mas não impossível: “Na verdade, alguns romances foram escritos dessa maneira, ainda que com uma finalidade espúria, e certos jogos de salão para os fins de semana chuvosos nas casas de campo inglesas têm estrutura semelhante. As séries de televisão repetem por décadas os mesmos personagens e um mínimo de relação entre personagens e enredo, ainda que sejam escritas por diferentes grupos de autores e, inclusive, em semanas diferentes”. Todavia, Dworkin (1999:276) faz uma advertência: “Em nosso exemplo, contudo, espera-se que os romancistas levem mais a sério suas responsabilidade de continuidade; devem criar em conjunto, até onde for possível, um só romance unificado que seja da melhor qualidade possível”.
[26] A questão pode ser, então, examinada pelo prisma de duas dimensões muito utilizadas: “a dimensão ‘formal’, que indaga até que ponto a interpretação se ajusta e se integra ao texto até então concluído, e a dimensão ‘substantiva’, que considera a firmeza da visão sobre o que faz com que um romance seja bom e da qual se vale a interpretação” (DWORKIN:2001:236). Mas ainda assim é possível uma discordância razoável, sem que, contudo, se caia no ceticismo de afirmar que tudo é uma questão meramente subjetiva. “Nenhum romancista, em nenhum ponto, será capaz de simplesmente ler a interpretação correta do texto que recebe de maneira mecânica, mas não decorre desse fato que uma interpretação não seja superior às outras de modo geral. De qualquer modo, não obstante, será verdade, para todos os romancistas, além do primeiro, que a atribuição de encontrar (o que acreditam ser) a interpretação correta do texto até então é diferente da atribuição de começar um novo romance deles próprios” (Dworkin, 2001:236-237).
[27] Importante esclarecer que essa flexibilização não destrói a distinção entre interpretação e decisões novas sobre o que o Direito deve ser (DWORKIN, 2001:240-241). Um juiz, ao verificar a finalidade ou a função do direito, acabará por assumir uma concepção de integridade e de coerência do Direito, tomado como uma instituição, o que irá tutelar e limitar suas convicções pessoais.
[28] “Pues la precomprensión paradigmática del derecho sólo puede restringir la indeterminación del proceso de decisión teoréticamente dirigido y garantizar un grado suficiente de seguridad jurídica si es intersubjetivamente compartida por todos los miembros de la comunidad jurídica y expresa una autocomprensión constitutiva de la comunidad jurídica. Mutatis mutandis, esto vale también para una comprensión procedimentalista del derecho que cuenta de antemano con una competencia entre diversos paradigmas, regulada discursivamente. Por esta razón es menester un esfuerzo cooperativo para invalidar la sospecha de ideología bajo la que tal comprensión de fondo se halla. El juez individual ha de entender básicamente su interpretación constructiva como una empresa común, que viene sostenida por la comunicación pública de los ciudadanos” (HABERMAS, 1998:295).
[29] “Tales paradigmas descargan a Hércules de la supercompleja tarea de poner en relación con los rasgos relevantes de una situación aprehendida de la forma más completa posible todo un desordenado conjunto de principios aplicables sólo prima facie, y ello a simple vista y sin más mediaciones. Pues entonces también para las partes será pronosticable el resultado, en la medida en que el correspondiente paradigma determine una comprensión de fondo que los expertos en derecho comparten con todos los demás miembros de la comunidad jurídica” (HABERMAS, 1998:292).
[30] Por exemplo, a retenção de recursos através do artifício da repercussão geral, súmulas vinculantes, súmulas impeditivas de recurso, o atual artigo 285-A do Código de Processo Civil, o aumento dos poderes do relator em recursos, etc.
[31] “Em primeiro lugar, (...) devem pressupor que estão atribuindo idêntico significado aos proferimentos que utilizam, isto é, devem pressupor a generalidade dos conceitos: presume-se que falantes e ouvintes podem entender as expressões gramaticais que utilizam de forma idêntica (...). Em segundo lugar, eles devem pressupor que os destinatários estão sendo responsáveis, autônomos e sinceros uns com outros. Ou seja, devem pressupor que entre falante e ouvinte se estabelece uma relação de respeito e reconhecimento mútuo, caso contrário se estaria desqualificando o outro como interlocutor (...). E em terceiro lugar, pressupor que falante e ouvinte vinculam os seus proferimentos a pretensões de validade que ultrapassam o contexto. Essas pretensões de validade são 1) à verdade proposicional (...); 2) à veracidade subjetiva (...); 3) à correção normativa (...)” (SALCEDO REPOLÊS, 2003:49-50).
[32] O Direito, portanto, é capaz de substituir o lugar das garantias metassociais que – em sociedades tradicionais de tipo medieval – eram derivadas de uma amálgama que estabilizava a tensão entre facticidade e validade das pretensões, “na medida em que o ‘sagrado’ não só significava uma autoridade, como também limitava o campo de problematização” (CHAMON JUNIOR, 2005:227). As práticas passadas ao longo de cada geração seriam dotadas de uma natureza sagrada, imutável, o que as imunizaria de críticas, de modo que sua observância seria garantida pelo medo da sanção; isso acabaria por fundir facticidade (coerção/ameaça) e validade (força vinculante).
[33] Resumindo a questão, temos que: “O papel principal do Direito no que se refere à integração social se deve ao fato de que o risco do dissenso resta neutralizado agora não mais por uma autoridade sacra ou por instituições fortes que mantinham fora do criticável determinados conteúdos axiológicos e deontológicos. O posto de centralidade do Direito se deve a uma limitação na medida em que a validade das normas não pode ser questionada quando de uma pretensão individual orientada ao êxito. O Direito legítimo é coercitivo e esta coercibilidade possível reflete a aceitabilidade racional e não-questionabilidade da validade desse fato – cisão entre facticidade e validade. Do contrário, o risco de dissenso estaria absurdamente largado, o que colocaria em risco a própria solidariedade social garantida, em última instância, pela ação comunicativa que, assim, fica aliviada de buscar soluções orientadas ao entendimento” (CHAMON JUNIOR, 2005:236).
[34] “Isso porque na própria validade jurídica a facticidade da imposição do Direito por via estatal entrelaça-se com a força legitimadora de um processo legislativo que pretende ser racional, justamente, por fundamentar a liberdade. Em outros termos, isso se revela no modo ambíguo com que o próprio Direito se endereça aos seus destinatários e deles espera obediência: eles podem agir estrategicamente em face das conseqüências previsíveis de uma possível violação das normas ou podem cumprir as normas por respeito aos resultados da formulação comum da vontade que exige legitimidade para si. O conceito kantiano de legalidade já expressava, segundo Habermas, esse duplo sentido da validade jurídica: As normas jurídicas são a um só tempo ‘leis coercitivas’ e ‘leis de liberdade’” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:175).
[35] “(...) ou seja, garantir de um lado a legalidade do procedimento no sentido de uma observância média das normas que em caso de necessidade pode ser até mesmo impingida através de sanções, e, de outro lado, a legitimidade das regras em si, da qual se espera que possibilite a todo momento um cumprimento das normas por respeito à lei” (HABERMAS, 2002:287).
[36] “En esta formulación se contienen conceptos que necesitan de explicación. El predicado «válido» se refiere a normas de acción y a los correspondientes enunciados normativos generales o universales; expresa un sentido inespecífico de validez normativa, que es todavía indiferente frente a la distinción entre moralidad y legitimidad. Por «normas de acción» entiendo las expectativas de comportamiento generalizadas en la dimensión temporal, en la social y en la de contenido. «Afectado» llamo a cualquiera a quien puedan concernir en sus intereses las consecuencias a que presumiblemente pueda dar lugar una práctica general regulada por normas. Y por «discurso racional» entiendo toda tentativa de entendimiento acerca de pretensiones de validez que se hayan vuelto problemáticas, en la medida en que esa tentativa tenga lugar bajo condiciones de comunicación que dentro de un ámbito público constituido y estructurado por deberes ilocucionários posibiliten el libre procesamiento de temas y contribuciones, de informaciones y razones. Indirectamente esa expresión se refiere también a las «negociaciones», en la medida en que éstas vengan reguladas también por procedimientos discursivamente fundados” (HABERMAS, 1998:172-173, grifo no original).
[37] Bahia (2003:239) lembra que, por isso, a liberdade comunicativa deve ser compreendida como a “possibilidade dos indivíduos tomarem posição frente a uma pretensão de validade levantada por outrem, destinada ao entendimento intersubjetivo. Essa liberdade pressupõe uma atitude performativa (obrigação ilocucionária) dos participantes, que querem se entender sobre algo e pressupõem uma tomada de posição do outro”.
[38] Como lembra Günther (1995:38), trata-se de modelos ideais, que não necessariamente apresentam todas as suas características na prática social.
[39] “To be sure, the billiard ball model concedes that the democratic legislator can always intervene in the judge-made law in order to change it for the adjudication of future cases. In this way, the legislator retains an institutional supremacy over adjudication. But then, it’s the same old story: the intervention of the legislator is only a new message from another planet, and the judges will again have to interpret the new law according to their own rules” (GÜNTHER, 1995:37).
[40] “On the one hand, Habermas speaks of the coherence of a legal system as a whole, which should guide consistent decision making in particular case. This sounds similar to Dworkin’s theory of law as integrity, which has to be realized by the judge alone. But Habermas rejects Dworkin’s suggestion of constructive interpretation, because it links the validity of a legal proposition to the ideal of a complete theory, which is necessarily metaphysical in character. Furthermore, it leaves interpretation up to the judge as an individual” (GÜNTHER, 1995:48).