4. A proporcionaldade. A inexistência de falso testemunho em benefício do ascendente, descendente, cônjuge ou irmão.
A moderna família, muito mais do que um núcleo de produção e reprodução, atualmente é pautada por relações de afeto[17]. Os maiores afetos do ser humano, aqueles por quem somos capazes de fazer os maiores gestos e mais intensos sacrifícios são amiúde por membros da família. No âmbito familiar, as relações de estima podem ser tão intensas a ponto de alguém sacrificar a própria vida em nome de um ascendente, descendente, cônjuge, irmão. Enfim, Se algumas pessoas renunciariam à vida por um filho, por exemplo, como não renunciaria ao dever de dizer a verdade para inocentá-lo?
A polêmica doutrinária acerca do sujeito ativo do falso testemunho não deve ser solucionada à luz da necessidade ou não do compromisso, que é questão menor em face dos princípios envolvidos em jogo. A questão a ser analisada diz respeito ao princípio da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana.
Na lição de Alexy, o princípio da proporcionalidade significa um mandado de otimização que representa a maior realização possível dos Direitos fundamentais. Desta maneira, o princípio possui três dimensões: necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito[18]. A incriminação por falso testemunho de quem levanta falso em favor de ascendente, descendente, cônjuge ou irmão não passa por nenhum desses critérios.
A dimensão da adequação demanda a investigação e a prova de que o ato do poder público é apto e ajustado aos fins que justificam sua adoção[19]. Em outras palavras, busca a proporcionalidade/adequação, conformar os meios de acordo com os fins almejados pelo Estado. Deste modo, se um meio não é adequado para a realização de um interesse público, e esse meio afeta a realização de algum dos direitos fundamentais, então, este meio está vedado porque não otimiza nenhum direito fundamental[20]. No caso do falso testemunho, a possibilidade, em abstrato, de incriminação do ascendente, descendente, cônjuge ou irmão que mentir em juízo revela-se ineficaz diante de uma relação verdadeira de afeto e solidariedade familiares, pois, mesmo com a possibilidade abstrata da pena, ainda assim as mães mentirão, se for o caso, para proteger seus filhos, pois não é a possibilidade nem a ameaça de sanção que irá fazer com que se extraia a verdade a fórceps.
A proporcionalidade/necessidade exige que, na realização do fim ou interesse público, seja adotada a medida que tenha a menor ingerência possível nos direitos fundamentais. Desta forma, diante de dois meios igualmente eficazes para a obtenção de um determinado fim, o cidadão tem direito àquele que não vulnera seus direitos fundamentais. E se, para realização de um interesse público, só estão presentes dois meios que vulneram direitos fundamentais, deve-se proporcionar ao cidadão a menor desvantagem possível, isto é, à escolha do meio menos gravoso. Desta maneira, deve-se exigir a prova de que para obtenção de determinados fins, não era possível adotar outro meio menos oneroso pra o cidadão[21]. Diante das possibilidades que possui o magistrado para obter a verdade real num processo judicial, a ameaça de pena é apenas o meio mais gravoso para se obtê-la. Ora, como sustenta Nucci[22], o magistrado, ao analisar o sobredito depoimento, deverá levar em consideração seu depoimento em cotejo com as demais provas dos autos, depoimento este que sempre é feito com reservas, quer seja ou não prestado compromisso, quer não haja a ameaça de pena.
Por fim, quando se trata de proporcionalidade em sentido estrito, trata-se, na expressão de Alexy, de um mandado de ponderação[23]. Isto significa que se uma norma de direito fundamental (com caráter de princípio) entra em colisão com outro princípio em sentido oposto, é preciso sopesar os interesses em conflito, para que se busque a medida mais adequada possível, para que os meios não sejam excessivamente desproporcionais em relação ao fim. Sustenta Larenz[24] que o referido princípio tem uma relação estreita com a idéia de justiça, tanto no exercício dos direitos como na imposição de deveres e ônus. Serve para estabelecer o equilíbrio de interesses contrapostos, tendo base a linha do menor prejuízo possível. Isso significa, grosso modo, que se busca a justa medida na relação entre os homens entre si e das coisas submetidas à sua disposição.
No caso em exame, os interesses em jogo são o dever de fidelidade ao parente próximo e o dever de falar a verdade em juízo. Com efeito, não se pode duvidar que são dois princípios fundamentais, um, relacionado com a fidelidade à família, e outro, com a fidelidade ao Estado e sua administração da Justiça. A ponderação destes princípios deverá sempre levar em consideração a menor lesão possível aos direitos fundamentais, pois este é o paradigma material do conceito de justiça: a proporcionalidade vinculada aos direitos fundamentais.
Assim, na ponderação dos interesses em conflito, aquele que mais se aproxima dos direitos fundamentais é aquele que preserva a fidelidade à família, ainda que em detrimento do estado. é, inclusive, a solução dada no caso de favorecimento pessoal, quando se privilegia a família em detrimento do estado. Não se pode humanamente exigir que a colaboração com o Estado possa desestruturar as relações familiares, pois isso acarretaria em desestruturar a própria base que alicerça um estado democrático de direito. Desta forma o Superior Tribunal de Justiça decidiu, no REsp 198426/MG, em que ficou decidido:
Não incide na letra do art. 342, § 1º, do Código Penal – Falso Testemunho - a irmã do acusado, em depoimento no Plenário do Júri, ainda que sob compromisso, buscando obter prova favorável ao irmão. Neste caso, significativo o vínculo familiar. Não se pode exigir, humanamente, e, por isso, também pelo Direito, que a irmã deponha contra o irmão. Cumpre ponderar a fraternidade[25].
Com fundamento distinto, o HC 192659/ES[26], que também teve curso perante o Superior Tribunal de Justiça, decidiu que não havia crime no depoimento da irmã que mentiu em benefício do irmão, pelo fato de que a qualidade de testemunha não pode ser estendida a declarantes e informantes.
Não obstante, parece que a questão merece ser resolvida à luz da culpabilidade, e não da tipicidade. Isso porque se deve considerar inexigível a conduta daquele que mente em benefício de ascendente, descendente ou cônjuge. No entanto, a mesma escusa não valerá quando o testemunho falso for dado em prejuízo da pessoa próxima. À semelhança do que hipoteticamente ocorre na situação narrada por Agatha Christie, em sua conhecida obra Testemunha de Acusação[27], não parece uma hipótese de exculpação daquele que, movido pelo ódio, ira ou remorso, mente em prejuízo do ascendente, descendente, cônjuge ou irmão.
Deste modo, diante do interesses em conflito, deve prevalecer a decisão que mais se aproxima da realização dos direitos fundamentais é aquela comprovada pela experiência, que não pode entender como necessária, adequada e proporcional a incriminação da conduta da mãe que mente para preservar a liberdade do filho, ainda que, com isso, venha a frustrar a administração da justiça. A dignidade da pessoa humana impõe que os valores de fraternidade e solidariedade familiar venham em primeiro lugar, e como a própria constituição proíbe que a pena passe da pessoa do condenado, não se deve considerar criminosos os esforços feitos contra a administração da justiça para preservar um ente querido. Assim é com o favorecimento pessoal, assim deve ser com o falso testemunho, quer seja ou não prestado compromisso.
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Notas
[1] TEPEDINO, Gustavo, Temas de Direito Civil, Rio: Renovar, 1999, p.326
[2] A Cf/1967 dizia expressamente, no seu artigo 175, que a família era constituída pelo Casamento
[3] Pontes de Miranda, Fontes e evolução do direito civil brasileiro, Pimenta e Mello & Cia, Rio de Janeiro, 1928, p. 489
[4] Embora, em face da amplitude dada pela Constituição ao conceito de família, seja difícil justificar a intervenção penal em alguns crimes contra o casamento.
[5] BARATTA, Alessandro, Funções Instrumentais e Simbólicas do Direito Penal. Lineamentos de Uma teoria do bem jurídico Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 2, n.º 05, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1994
[6] ASÚA, Luis Jimenez, Princípio de DerechoPenal – la Ley e el Delito, 4. Ed., Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 2005
[7][7] NORONHA, Magalhães, Direito Penal, Vol. 2, 25 ed., São Paulo, Saraiva, 1991, p. 502-3
[8] Comentários, vol. IX, p. 509
[9] HUNGRIA, Nelson, Comentários ao Código Penal, Vol. IX, 2ª Ed., Rio de Janeiro, Forense, 1959, p. 677
[10] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 62
[11] MARQUES, José Frederico, Elementos de Direito Processual Penal, Vol II, Rio de Janeiro, Forense, 1961, p. 324.
[12] Mais recentemente, através da lei n. 10.268/2001, foi inserido o contador como sujeito ativo do crime.
[13] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, Processo penal, Vol. 3, 25ª Ed. São Paulo, saraiva, 2003. p. 246
[14] PRADO, Luiz Régis, Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. 4, 4ªEd., São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2006, p. 611
[15] JESUS, Damásio Evangelista de, Direito Penal – Parte Especial – 4º Volume, 2ª Ed., São Paulo, Saraiva, 1999, p. 240-1
[16] COSTA Jr. , Paulo José da Costa, Comentários ao Código Penal, 7ª Ed., São Paulo, Saraiva, 2002, p. 1096
[17] FARIAS, Cristiano Chaves, A família da pós-modernidade: em busca da dignidade perdida da pessoa humana. Revista de Direito Privado, v. 19, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004
[18] ALEXY, Robert, Teoría de los Derechos Fundamentales, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, Madrid, 2002. p. 111-2
[19] CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª. ed., Coimbra: Livraria Almedina, 2003, , p. 269/270
[20] ALEXY, cit., p. 114-5
[21] CANOTILHO, cit, p. 270
[22] NUCCI, Guliherme de Souza, Código Penal Comentado, 5ª Ed., São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2005 p. 1069
[23] ALEXY, cit. p. 112
[24] LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, Trad. José Lamego, 3ª Ed, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997,p. 603
[25] STJ, Resp.198426/MG, Rel. Min. Fernando Gonçalves, 6ª Turma, j. 14/08/2001, LEXSTJ vol. 150 p. 345
[26] STJ, HC 192659/ES, Rel. Min. Jorge Mussi, 5ª Turma, j.06/12/2011, RSTJ vol. 225 p. 752
[27] CHRISTIE, Agatha, Testemunha de Acusação, São Paulo, Record, 1971.