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Ministério Público brasileiro: história de uma luta institucional

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Agenda 03/03/2013 às 11:20

O Ministério Público vem se projetando com uma escalada de avanço institucional, que se deu pela conquista de novas e mais relevantes atribuições, com correlatas garantias institucionais e pessoais, tudo com assento constitucional.

Sumário: Introdução. 1. O Ministério Público e o Sistema de Justiça na Sociedade pós-moderna: síntese da origem e evolução histórica no Brasil. 1.1 O avanço da exclusiva posição de acusador criminal para a de órgão interveniente em processos cíveis, no período de redemocratização do Brasil. 1.2 De órgão interveniente em processos cíveis para órgão agente em demandas de interesse social. 1.3 O Ombudsman brasileiro. Conclusão.


Introdução:

De todas as instituições da República brasileira, uma das que mais se projetou nas últimas décadas, sem dúvida, foi o Ministério Público. Quem, dentre nós, esteve na carreira nestes tempos privilegiados pode testemunhar esta escalada de avanço institucional que se deu pela conquista de novas e mais relevantes atribuições, com correlatas garantias institucionais e pessoais, tudo com assento constitucional.

O mais intrigante dessa história e talvez a causa mais provável do seu êxito, todavia, não reside em fatores exógenos, mas sim em operações endógenas que revolucionaram o Ministério Público brasileiro. Ou seja, de uma instituição apagada e burocrática, o parquet se projeta para o centro da vida cidadã, sobretudo, como consequência da vontade e das visões estratégicas gestadas no próprio sistema institucional e por fim aprovadas no processo legislativo, inclusive constituinte originário e derivado.

Outra curiosidade é que um aspecto próprio da atividade do promotor de justiça que sempre foi entrevisto com suspeição e cautela é que parece ter sido a mola propulsora da evolução institucional: o voluntarismo político dos agentes do Ministério Público, que desde o Estado Novo[1], revelaram seu interesse em transformarem-se em agentes políticos da cidadania.

No entanto, após toda esta escalada repleta de êxitos materiais e legislativos, o Ministério Público se depara com novos e instigantes desafios: manter os avanços mesmo frente a  momentos de crise do Estado e de ameaças de retrocessos institucionais de origem externa, mas também interna,  fomentados por setores que insistem em posturas conservadoras, quando não retrógradas e por atitudes de acomodação em face das novas atribuições e do novo perfil institucional que a sociedade está a exigir deste sistema institucional.

Antes de ingressar nos aspectos históricos do Ministério Público, é necessário esclarecer que, conquanto a Constituição de 1988, no seu art. 127, § 1º, determine como princípios institucionais do Ministério Público Brasileiro, a unidade e a indivisibilidade, a verdade é que coexiste um Ministério Público da União, com diversas subdivisões (Ministério Público Federal, do Trabalho, do Distrito Federal, da Justiça Militar e, a rigor, o Ministérío Público Eleitoral) e um Ministério Público Estadual. A chefia do Ministério Público da União está a cargo do Procurador Geral da República, enquanto a dos Ministérios Públicos Estaduais, dos respectivos Procuradores Gerais de Justiça. Os integrantes dos Ministérios Públicos da União são denominados Procuradores da República (MPF) Procuradores do Trabalho (MPT) etc., enquanto os integrantes dos Ministérios Públicos estaduais em primeira instância eram denominados Promotores Públicos e, a partir da Constituição de 1988, Promotores de Justiça, os integrantes dos Ministérios Públicos estaduais que atuam junto aos Tribunais de Justiça estaduais, são denominados Procuradores de Justiça. Uma vez que muitos outros integrantes de carreiras jurídicas públicas também levam a denominação de procuradores (Procuradores do Estado, Procuradores da Fazenda Nacional etc.) a melhor expressão para indicar um integrante do Ministério Público no Brasil é mesmo “Promotor de Justiça”, que deverá, em futuro breve, denominar todos os integrantes dos Ministérios Públicos estaduais.

Convém ainda registrar que o regramento constitucional do Ministério Público, contido no art. 127 e seguintes da CF/88, vale para todos os diversos subsistemas da instituição e vem complementado em Leis Infraconstitucionais Federais e Estaduais. Deste modo, por exemplo, a escolha do Procurador Geral da República, chefe do Ministério Público da União pelo Presidente da República, guarda alguma simetria com a escolha dos Procuradores-Gerais de Justiça, chefes dos Ministérios Públicos Estaduais, pelos respectivos governadores estaduais.


1. O Ministério Público e o Sistema de Justiça na Sociedade pós-moderna: síntese da origem e evolução histórica no Brasil.

Com os esclarecimentos prestados em sede introdutória, passa-se à história do Ministério Público brasileiro. Sinteticamente, pode-se asseverar que há formas embrionárias da instituição no Brasil Colônia e no Brasil Império, mas naquele tempo não possuía uma organização autônoma, garantias ou independência dos seus membros, então nomeados pelo Executivo. Não se reconhecia o Ministério Público como uma instituição, havendo referência apenas aos “promotores públicos”, de forma que, não referidos na Constituição Imperial de 1824, o primeiro Decreto, que regula a atuação destes agentes, é o de n°. 120, de 21 de janeiro de 1843, onde se constata a ausência absoluta de garantias e de independência em relação ao Poder Executivo, como segue:

Os promotores serão nomeados pelo Imperador no Município da Corte, e pelos presidentes nas províncias, por tempo indefinido; e servirão enquanto convier a sua conservação ao serviço público sendo, caso contrário, indistintamente demitidos pelo Imperador, ou pelos presidentes das províncias nas mesmas províncias.

O Ministério Público Brasileiro, a exemplo de outros países, legaliza-se na planície infraconstitucional, antes de subir aos locais privilegiados em que ora se situa no constitucionalismo contemporâneo, de modo que a primeira Constituição da República de 1891, não lhe fez qualquer alusão. Com o processo de codificação do Direito nacional, que se seguiu à Proclamação da República em 1889, o Ministério Público foi recebendo variadas atribuições, consolidando sua posição institucional nos mecanismos judiciais e legais vigentes[2]. Sem dúvidas, foi o Ministro da Justiça do Governo Provisório, Campos Salles, quem, no limiar da República, inaugurou uma caracterização institucional do Ministério Público no Brasil, porquanto, na exposição de motivos do Decreto 848, de 11 de outubro de 1890, que dispunha sobre a Lei Orgânica da Justiça Federal, registrou que, “o Ministério Público é instituição necessária em toda organização democrática e imposta pelas boas normas de justiça, à qual compete: velar pela execução das leis, decretos e regulamentos que devam ser aplicados pela Justiça Federal e promover a ação pública onde ela convier”.

O que se pode afirmar desde um panorama resumido da história institucional do Ministério Público brasileiro é que, em que pese os avanços e recuos de sua regulamentação constitucional, a instituição sempre manteve aquelas funções que, legal e socialmente, conquistara junto ao Poder Judiciário, firmando-se como uma necessidade da organização estrutural do Sistema de Justiça no Estado brasileiro, que ultrapassava sua condição legal momentânea, ditada ao sabor dos interesses políticos de cada fase histórica. A esse respeito, calha transcrever o seguinte escólio que sintetiza bem as conclusões ora adotadas:

Constata-se, portanto, que a evolução histórica do Ministério Público não pode, de maneira alguma, ser confundida com o tratamento a ele dispensado pelos vários textos constitucionais, decorrência de circunstâncias políticas e legislativas, sem uma repercussão direta na vida da instituição. Na mesma medida, o sensível progresso que representou o texto constitucional de 1988, em grande parte, apenas espelhou um crescimento institucional que já se verificara na prática na legislação infraconstitucional[3].

 Com efeito, foi na Constituição promulgada de 1934, durante o Governo Vargas, que esta instituição ganhou regramento formal, integrada ao Capítulo VI, na condição de órgão de cooperação nas atividades governamentais (denominação que, em realidade é até mais precisa do que a adotada pela Constituição Federal de 1988, como se verá mais adiante). O Procurador-geral da República continuava sendo nomeado pelo Presidente da República, mas mediante prévia aprovação do Senado, ao passo que os demais integrantes ingressariam na carreira mediante concurso público e adquiririam estabilidade, sendo esta a única garantia da classe, que condicionava a perda da função a um processo administrativo em que assegurada ampla defesa. Ademais, foi determinada a organização do Ministério Público nos Estados e Territórios, mediante lei federal. Para Gunter Axt, “as conquistas institucionais e funcionais asseguradas ao Ministério Público nesse momento inscrevem-se num movimento amplo de formação da sociedade burguesa, quando, simultaneamente, começam a ser reconhecidos os direitos coletivos e os interesses indisponíveis e conquista-se espaço também para os direitos individuais da cidadania[4]”.

Ainda no  Governo do Presidente Getúlio Vargas,  a  Constituição outorgada de 1937, todavia, regrediu em relação ao texto anterior, omitindo o regramento anterior e, apenas vagamente, mencionando a livre escolha do procurador-geral da República pelo chefe da Nação, situando o Ministério Público como “agente do Poder Executivo”, função que viria a desempenhar com vigor no regime militar pós 1969. A expansão institucional que a carta anterior, em sua curta existência anunciava, acabou refluindo no Estado Novo. Acentua, todavia, o historiador gaúcho que:

... paradoxalmente, nos Estados, o Ministério Público não deixou de crescer, tanto em envergadura quanto em atribuições. O Código de Processo Civil, de 1939, e o Código de Processo Penal, de 1941, consolidaram atribuições e padronizaram procedimentos em todo o País. Nesse sentido, a instituição acompanhava as tendências de complexificação das relações sociais e de ampliação da esfera de intervenção do Estado na sociedade. Em contrapartida, houve um verdadeiro refluxo em matéria de garantias funcionais[5].

A Carta de 1946, que coincide com o fim do primeiro governo de Vargas e com a redemocratização do país, deu ao Ministério Público um status equiparável apenas ao da Constituição de 1988, disciplinando-o em título próprio, sem vinculação a qualquer dos poderes do Estado. Como costuma ocorrer nas Cartas democráticas, na regulamentação de 1946, o Ministério Público passou a contar com as garantias de estabilidade e inamovibilidade, fixando-se regras de ingresso na carreira por concurso de provas e títulos.

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Com o regime militar imposto em 1964, o texto constitucional de 1967, e a Emenda de 1969, mantiveram, em regra, a mesma estrutura do Ministério Público de 1946. Neste ponto, paradoxalmente, houve notável crescimento das atribuições do chefe do Ministério Público da União – o Procurador Geral da República –  porque nomeado e demitido livremente pelo Presidente da República. Outorgou-se-lhe o monopólio da iniciativa do controle concentrado de constitucionalidade (ações de inconstitucionalidade in abstrato), atribuído ao chefe do Ministério Público Federal, que impedia o exercício de tal potencialidade por outros entes políticos ou sociais, tal como se possibilita na sistemática atual da CF/88. Tal exclusividade do chefe nacional do Ministério Público da União foi útil aos governos ditatoriais posteriores a 1964 [6].

A Carta Constitucional vigente, promulgada durante a reabertura democrática em 1988, inovou em relação às anteriores, porquanto definiu precisamente o Ministério Público (arts. 127 a 130A), assegurando-lhe autonomia funcional e administrativa; organizou a instituição, estabeleceu critérios formais para escolha do Procurador-geral da República e dos Estados, fazendo submeter a demissão do procurador-geral da República à aprovação do Senado e a dos procuradores-gerais dos Estados às Assembléias Legislativas, consagrou garantias e funções. Deu exclusividade ao Ministério Público para a ação penal e ampliou sua titularidade para o inquérito civil e para a ação civil pública em relação a “outros interesses difusos e coletivos”. Em testemunho desta evolução legislativa transcreve-se depoimento do Ministro José Paulo Sepúlveda Pertence, Procurador Geral da República ao tempo da promulgação da CF/88:

Tenho podido repetidamente enfatizar – desde as vésperas da sua promulgação – que, na Constituição de 1988, nenhuma instituição do Estado saíra tão fortalecida e prestigiada como o Ministério Público, em relação aos textos constitucionais anteriores: deu-se-lhe, no texto fundamental de 1988 – reafirmei no Tribunal – “um tratamento constitucional de riqueza inédita, em termos de abrangência e densidade normativa, no Brasil e alhures, seja sob o prisma da organização e da autonomia da instituição em relação aos Poderes de Estado, seja sob o estatuto básico das garantias e das atribuições dos seus órgãos de atuação” (grifos no original).[7]

Todavia, é forçoso registrar que a consagração do Ministério Público na Constituição Federal de 1988 representa o resultado de uma constelação de razões que para isso concorreram, especialmente, esforços endógenos da instituição, onde se saíram vitoriosos grupos ideologicamente voltados a uma atitude transformadora da sociedade brasileira e abarcadora de novas e imensas responsabilidades. Ações inteligentes e bem articuladas com o mundo político governamental foram selando vitórias legislativas da instituição. Tal como ocorre com os direitos fundamentais, a concepção atual do Ministério Público brasileiro nasceu no plano ideológico-filosófico de autênticos founding fathers da instituição, aos poucos ganhou espaço nas planícies infraconstitucionais, reforçado por práticas cotidianas dos seus agentes, e, por fim, foi situar-se no altiplano constitucional, especialmente em 1988.

1.1 O avanço da exclusiva posição de acusador criminal para a de órgão interveniente em processos cíveis, no período de redemocratização do Brasil.

Para explicar um pouco melhor as fundações históricas do Ministério Público, convém retroagir à sua tradicional função acusatória no processo penal, que o caracteriza na maioria dos países ocidentais e, não raro, é mesmo sua função exclusiva. Com efeito,  promotores públicos alcançaram a tradicional função de titulares da ação penal pública, e, na sua esteira, um primeiro grande reconhecimento: o de advogados da sociedade nas causas de natureza criminal. Se de início esta acusação era em nome do Rei, com o ideário burguês buscou-se limitar o poder central, o que justificava a transformação de procedimentos inquisitoriais para o processo acusatório, em que acusador e julgador são bem diferenciados.

Convinha apregoar que a acusação fazia-se necessária no interesse da sociedade, como parte do novo contratualismo, que transferia a noção de soberania do monarca para o povo. Nisto já reside a primeira guinada histórico-filosófica do Ministério Público que, de representante do rei no papel acusatório, passou a assumir um discurso de elevado poder ideológico, tão propagado na sua atuação funcional, consistente em atribuir-se a si próprio a missão de defesa de interesse da sociedade, quando acusava criminalmente os infratores[8].

Entretanto, conquanto figurasse como representante do “povo” na acusação criminal, posição estrutural que lhe concedeu legitimidade intensa, o Ministério Público brasileiro via na simples atuação criminal limites de horizonte que o diferenciavam em muito da complexa atividade jurisdicional, cuja similitude ansiava, como meio de justificar igualdade de garantias institucionais, funcionais e remuneratórias.

Oprimido historicamente na função penal entre a Polícia Judiciária e o Poder Judiciário, o parquet já não se contentava com a obscura função burocrática de oferecer denúncias, elaboradas, exclusivamente, com base na poderosa e inquestionável atividade inquisitorial da polícia e acompanhar os processos dirigidos exclusivamente pelo Poder Judiciário com suas divergências interpretativas e distanciamentos da realidade social. Opresso entre dois subsistemas muito mais fortes e jungido à banal função de interlocutor entre eles, o Ministério Público era, no entanto, integrado por agentes que, na sua maioria, não se conformavam com esta modesta posição e pretendiam ganhar espaços do mundo, sistematizando problemas da crescente e complexa sociedade burguesa no Brasil, que tem seu limiar no Pós-Guerra. O espaço que então se descortinava era a atuação cível que permitiria uma pretendida equiparação (inclusive salarial) com a magistratura, a exemplo do Ministério Público europeu.

Como se sabe, atualmente, o Ministério Público brasileiro atua em duas frentes com características diversas:

a) Na área criminal, predominantemente age como parte autora acusatória na ação penal pública e como “fiscal da lei” nas pouquíssimas ações penais privadas em andamento na justiça;

b) Na esfera cível, hoje denominada mais amplamente “não-criminal”, historicamente atuou como “fiscal da lei” (custos legis) acompanhando processos em que pela natureza da lide ou qualidade especial da parte fosse obrigatória sua intervenção. Em menor grau, o Ministério Público também propunha ações cíveis de interdição, extinção do pátrio-poder, alimentos etc. Atualmente, sobretudo a partir da década de 1980, a atuação cível do Ministério Público, ou seja, extrapenal, revolucionou a instituição através dos instrumentos do inquérito civil e da ação civil pública para tutela dos chamados “novos direitos” ou direitos de segunda e terceira geração, também denominados coletivos e difusos, ou apenas, coletivos “lato sensu”.

Nem sempre, contudo, foi assim. O caminho para a consagração na tutela dos direitos coletivos lato sensu deita raízes na década de 1970 e até hoje permanece registrado no Código de Processo Civil de 1973, que introduziu a regra de que o Ministério Público deveria intervir em todos os processos cíveis onde presente o interesse público, “evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte” (art. 82, III, do Código de Processo Civil).  Inicialmente, a razão legal do dispositivo era vigiar a estrita observância das normas legais em casos de omissão ou negligência de procuradores de pessoas jurídicas de direito público, ou seja, visava à proteção do interesse público da administração pública[9]. Ademais, o inciso I do art. 82 do CPC, determinava (e continua determinando) a intervenção do Ministério Público em todas as causas cíveis onde houvesse interesse de incapazes.

1.2 De órgão interveniente em processos cíveis para órgão agente em demandas de interesse social.

Cumpre salientar, entretanto, que originalmente se cuidava de intervenção em processos cíveis, ou seja, a função prevista era interventiva, como “fiscal da lei”, expressão utilizada no art. 82 do Código de Processo Civil. Em poucas hipóteses, fora da atribuição penal, o Ministério Público atuava como órgão agente, a regra, neste caso, era atuação como órgão interveniente.

Entretanto, como o legislador não definiu interesse público, nem deixou tal mister para leis posteriores, a partir de 1973, quando o autoritarismo militar engendrou mais desconfiança contra o governo, o Ministério Público soube defender a tese de que a noção de interesse público era mais ampla que o interesse da administração estatal, compreendendo o interesse social, por vezes, até confrontado pelo interesse da administração pública. Ademais, partindo-se da premissa de que pudessem existir interesses sociais diversos dos interesses do governo, a sociedade brasileira, pouco organizada e recém engatinhando seus primeiros passos democráticos, era um titular de direitos que demandavam proteção especial, como os incapazes do art. 81, I, do CPC.

Esta alegada incapacidade social – por falta de organização comunitária –  para defender  interesses comuns era outra razão para uma atuação ministerial mais ativa em prol do interesse público, situando-se aqui o ponto de inflexão na virada histórica do Ministério Público rumo à almejada posição de tutor dos interesses – difusos e coletivos –  da sociedade.

Assim é que, na história institucional do Ministério Público, conceitos bastante latos como interesse público, qualidade da parte e interesse indisponível, inicialmente, restritos, respectivamente, às idéias de interesse da administração pública e interesse de incapazes passam a significar interesses da sociedade.

Escrevi em outra oportunidade:

“tem-se aqui, na transformação ocorrida no conceito de ‘interesse público’, uma demonstração de que o texto legal não vigora em si e por si de modo atemporal e absoluto, senão que só existe na cosmovisão significativa do intérprete, ou seja, limitada sua compreensão pela historicidade do aplicador (....) Compreende-se, pois, que o universo ideológico do início do regime militar de 1964, no qual foi produzida nossa última codificação processual civil, era diverso daquele que passou a prevalecer no final do regime, quando a desconfiança social para com o governo e, de resto, para com o próprio Estado, era visível na sociedade civil. O desgaste do regime ditatorial afigurava-se imenso e todas as suas instituições passavam pela mesma crise de legitimidade, enquanto a sociedade ansiava por alcançar sua independência no iminente processo de redemocratização, já de muito anunciado, mas sempre protelado. Neste contexto, inseridos nesta condição fática, integrantes mais ativos do Ministério Público assimilaram aquele momento histórico e passaram a defender uma noção de interesse público como interesse da sociedade e não mais como interesse da administração pública. Idêntica locução, no mesmo texto legal, passou a sofrer outra atribuição de sentido, por outros intérpretes, ou talvez pelos mesmos, mas receptivos ao novo horizonte significativo, o que revela o caráter pré-conceitual de toda compreensão. Deste modo, não há como estudar uma instituição como o Ministério Público somente a partir dos textos legais que acerca dele tratam, estes tão-somente refletem realidades anteriores, pois as mudanças institucionais são concebidas no âmbito da história, que molda as consciências humanas e constitui os universos psíquicos individuais concedentes de sentido aos símbolos lingüísticos. Assim, a locução ‘interesse público’ não vale por si mesma como se fosse imune ao inexorável fluxo do tempo, impondo-se-lhe moldar-se aos diversos panoramas significativos que o câmbio perene da história forja em cada intérprete”[10].

Em tal contexto, o discurso sobre a necessidade de independência do parquet em relação aos poderes políticos foi ganhando projeção, pois, sendo o interesse social um interesse indisponível, requeria um tipo de proteção pública e, nesse caso, o único credenciado à função de tutor era o Ministério Público. Se o novo interesse público não se confunde com o interesse “particular” da administração, então o Ministério Público teria que se afastar dela, para tutelar esses interesses sociais, muitas vezes contrapostos aos interesses do Estado administrador, como ocorre em casos de proteção do meio ambiente, do patrimônio histórico, cultural e paisagístico e até mesmo em situações de improbidade administrativa.

O discurso utilizado para ampliar a noção de interesse público de forma a abranger, prioritariamente, o interesse social e, só secundariamente, o interesse da administração pública, serviu de impulso para que a instituição invocasse, para si, a tutela da sociedade. Deste modo, em um momento histórico em que os poderes estatais eram fortemente criticados no Brasil, o Ministério Público soube pular o muro e partir para o lado da sociedade, embora, paradoxalmente, conservasse a condição de instituição estatal.

Marcelo Pedroso Goulart resume, com acuidade, que, se na sua origem, o Ministério Público desempenhou o papel de advogado da Coroa e da Administração Pública, à medida que foi se desenvolvendo o processo de abertura democrática nas sociedades modernas, ele foi ganhando autonomia, para afinal, protagonizar o exclusivo papel de defensor do povo[11]. Com tal inspiração e centrado no conceito que Gramsci elabora na sua teoria do Estado acerca deste como superestrutura, subdividida em “sociedade política” e “sociedade civil”, Goulart registra que nestas últimas décadas,

... o Ministério Público muda de função ao transitar da sociedade política para a sociedade civil. Ou seja, desvincula-se do aparelho coercitivo do Estado (do aparato burocrático responsável pela dominação através da coerção) para integrar, no âmbito da sociedade civil, a parcela das organizações autônomas responsáveis pela elaboração, difusão e representação dos valores e interesses que compõem uma concepção democrática de mundo e que atuam no sentido da transformação da realidade (os sujeitos políticos coletivos que buscam a hegemonia democrática na batalha ideológica que se trava no seio e através da sociedade civil) [grifos no original].[12]

Esta condição de “defensor do povo” é mais antiga do que parece e deita raízes na figura romana do “Tribuno da Plebe” que, com origem no Senado de Roma, tinha a seu favor determinadas imunidades, tidas como necessárias ao desenvolvimento de seu mister.

1.3 O Ombudsman brasileiro.

É claro que, no processo constituinte de 1988, havia também quem desconfiasse do Ministério Público, instituição que, sobretudo em seu grau federal, esteve fortemente atrelada aos governos militares[13], daí  surgir a ideia, nos bastidores da Assembleia Nacional Constituinte de 1988,  de importação da figura escandinava do Ombudsman ou do Defensor del Pueblo de diversos países latinoamericanos, figuras que, entretanto, não situavam-se na tradição político-jurídica do Brasil. O propósito, contudo, não vingou, especialmente, por um labor que, nos tempos atuais, lamentavelmente, vem sendo pouco relevado dentre as funções do Ministério Público: o atendimento ao público. Foi precisamente o atendimento ao público – atribuição relevantíssima do então Promotor Público, notoriamente a atividade funcional que melhor habilitou o Ministério Público à altaneira missão de Ombudsman da sociedade brasileira.

A facilitação do tão apregoado acesso à justiça, mediante atendimento de pessoas humildes, sedentas de justiça e esclarecimento; a solução de pequenos conflitos; o aconselhamento; a humanidade daquelas figuras da história institucional foram outorgando legitimidade à instituição e desenhando um perfil próprio daquela figura escandinava entre nós brasileiros. O Deputado Constituinte e Promotor Paulista, relator do Projeto do Ministério Público na Assembleia Nacional Constituinte, Plínio Arruda Sampaio, mencionou haver sido pressionado a introduzir a novidade do ombudsman no Brasil, mas que reagira negativamente a ela, afirmando, na época, que “o ombudsman desse país é o Ministério Público. Tem um ombudsman em cada cidade. Então um ombudsman nacional não serve para nada. Não vai fazer coisa nenhuma, vai ser envolvido por dois ou três processos que interessam a algum grupo. Esse órgão não terá o know-how que o Ministério Público tem (entrevista concedida em 07/07/1995)[14]”.

Isto colocou o Ministério Público em uma posição de vantagem que lhe aproveitou em face de outros concorrentes, como a proposta do constituinte de 1988 de criação do Ombudsman brasileiro. Ademais, permitiu sedimentar suas pretensões mediante a conquista de uma série de garantias e prerrogativas que tornaram a instituição independente dos demais poderes de Estado, não faltou quem, depois, se arrependesse de criar instituição tão forte, pois à diferença do ombudsman e do defensor del pueblo, integrantes do Ministério Público brasileiro nunca estiveram vinculados ao Poder Legislativo e, mesmo ao longo da história, embora com uma identificação mais real com o Poder Executivo, acabaram logrando, na Carta de 1988, uma condição independente situando-se apenas como “função essencial à atividade jurisdicional do Estado”, muito embora, na prática, não é essencial a toda atividade jurisdicional do processo pois não intervêm em grande proporção de processos e ademais, não atua apenas em face da atividade jurisdicional ou judicial, mas tem relevantes atribuições em face de órgãos do Poder Executivo (controle externo das polícias e das penitenciárias, fiscalização geral da administração pública, instauração de investigações civis e criminais etc.) ou da sociedade civil organizada (fiscaliza fundações públicas e privadas e quaisquer organizações não-governamentais com atuação em áreas de interesse público).

Fábio Kerche, em notável artigo sobre o tema[15], expõe as razões pelas quais discorda da afirmação de que o constituinte de 1987/88 “cochilou” ao aprovar um Ministério Público tão forte e independente quanto o atual modelo brasileiro e, assevera que, ao contrário, “a Conamp [Confederação Nacional do Ministério Público] pode se sentir vitoriosa não porque ‘enganou’ os [alegadamente] sonolentos parlamentares, mas sim porque apresentou uma proposta que não era contrária aos elementos balizadores, que ia positivamente ao encontro dos aspectos conjunturais e de cultura política presentes na Assembléia Nacional Constituinte”[16].

Kerche, com base em estudos estatísticos acerca da composição partidária e ideológica da Assembléia Nacional Constituinte de 1987/88, identifica três fatores presentes naquele parlamento constituinte, que se apresentavam plenamente favoráveis ao  desenho, deliberadamente outorgado, pelo poder constituinte ao Ministério Público, a saber:

1º) A negação do passado autoritário: prevalecia o entendimento de que as garantias individuais de natureza liberal não eram suficientes para acabar com a crescente desigualdade social, de sorte que, além dessas garantias individuais, era necessário garantir os direitos sociais de cidadania, os quais acabaram por ser integrados no mesmo capítulo dos direitos individuais, assumindo igual status.

2º) O Estado continua um agente privilegiado de realização de justiça social: tratar-se-ia de um “legado getulista” ou nacionalista[17], que preconizava uma ampliação dos direitos de cidadania e julgava a sociedade fraca e atomizada para a tutela de seus próprios interesses. Deste modo, o Estado não poderia ser dispensado do seu mister de construção da cidadania e defesa dos interesses sociais.

3º) Necessidade de criar alternativas à participação política exclusivamente partidária: havia um certo consenso em criar alternativas à representação político-eleitoral, ampliando o acesso ao poder judiciário de demandas coletivas.

Para Kerche, a proposta de Ministério Público ofertada ao poder constituinte de 1987/88 articulava todos os três fatores predispostos no ambiente constituinte, ou seja,

O Ministério Público, neste sentido, 1) é um agente privilegiado da defesa dos interesses coletivos (“negação do passado”); 2) reforça o papel do Estado como agente privilegiado nas relações sociais, inclusive sob o aspecto paternalista (“legado getulista”); e, 3) é um instrumento de reforço da cidadania, rompendo o modelo liberal clássico de representação política via partidos políticos.(...) O Ministério Público, deste ponto de vista, é uma espécie de síntese dos vários aspectos que marcaram a feitura da Constituição de 1988.[18]

Ademais, é preciso acrescentar que, antes mesmo da Carta de 1988 ser promulgada, o Ministério Público brasileiro havia ocupado importantes espaços institucionais junto à vida cidadã, habilitando-se, de antemão, à futura atribuição de “defensor do povo” que iria reclamar para si no processo constituinte.  Com efeito, em 1981, atendendo, sobretudo, ao interesse de uma unificação organizacional dos Ministérios Públicos Estaduais, entrou em vigor a Lei Complementar n. 40, dita Lei Orgânica do Ministério Público e não há como negar que a CF/88 praticamente repetiu a definição de Ministério Público, então contida na LC 40/81, bem como consagrou, em assento constitucional, os princípios institucionais da unidade, indivisibilidade e da autonomia funcional que já constavam daquele diploma. A grande mudança em 1988 foi a independência institucional em relação aos outros poderes, o que facilitou ao parquet, ocupar o vácuo existente entre Estado e sociedade, responsabilizando-se, cada vez mais, pela seleção das demandas sociais a serem resolvidas pelo Poder Judiciário. Esta independência em face dos demais poderes reforçou a diferenciação do Ministério Público em relação a outros poderes o que, de acordo com a teoria dos sistemas, reforça a energia interna do subsistema. Pode-se afirmar que esta diferenciação/independência deu-se em duas dimensões:

a) positivamente, por meio de mecanismos de autogoverno e de garantias contra outros poderes;

b) negativamente, por meio da exclusão de funções estranhas à missão mais nobre da instituição e da proibição a seus integrantes de exercerem funções desvinculadas da carreira.

Exemplificativamente, no Rio Grande do Sul, é a partir de 1988, que o Ministério Público começa a desocupar os foros judiciais, sediando-se em prédios apartados, visibilizando socialmente a diferenciação sistêmica que a legislação estava proporcionando. Ademais, a instituição passou a contar com servidores administrativos e com seus próprios processos burocráticos de inputs e outputs, incrementados pelos institutos do inquérito civil e das peças de informação, autorizadas no âmbito da Lei 7.347/87 e normativas institucionais.

A procedimentalização administrativa dos inquéritos civis, com possibilidade de tomada de compromissos de ajustamento de conduta às normas legais em matéria de interesses coletivos tanto em relação a entidades privadas quanto públicas, é um dos mais significativos passos de reforço sistêmico do Ministério Público nos últimos anos. Ela significa a dispensa de uma linkagem, antes irrenunciável, ao Poder Judiciário com todas as dificuldades daí inerentes. No momento em que o mundo busca novamente alternativas de desjudicialização dos conflitos (como recuo da tendência de judicialização das últimas décadas e suas nocivas consequências), a alternativa de solução administrativa de conflitos envolvendo direitos difusos e coletivos foi notável solução que, conquanto tenha aumentado a complexidade interna do Ministério Público, exigindo-lhe rotinas burocráticas e de autocontrole mais efetivas, aumento dos quadros de pessoal etc., também lhe assegurou visível incremento de energia institucional.

O inquérito civil, como sabido, é um instrumento investigatório de largo uso pelo parquet e de sua exclusiva legitimidade,  que permitiu ao Ministério Público uma mais acentuada diferenciação em relação ao Poder Judiciário. Com efeito, vitorioso no processo de redemocratização do país, a instituição não viu no Judiciário, ao menos de início, a necessária empolgação com os novos direitos coletivos, posto que o então conservador  Terceiro Poder havia se acostumado, ao longo dos séculos, com operações sistêmicas simples de justiça comutativa, neutralidade liberal e com a rotinização dos ritos (inputs e outputs de demandas individuais), de sorte que, para muitos juízes, o direito formal prevaleceria sobre o material, e as inovações imprescindíveis em institutos jurídico-processuais como a legitimatio ad causam e os limites da coisa julgada para a criação de um modelo processual coletivo, insinuavam-se como heresias diante da tradição processual liberal do Poder Judiciário brasileiro.

Isto tudo, aliado à tradicional morosidade da justiça, levaria ao fracasso na tutela dos novos direitos coletivos, forçando o Ministério Público a uma nova diferenciação: a atuação administrativa extrajudicial, reunindo a um só tempo, uma plêiade de sanções negociadas apenas sob a ameaça de outras sanções aplicáveis por diversos órgãos administrativos ou judiciais, diante da provocação do Ministério Público. O inquérito civil com seu aparato de coleta de provas, mediante requisições documentais e periciais e audiências, inclusive públicas, e sua possível conclusão em compromissos de ajustamento às normas legais, constituiu-se destarte em um instrumento para acoplamentos estruturais sistêmicos com setores da sociedade (entidades e empresas) e da própria administração pública, que permitem neguentropia[19] institucional, aqui resumida, na conquista de legitimação política para a ação institucional. Legitimação que não se dá apenas mediante vitórias eleitorais, mas mediante o engajamento efetivo na implementação das promessas constitucionais de 1988.

Sobre o autor
Pedro Rui da Fontoura Porto

promotor de Justiça em Lajeado (RS), mestre em Direito - Unisinos, professor de Direito Penal - Univates, autor de obras jurídicas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PORTO, Pedro Rui Fontoura. Ministério Público brasileiro: história de uma luta institucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3532, 3 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23849. Acesso em: 5 nov. 2024.

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