A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 37, § 6º, determina que “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
Adotou a Constituição, assim, a teoria da responsabilidade objetiva estatal, em razão de que bastam o ato ou a omissão, o dano e o nexo de causalidade, sendo desnecessária a perquirição sobre a intenção do agente. Deve-se observar, ainda, que o foco da norma constitucional é a reparação do dano, e não o caráter lícito ou ilícito da ação ou da omissão do agente.
Nesse sentido, Edmir Netto de Araújo afirma que “a adoção, a partir da Constituição de 1946, da teoria objetiva do risco (integral ou administrativo, que para nós é o mesmo), deslocou o respaldo da obrigação de indenizar do Estado para os ditames da teoria da solidariedade patrimonial da coletividade frente ao dano sofrido por certo administrado, em decorrência de atividade ou omissão do Estado, que da coletividade é a síntese. Com isso, mesmo sendo lícito o ato (ou omissão), ou, ainda, juridicizado para outros ramos do Direito, ou até não identificado qualquer agente causador do dano (fatos, coisas e atividades à guarda do Estado), no campo da responsabilidade civil o Poder Público não pode se eximir de indenizar o prejuízo decorrente, exceto na hipótese da ocorrência de alguma excludente de responsabilidade”[1].
Segundo Alexandre de Moraes, “a responsabilidade objetiva do risco administrativo exige a ocorrência dos seguintes requisitos: ocorrência do dano, ação ou omissão administrativa, existência de nexo causal entre o dano e a ação ou omissão administrativa e ausência de causa excludente da responsabilidade estatal”[2]. Não há, assim, qualquer menção à licitude ou ilicitude da ação ou da omissão estatal; a ocorrência de dano, por sua vez, é estritamente necessária.
Yussef Said Cahali, por sua vez, afirma que, “tradicionalmente, tal responsabilidade compreende a reparação dos danos causados pelos atos ilícitos, não abrangendo, desse modo, a indenização devida em decorrência de atividade legítima do Poder Público, como sucede nos casos de desapropriação, de requisição, de execução compulsória de medidas sanitárias; embora seja certo que, atualmente, aquela responsabilidade desfrute de maior amplitude, para compreender também os danos injustos causados por uma atividade lícita da Administração”. Segue o autor, afirmando que “a distinção é proveitosa, de forma que a doutrina tende a vislumbrar o instituto do ressarcimento verdadeiro e próprio, diverso do instituto da indenização dos danos legitimamente provocados; abrange esta os danos causados em razão do sacrifício de direitos particulares, mas por força do exercício de uma faculdade concedida em lei ao Poder Público; e reservando-se aquela para os casos de responsabilidade por danos ilegítimos, de atividade lesiva de direito de terceiros” [3].
Nesse mesmo sentido, afirmam José Antonio Lomonaco e Flávia Vanini Martins Martori que a Constituição “não especifica que os danos causados pela administração tenham, necessariamente, de ser derivados de atos ‘ilícitos’ (...). Não seria justo, e talvez pudesse configurar verdadeira violação a ratio legis interpretá-la diferentemente, isto é, considerando-se a necessidade de constar do ato da administração a vertente da ilicitude, quando na verdade não o desejou assim o legislador”[4].
Confirma esse entendimento Margarida Cortez que, ao escrever sobre o direito português, sustenta que, “com efeito, para haver ilicitude e, consequentemente, responsabilidade é necessário – entre outros requisitos – que a Administração tenha lesado direitos ou interesses legalmente protegidos do particular, fora dos limites consentidos pelo ordenamento jurídico. A essência da ilicitude radica, pois, na lesão antijurídica de interesses normativamente qualificados e não no desvalor subjectivo da acção, que, não obstante, pode (também) concorrer para a formulação do juízo de ilicitude. É que não nos podemos esquecer de que a função da responsabilidade civil é privilegiadamente reparadora: o propósito principal é o de reparar danos e não o de sancionar condutas, razão pela qual não é possível prescindir do desvalor do resultado, até porque em sede de responsabilidade civil não revela a tentativa” [5].
Em seguida, conclui a autora portuguesa que “a tendência parece ser, aliás, a de valorizar a lesão de posições jurídicas substantivas independentemente do animus que subjaz à conduta lesiva, o que revela uma propensão para centrar no lesado o fenómeno da responsabilidade civil e para restituir a este instituto uma função essencialmente reparadora”[6].
Não é, contudo, qualquer ato ou omissão estatal ou de particular no exercício de serviço público que limite direitos de particulares (e que, portanto, causa prejuízos à esfera patrimonial desses particulares, mas de maneira genérica) que deve ser indenizado.
Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “segundo alguns autores, o Estado só responde se o dano decorrer de ato antijurídico, o que deve ser entendido em seus devidos termos. Ato antijurídico não pode ser entendido, para esse fim, como ato ilícito, pois é evidente que a licitude ou ilicitude do ato é irrelevante para fins de responsabilidade objetiva; caso contrário, danos decorrentes de obra pública, por exemplo, ainda que licitamente realizada, não seriam indenizados pelo Estado. Somente se pode aceitar como pressuposto da responsabilidade objetiva a prática de ato antijurídico s este, mesmo sendo lícito, for entendido como ato causador de dano anormal e específico a determinadas pessoas, rompendo o princípio da igualdade de todos perante os encargos sociais. Por outras palavras, ato antijurídico, para fins de responsabilidade objetiva do Estado, é o ato ilícito e o ato lícito que cause dano anormal e específico”[7].
Cristiana Corrêa Conde Faldini afirma que “a existência ou inexistência do dever de indenizar não se decide pela qualificação da conduta geradora do dano – lícita ou ilícita – mas pela qualificação da lesão sofrida”[8]; mais adiante, acrescenta Cristiana Corrêa que, “tratando-se de atos lícitos, que de forma indireta impõem sacrifícios de direitos (genericamente considerados) ou lesão de direitos a alguns particulares, que excedem o limite do razoável a que devem se submeter, e, não havendo tal ato – ou sua norma autorizadora – estabelecido indenização correspondente, nasce a pretensão indenizatória que, até por exclusão, deve ser processada pela modalidade objetiva. Isso porque exigir a submissão do assunto à responsabilidade subjetiva e perquirir de culpa que, dada a licitude do ato, inexiste, deixaria ao desamparo os administrados que tiveram seus direitos sacrificados”[9].
Ainda nesse sentido, vale registrar a opinião de Gilmar Ferreira Mendes, para quem “a existência ou inexistência do dever de reparar não se decide pela qualificação da conduta geradora do dano (lícita ou ilícita), mas pela qualificação da lesão sofrida. Logo, o problema da responsabilidade resolve-se no lado passivo da relação, não em seu lado ativo. Importa que o dano seja ilegítimo, não que a conduta causadora o seja. Por isso, não basta para caracterizar a responsabilidade estatal a mera deterioração patrimonial sofrida por alguém. Não é suficiente a simples subtração de um interesse ou de uma vantagem que alguém possa fruir, ainda que legitimamente. Quatro são as características do dano indenizável: 1) o dano deve incidir sobre um direito; 2) o dano tem de ser certo, real; 3) tem de ser um dano especial; e, por último, 4) há de ocorrer um dano anormal”.
Segue Gilmar Ferreira Mendes, afirmando que “o dano especial é aquele que onera, de modo particular, o direito do indivíduo, pois um prejuízo genérico, disseminado pela sociedade, não pode ser acobertado pela responsabilidade objetiva do Estado” [10].
Assim, nas palavras de Edmir Netto de Araújo, “independe a responsabilidade da ilicitude dos atos, porque decorre fundamentalmente do dano e do consenso que o respectivo prejuízo deve ser repartido entre a coletividade (justiça social e eqüidade), elementos que lastreiam a teoria objetiva ‘sem culpa’ da responsabilidade”. E segue, afirmando que, “com efeito, admite-se o amparo ao particular prejudicado por ato lícito imputável ao Estado, quando há sacrifício de direito patrimonial imposto compulsoriamente por este, para permitir a prevalência de um interesse público ou social relevante, atingindo unidades ou parcelas localizadas de particulares, sendo o dano conscientemente assumido pelo agente para esse fim, o que vem a gerar a responsabilidade objetiva” [11].
Vale registra que Maria Sylvia Zanella Di Pietro exemplifica a responsabilidade do Estado pela prática de ato lícito com os artigos 188, 929 e 930 do Código Civil[12].
Nos termos do artigo 188 do Código Civil, não constituem atos ilícitos os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido e a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente, desde que o ato não exceda os limites do indispensável para a remoção.
Contudo, apesar de não constituírem atos ilícitos, por força dos artigos 929 e 930 do Código Civil, se não forem culpados, serão indenizados a pessoa ou o dono da coisa pelos prejuízos que sofreram, assim como terá o autor do dano ação de regresso, para haver a importância que tiver ressarcido ao lesado, se o perigo correr por culpa de terceiro.
Por fim, importante mencionar julgado do Supremo Tribunal Federal, em ação de indenização ajuizada por particular contra Município, em razão de danos decorridos da construção de viaduto, pelo qual “I - A responsabilidade civil do Estado, responsabilidade objetiva, com base no risco administrativo, que admite pesquisa em torno da culpa do particular, para o fim de abrandar ou mesmo excluir a responsabilidade estatal, ocorre, em síntese, diante dos seguintes requisitos: a) do dano; b) da ação administrativa; c) e desde que haja nexo causal entre o dano e a ação administrativa. A consideração no sentido da licitude da ação administrativa é irrelevante, pois o que interessa, é isto: sofrendo o particular um prejuízo, em razão da atuação estatal, regular ou irregular, no interesse da coletividade, é devida a indenização, que se assenta no princípio da igualdade dos ônus e encargos sociais”[13].
Em conclusão, para a existência da responsabilidade estatal independe o caráter lícito ou ilícito da ação ou da omissão estatal. O foco da ordem jurídica moderna não é sancionar a conduta, mas, sim, reparar o dano causado, ainda que por conduta lícita. Para a responsabilidade estatal, bastam, assim, o dano indenizável, o ato ou omissão estatal (lícito ou ilícito) e o nexo de causalidade.
Bibliografia.
Araújo, Edmir Netto de. Curso de direito administrativo. 4ª ed., São Paulo, Saraiva, 2009.
Cahali, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado. 3ª ed., São Paulo, RT, 2007.
Cortez, Margarida. Responsabilidade civil da Administração por actos administrativos ilegais e concurso de omissão culposa do lesado. Coimbra Editora, Coimbra, 2000.
Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 21ª ed., São Paulo, Atlas, 2008.
Faldini, Cristiana Corrêa Conde. Responsabilidade do Estado pela prática de atos lícitos, in Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. São Paulo, nº 67/68, janeiro/dezembro de 2008, p.67-130.
Lomonaco, José Antonio; Martori, Flávia Vanini Martins. Responsabilidade civil do Estado por ato lícito, in Revista síntese de direito civil e processual civil. Porto Alegre, ano 1, nº 6, julho/agosto de 2000, p.132-141.
Mendes, Gilmar Ferreira; Coelho, Inocêncio Mártires; Branco, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 4ª ed., São Paulo, Saraiva, 2009.
Moraes, Alexandre de. Direito constitucional administrativo. São Paulo, Atlas, 2002.
Notas
[1] Curso, p.763.
[2] Direito constitucional administrativo, p.233.
[3] Responsabilidade civil do Estado, p.13.
[4] Responsabilidade civil, p.139.
[5] Responsabilidade civil, p.54.
[6] Responsabilidade civil, p.54. Nesse mesmo texto, em seguida, a autora examina a questão nos ordenamentos italiano e espanhol.
[7] Direito administrativo, p.614.
[8] Responsabilidade do Estado, p.94
[9] Responsabilidade do Estado, p.99-100.
[10] Curso, p.892-893.
[11] Curso, p.763-764.
[12] Direito administrativo, p.614-615.
[13] Recurso extraordinário nº 113.587-SP, Ralator Ministro Carlos Velloso, 2ª Turma, de 18/2/1992.