Resumo: O artigo busca abordar as medidas protetivas previstas na Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) a partir de uma perspectiva interdisciplinar nos planos dogmático, criminológico e de política criminal, a fim de que alguns dos problemas decorrentes do advento das medidas protetivas sejam elucidados. A pesquisa revelou que as medidas protetivas constituem mecanismos sui generis, cuja natureza jurídica se distingue dos processos cautelares cíveis e penais. Tais medidas são fruto da opção legislativa por uma política criminal extrapenal e têm relação com o paradigma de gênero explicativo da violência contra a mulher positivado na Lei Maria da Penha. A intervenção penal, por sua vez, exerce papel sinérgico na missão de proteger a mulher-vítima.
Palavras-chave: Lei Maria da Penha – medidas protetivas – política criminal extrapenal –paradigma de gênero – natureza jurídica – medidas cautelares – intervenção penal.
Sumário: 1. A Lei Maria da Penha e as medidas protetivas. 2. Os problemas decorrentes do advento das medidas protetivas. 3. As medidas protetivas e a positivação do paradigma de gênero. 4. O papel sinérgico da intervenção penal na proteção da mulher. 5. As medidas protetivas e a opção pela política criminal extrapenal. 6. A necessária distinção entre medidas protetivas e medidas cautelares. 7. Conclusão. 8. Referências bibliográficas.
1. A Lei Maria da Penha e as medidas protetivas
Em cumprimento ao § 8º do art. 226 da Constituição Federal de 1988 e aos compromissos assumidos pelo Brasil ao ratificar tratados de direitos humanos como os da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra as Mulheres (conhecida pela sigla inglesa CEDAW, promulgada no Brasil pelo Decreto 4.377/2002) e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (esta conhecida como Convenção de Belém do Pará, promulgada pelo Decreto 1.973/96), foi sancionada a Lei 11.340/06, apelidada de Lei Maria da Penha, a qual cria mecanismos de prevenção, proteção, assistência e punição com vistas a coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, ou seja, a violência contra a mulher no âmbito das relações privadas ou decorrente de tais relações (SABADELL, 2005, p. 10). Todas essas normas tutelam valores consensuais da comunidade internacional e visam à modificação dos padrões socioculturais fundados em preconceitos e estereótipos que resultam na valorização dos papéis masculinos em detrimento dos femininos e buscam transformar a igualdade jurídica (igualdade formal) entre homens e mulheres em igualdade material (igualdade de fato), em autêntica forma de discriminação positiva e ações afirmativas, conferindo-se tratamento desigual, para fins de nivelamento, a quem está em situação de desigualdade (CAMPOS, 2008, p. 256-257).
Os dados da violência contra a mulher no Brasil são alarmantes: em pesquisa realizada em 2010 pela Fundação Perseu Abramo em parceria com o SESC (2010, p. 247), constatou-se que uma mulher é espancada (deixando-se marcas, cortes ou fraturas) a cada 24 segundos no Brasil ou, noutros termos, cinco mulheres são espancadas a cada dois minutos. Tais dados, por si sós, denotam a necessidade de estudos e desenvolvimento de mecanismos de aplicação da Lei Maria da Penha que garantam sua efetividade na diminuição de tão elevados índices de violência, inclusive a diminuição da chamada cifra oculta, que não chega ao conhecimento do poder público. Aliás, o próprio § 2º do art. 3º da Lei 11.340/06 preceitua que não cabe apenas ao poder público criar as condições necessárias para a mulher ter o direito de viver sem violência, cabendo esse papel também à sociedade, o que ora se faz mediante o presente artigo.
Dentre as inovações da Lei 11.340/06, encontram-se as medidas protetivas de urgência, as quais estão disciplinadas entre os arts. 18 e 24. Embora ainda não haja estudos empíricos consistentes a respeito, tais medidas têm se apresentado como o vetor mais eficaz da Lei Maria da Penha. E isso porque o vetor tido pela própria Lei como preventivo limitou-se a enumerar políticas públicas cuja implementação ficou relegada a critério discricionário do Poder Executivo (Lei 11.340/06, arts. 8º e 35), ao passo que o vetor de assistência (art. 9º), do mesmo modo, depende do incremento dos serviços de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação por parte dos Poderes Executivo e Legislativo.
O vetor punitivo da Lei (arts. 17, 20 e 41 a 45), por sua vez, embora fundamental, também ainda se mostra pouco atuante, em especial em razão da retratação da representação oferecida pelas vítimas nas ações públicas condicionadas na grande maioria dos casos (MORATO, 2009, p. 91). As vítimas procuram a Justiça e a polícia para intervir na conflitualidade familiar, mas a pretensão da maioria delas com essa intervenção não é a condenação ou punição dos agressores, mas que tais instituições resolvam o conflito intrafamiliar travado com o homem ofensor (IZUMINO, 2004, p. 266-267). Pesquisas apontam vários motivos (que se manifestam de forma conjugada ou isoladamente) para explicar o desinteresse da vítima no processamento do ofensor: dependência emocional, vergonha, medo, receio de o ofensor recrudescer a violência e até assassiná-la, dependência econômica, depressão, passividade em razão do quadro reiterado de violência psicológica, demora da Justiça, crença na mudança de comportamento do ofensor, baixa autoestima, achar que vai ficar sozinha e não vai conseguir outro companheiro, receio de não conseguir sozinha prover às necessidades dos filhos, descrença na capacidade de a Justiça solver o conflito etc.[1] Outro fator que enfraquece o vetor punitivo da Lei Maria da Penha são as inúmeras controvérsias em torno da adequação da resposta penal (SABADELL, 2005; CAMPOS, 1999), assim como em torno da interpretação e aplicação do art. 41 da Lei, cuja constitucionalidade, de resto, só muito recentemente foi declarada pelo STF em sede de controle difuso no âmbito do HC 106.212/MS, julgado em 24.03.2011. Contudo, o Tribunal não adentrou de modo específico e pormenorizado o mérito da necessidade ou não de representação para a propositura de ação penal pelo crime de lesão corporal leve, bem como vinculou – erroneamente – a proteção da mulher instituída pela Lei 11.340/06 à proteção da família, o que faz com que argumentos baseados em estereótipos de gênero (como o de “preservação da família” e “harmonia e paz do lar”) impeçam o processamento criminal e a condenação do agressor.
Diante desse cenário, o exame das prognoses legislativas feitas ao tempo da tramitação do Projeto de Lei originário da Lei Maria da Penha (PL 4.559/2004) e a sua interpretação sistemática permitem concluir que a lógica que deve nortear a sua aplicação não é aquela típica das varas criminais comuns, em que se busca verificar a existência do crime, identificar o autor e puni-lo, quando a vítima tem o papel circunscrito ao de simples testemunha dos acontecimentos. O tratamento dado pela Lei Maria da Penha à violência contra a mulher baseada no gênero coloca como meta superior a proteção máxima e integral da mulher (CAMPOS, 2008, p. 249 e 264), isto é, a proteção mais ampla possível dos bens jurídicos de sua titularidade tais como a sua integridade física, psíquica, sexual, patrimonial e moral a partir de uma visão integrada dos campos cível e penal. Não se trata, portanto, de mera busca de um culpado e de sua consequente punição (de mera verificação da autoria, da materialidade e da tipicidade da conduta), mas também, e prioritariamente, de se resguardar a mulher-vítima da violação ininterrupta de seus direitos (enumerados exemplificativamente nos arts. 2º e 3º da Lei) e de empoderá-la no sentido de ter cada vez mais consciência desses direitos e de agir de conformidade com eles, para libertá-la de uma situação de passividade, fazendo-os valer perante as diversas instâncias do sistema de justiça especializado de violência contra a mulher e sendo capaz de romper ou de não contrair relacionamentos violentos, marcados por forte diferenciação de gênero, ou de pelo menos ter o poder de promover mudanças neles. Cuida-se, noutras palavras, de opção de política criminal extrapenal, isto é, não focada primariamente no endurecimento da intervenção penal, na criminalização de condutas e na imposição de penas mais gravosas, mas, antes de mais nada, focada no desenvolvimento da capacidade de enfrentamento da situação de violência por parte da própria mulher-vítima e na reeducação e reabilitação do ofensor.
O eixo essencialmente protetivo da Lei (e, por consequência, também preventivo), portanto, é o que sem dúvida mais outorgou mecanismos às mulheres para comparecerem à Delegacia de Polícia ou Promotoria de Justiça mais próxima e, sem a necessidade de advogado (Lei 11.340/06, art. 27, in fine), formularem pedidos de proteção dirigidos ao Judiciário para que elas tenham sua integridade física, psicológica, sexual, patrimonial e moral salvaguardada, evitando-se a reiteração da violência ou a violência iminente por parte do ofensor que, na quase totalidade dos casos, é o próprio marido ou ex-marido, o companheiro ou ex-companheiro ou o namorado ou ex-namorado, conforme se pode notar corriqueiramente nas manchetes e reportagens da mídia e foi constatado pela pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo em parceria com o SESC (2010, p. 248). Nesse passo, “as medidas não-penais de proteção à mulher em situação de violência, previstas nos arts. 9º, 22 e 23 da Lei Maria da Penha, mostram-se providências muito mais sensatas para fazer cessar as agressões e, ao mesmo tempo, menos estigmatizantes para o agressor” (CELMER e AZEVEDO, 2007, p. 15-17).
De outra parte, mostra-se indispensável a implementação de políticas públicas, sobretudo no âmbito educacional, para que se tenha uma solução satisfatória e duradoura (SABADELL, 2005, p. 20-21), para as presentes e futuras gerações, mas ao mesmo tempo é essencial que as mulheres disponham de mecanismos protetivos de intervenção estatal quando estão ameaçadas de atos de violência ou são vítimas de tais atos, sobretudo nos instantes imediatamente subsequentes à prática da violência, sem depender da lenta resposta penal, via de regra revitimizadora. Com a divulgação e campanhas acerca da Lei, cada vez mais as mulheres estão se valendo de pedidos de medidas protetivas (e muitas as utilizam como último recurso após terem sido vítimas de violência reiteradas vezes, por vezes pondo suas vidas a salvo), quadro que, por consequência, modificou o cotidiano do sistema de justiça especializado em violência contra mulher, na medida em que os operadores do sistema se deparam com dificuldades interpretativas em relação aos requisitos legais necessários para o deferimento de tais medidas, bem como qual seria a duração de sua vigência, o que tem implicações concretas diretas no grau de eficácia protetiva conferido à mulher.
Desse modo, o presente artigo, com aporte transdisciplinar na dogmática jurídica, em orientações de política criminal, na criminologia feminista e nos estudos de gênero, busca dar interpretação adequada ao instituto sui generis das medidas protetivas, distinguindo-as mais precisamente das tradicionais e conhecidas cautelares cíveis e penais. Até o momento, uma escassa e discrepante jurisprudência[2] e muito poucas obras comentadoras da Lei Maria da Penha abordaram o tema com esse enfoque que entendemos ser essencial aos operadores da Lei. Há, pois, uma lacuna a ser preenchida na literatura que cuida do tema. O artigo também busca oferecer aos operadores jurídicos do sistema de justiça de violência contra a mulher um instrumental dogmático mais adequado à consecução dos vetores preventivos e de proteção consagrados na Lei 11.340/06, inclusive com vistas a consolidar uma jurisprudência de cunho verdadeiramente protetivo à mulher, o que significa dizer que permitirá a aplicação do instituto das medidas protetivas de forma consentânea à proteção eficaz da vida, da integridade física, psicológica, sexual, moral e patrimonial da mulher, sem que a vigência de tais medidas fique condicionada (acessoriedade) à existência de representação da vítima (no caso dos delitos cuja ação penal é condicionada à representação) ou à existência de eventual processo principal de natureza cível ou penal.
2. Os problemas decorrentes do advento das medidas protetivas
Salienta Carla Alimena (2010, p. 137), a partir de pesquisa de campo junto a Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher em Porto Alegre/RS, que as medidas protetivas constituem um aspecto problemático, pois “as vítimas, muitas vezes, não compreendem quando cabe, para que serve e como se obtêm as medidas protetivas”. Na pesquisa já aludida alhures, 40% das vítimas afirmaram não terem sido esclarecidas de nenhum procedimento no momento do registro da ocorrência na Delegacia, mesmo a instauração de processo criminal contra os ofensores (CELMER, 2010, p. 07-08).
O desconhecimento, por parte das vítimas, do funcionamento e da razão de ser das medidas protetivas previstas na Lei 11.340/06 não deixa de ser reflexo, no plano da operacionalidade jurídica, dos múltiplos problemas decorrentes do advento dessas medidas, como, por exemplo: qual o papel delas? Elas constituem mecanismos de proteção dos bens jurídicos de titularidade das vítimas ou de proteção de processos principais cíveis ou criminais? Constituem mecanismos de prevenção contra a reiteração da violência? Qual a natureza jurídica das medidas protetivas de urgência previstas na Lei 11.340/06? Quais os consectários de referida natureza jurídica no que se refere aos requisitos e duração da medida? É possível fazer a diferenciação entre medidas protetivas de caráter penal e cível ou essas medidas têm natureza jurídica singular, própria de uma teleologia protetiva integral baseada no reconhecimento da desigualdade de gênero? Qual a relação entre o paradigma de gênero explicativo da violência contra a mulher e o papel das medidas protetivas? Qual o recurso cabível da decisão que (in)defere medidas protetivas? As medidas protetivas se revelam como exemplo de adoção de política criminal extrapenal? As medidas protetivas também cumprem as funções preventivas típicas do direito penal?
Após levantamento bibliográfico preliminar a respeito dessa problemática, constatou-se que parte da literatura especializada é omissa a respeito da natureza jurídica das medidas protetivas, a exemplo de Souza (2009, p. 109-145) e Nucci (2010, p. 1275-1280), sendo que a parte majoritária compreende as medidas protetivas do art. 22, I, II e III, da Lei como cautelares processuais penais, a exemplo de Cavalcanti (2007, p. 191), Cunha e Pinto (2011, p. 124-125) e Nilo Batista (2009, p. xvii), as quais seriam “aplicáveis unicamente para assegurar os meios e fins do processo em que se busca ou se irá buscar a realização da pretensão punitiva” (KARAM, 2006, p. 06-07). Já as cautelares do art. 22, IV e V, da Lei teriam natureza cível, havendo a necessidade, por exemplo, de se ajuizar a ação principal no prazo de 30 dias, sob pena de ineficácia da medida protetiva (CPC, arts. 806 a 808).
Todavia, há também autores, a exemplo de Lavorenti (2009, p. 264) e Dias (2010, p. 108-109 e 114-115), que tendem a admitir uma espécie de caráter satisfativo (não-cautelar) às medidas protetivas, de sorte que tais medidas não demandariam ação concomitante ou posterior, seja cível ou penal, para manutenção de sua eficácia, ficando ao prudente arbítrio do juiz a fixação do período de vigência da medida e a sua revogação por posterior decisão judicial. Didier Jr. e Oliveira (2008) veem as medidas protetivas como modalidade de tutela jurisdicional diferenciada que se aproxima das medidas provisionais satisfativas constantes do art. 888 do CPC, mas que não teriam conteúdo cautelar e prescindiriam do ajuizamento de uma demanda principal. Larrauri (2008, p. 187-188) também entrevê o equívoco da legislação espanhola ao vincular a existência das medidas protetivas ao processo penal ao invés de concebê-las no âmbito cível em um procedimento autônomo e independente, como ocorre em muitos países.
Paralelamente à discussão da natureza jurídica das medidas protetivas, verifica-se que o papel do direito penal em matéria de violência de gênero contra a mulher é bastante questionado entre feministas e criminólogos. Ainda na época em que vigorava a Lei 9.099/95 para os casos correntes de violência contra a mulher, Campos (2003) apontava que uma legislação adequada sobre a violência conjugal haveria de ser “pautada segundo a perspectiva da adoção de medidas que garantam a abstenção do comportamento violento, e não necessariamente a punição do agressor” (apud CELMER e AZEVEDO, 2007, p. 15-17). Deveras, as vítimas desejam que seus ofensores deixem de ser violentos e não voltem a agredi-las. Por isso que a solução simplista e única da punição imediata do agressor não agrada as mulheres. Afirma Celmer (2010, p. 05), a partir de pesquisa empírica, que o propósito das vítimas ao registrarem a ocorrência na Delegacia seria o de reparar os danos sofridos e, em especial, fazer cessar as agressões e não propriamente o de punir o ofensor.
Celmer e Azevedo (2007), Bezerra (2007), Karam (2006) e Mello (2010a) são exemplos paradigmáticos de estudiosos veementemente refratários ao suposto rigor punitivista trazido pela Lei Maria da Penha. Semelhante leitura da Lei 11.340/06, no entanto, mostra-se parcialmente errônea, pois, como veremos adiante, parte de falsas premissas de uma alegada lógica repressora e de imposição de pena privativa de liberdade que não se coadunam com a realidade da persecução penal nos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Juizados da Mulher), pois o sistema penal e processual penal que regula a Lei Maria da Penha não implicou exacerbação desmesurada das medidas punitivas, apesar do alarde punitivista reinante na mídia desde a vigência da Lei.
3. As medidas protetivas e a positivação do paradigma de gênero
A Lei Maria da Penha positivou no art. 5º o paradigma de gênero como o explicativo da violência contra a mulher e definiu no art. 7º algumas das formas de manifestação dessa violência. Vale lembrar que o Projeto de Lei que originou a Lei Maria da Penha (PL 4.559/2004) já estabelecia em seu art. 5º, caput, a violência baseada na relação de gênero, assim como definia no respectivo parágrafo único que se deveriam considerar as relações de gênero como aquelas relações desiguais e assimétricas de valor e poder atribuídas às pessoas segundo o sexo (JESUS, 2010, p. 88). A versão que veio a ser sancionada na forma da Lei 11.340/06, portanto, apenas retirou a definição de “relações de gênero” constante do parágrafo único original, a fim de evitar controvérsias em torno das problemáticas teóricas em torno do conceito de gênero e, consequentemente, evitar a não-aplicação da Lei. Mas, de qualquer modo, deve ser assinalado que não remanesce qualquer dúvida de que o modelo teórico explicativo da violência consagrado na Lei foi esse, pois o vocábulo “gênero” volta a aparecer no art. 8º, incisos II, VII, VIII e IX, os quais tratam da necessidade de elaboração de políticas públicas preventivas sempre centradas na perspectiva de gênero.
A violência de gênero é fruto da desigualdade de poder entre homens e mulheres. É praticada contra a mulher no âmbito do processo de dominação masculina e visa a submetê-la aos usos, regras e valores da cultura patriarcal, perpetuando-se assim os papéis subservientes ou menos valorizados atribuídos à mulher, sendo que a própria aceitação e tolerância sociais em relação a esse tipo de violência é sintomática dessas relações hierarquizadas (CAMPOS, 2008, p. 246-248).[3] A explicação da violência contra a mulher no espaço privado (o que engloba as unidades familiar e doméstica, além das relações íntimas de afeto) segundo o paradigma de gênero tem chamado a atenção cada vez mais, mormente a partir da vivência cotidiana nas varas de violência contra a mulher, quando se pode observar, na prática, que os estudos e pesquisas ancorados no referido paradigma (em sua boa parte, impulsionados pelo movimento feminista nas quatro últimas décadas) traduzem de forma fiel (e não apenas de forma ideológica) a ocorrência desse tipo de violência, herança de milênios de patriarcado e que, historicamente arraigada em todas as sociedades e em todas as classes sociais, faz com que as diferenças atribuídas aos papéis socioculturais masculino e feminino culminem, no ponto mais extremo de manutenção dessas diferenças nas relações de poder, no uso da violência em desfavor da parte dominada e mais vulnerável, no caso, a mulher. A leitura de gênero afasta, pois, a “psicologização” e a “psiquiatrização” explicativas da violência contra a mulher, colocando, por exemplo, o uso de álcool e drogas e a personalidade “doentia” ou “desequilibrada” do ofensor como fatores potencializadores e secundários, mas não como decisivos da prática da violência, como se se tratasse de patologias ou distúrbios psíquicos de que os homens ofensores fossem portadores (CAMPOS, 2008, p. 246).[4]
A literatura nesse tema é copiosa e tende a se avolumar cada vez mais, sendo que o verbete “gênero” – aqui referente aos “masculino” e “feminino” em termos socioculturais em oposição às diferenças em termos puramente físicos e biológicos existentes entre o homem e a mulher, entre o macho e a fêmea – tende a ser meio classificatório e de categorização cada vez mais rico e multifacetado.[5] Heleieth Saffioti (2004, p. 44-45), uma das precursoras dos estudos de gênero no Brasil, aduz que o conceito de gênero não se resume a uma categoria de análise, apesar de apresentar muita utilidade enquanto tal. “Cada feminista enfatiza determinado aspecto do gênero, havendo um campo, ainda que limitado, de consenso: o gênero é a construção social do masculino e do feminino” (SAFFIOTI, 2004, p. 45), de modo que se rompe com o determinismo biológico e naturalista de que as diferenças entre homens e mulheres são inatas e imutáveis, passando o termo gênero a designar as identidades masculina e feminina como construções sociais da realidade passíveis de mudança (SABADELL, 2010, p. 279). No presente artigo importa apenas constatar que o paradigma explicativo de gênero foi o positivado pela Lei 11.340/06 para traduzir a violência praticada contra a mulher, não sendo aqui a sede apropriada para adentrar as polêmicas e inúmeras discussões em torno do vocábulo “gênero” tão recorrentes nas ciências sociais. Como afirma Mello (2010a, p. 148):
O conceito de gênero, para as ciências sociais, não se confunde com o conceito de sexo; enquanto este estabelece as diferenças biológicas e anatômicas entre homens e mulheres, aquele se ocupa em designar as diferenças sociais e culturais que definem os papéis sexuais destinados aos homens e às mulheres em cada sociedade. Assim, na definição de gênero cabe a afirmação de Simone de Beauvoir “não se nasce mulher, torna-se”. O mesmo pode ser aplicado para o gênero masculino. O gênero, diferentemente do sexo, não é natural, mas sim resultado de uma construção social.
O tema, pois, é deveras instigante e desafiador tanto do ponto de vista teórico quanto prático, pois há a necessidade cada vez maior de desenvolvermos mecanismos eficazes de prevenção da violência contra a mulher baseada no gênero, ou seja, aquela violência que é perpetrada contra a mulher pelo simples fato dela ser mulher (CAMPOS, 2008, p. 249-250). Nessa ótica, além da necessidade de implementação de novas práticas educacionais e outras políticas públicas no sentido da equidade de gênero, em conformidade com o disposto no art. 8º da Lei 11.340/06, cumpre dar eficácia concreta às medidas protetivas de urgência tal qual elas foram concebidas, visto que são os mecanismos que permitem conferir proteção no tempo e na medida certos para a mulher que está em situação de vulnerabilidade e hipossuficiência nas relações com os homens ofensores, de conformidade com o que a própria Lei Maria da Penha já reconhece aprioristicamente ao ter positivado o paradigma de gênero. O padrão de dominação e controle masculinos estampados no uso da violência nos espaços privados se traduz no que vários estudos indicam: traumas psicológicos e enfermidades como consequência da violência, tais como terror paralisante, ansiedade constante, apreensão, automutilação, suicídio, depressão, vigilância e sentimentos de morte iminente. E, à medida que a violência se perpetua, a vítima se torna passiva, cansada e incapaz de agir, passando por vezes a ver o ofensor com poder absoluto sobre ela. Com o passar do tempo de convivência, o agressor passa a controlar todo aspecto da vida da vítima, passando a decidir o que ela é, no que ela acredita, o que ela pode fazer ou deixar de fazer (KO, 2002, p. 368-369).
A teleologia eminentemente protetiva da Lei está, bem se vê, direta e intimamente ligada com o reconhecimento de que a mulher está em desigualdade de poder com o agressor em razão de ser mulher e, que, sendo assim, impõe-se a intervenção estatal por meio de mecanismos como os das medidas protetivas, à semelhança de outros grupos vulneráveis que também têm legislações que preveem medidas de proteção, como os das crianças, adolescentes, idosos e pessoas portadoras de deficiência. Por isso que são descabidas considerações exageradas em torno de um suposto ônus demasiado (e por vezes prolongado) que é imposto ao ofensor ao ter que acatar determinadas medidas protetivas, pois tais medidas nada mais são que mais um dos instrumentos que a Lei Maria da Penha trouxe de reequilíbrio da vítima com o ofensor no plano da igualdade material, garantindo-se a proteção que a vítima demanda e dissuadindo-se o agressor de reincidir na prática da violência. A liberdade de locomoção do agressor tem limite constitucional no direito de a vítima ter sua integridade física, psicológica, sexual e moral preservada (CARVALHO, 2010, p. 489). Em síntese, o desenvolvimento de critérios hermenêuticos em torno das medidas protetivas deve ter em conta o paradigma de gênero, o que implica necessariamente ampliar ao máximo possível as possibilidades de proteção da mulher.