Resumo: Realiza o presente estudo uma análise do mecanismo das Comissões de Conciliação Prévia como meio de acesso à justiça.
Palavras-chave: Conflito. Acesso à justiça. Comissões de Conciliação Prévia.
Sumário: 1. Introdução. 2. Meios de composição de conflitos. 3. A criação das Comissões de Conciliação Prévia: inspirações. 4. Estrutura e funcionamento das Comissões de Conciliação Prévia. 5. O acesso à justiça como direito fundamental. 6. A Comissão de Conciliação Prévia como mecanismo de acesso à justiça. 7. Críticas ao modelo das Comissões de Conciliação Prévia. 8. Conclusão. 9. Referências.
1. Introdução
Nota-se como um todo nas sociedades humanas sempre uma crescente preocupação com a paz e harmonias sociais com a solução dos conflitos, que são considerados como mal a ser evitado e extirpado. O que se busca é uma sociedade livre, igualitária e principalmente justa, onde os seus cidadãos cumpram as normas de convivência voluntariamente. Havendo, todavia, o nascimento do conflito, este deve ser solucionado de forma ágil, justa e efetiva, ou seja, não deve a lide eternizar-se, encontrar solução injusta ou não ter qualquer efetividade no plano dos fatos.
A melhor forma, entretanto, de evitar a perturbação à paz social é a priorização da prevenção dos conflitos, que só poderá ocorrer se todos os integrantes das sociedades passarem a observar as normas de convivência sem violar o direito de outrem. Considerando a natureza humana, é uma utopia crer que tal estado de coisas possa realmente ser alcançado. Desta forma, ao primar pela prevenção dos conflitos o que se pretende é a aproximação ao máximo ponto deste ideal utópico buscado.
O conflito não é, entretanto, uma patologia da sociedade, é algo previsível e esperado. Não há sociedade sem lide, sem embates entre os seus integrantes, por isso a preocupação em prevenir os conflitos deve juntar-se aos esforços na solução destes da forma que mais se aproxime dos ideais de justiça, igualdade e liberdade.
A busca pela solução justa dos embates é preocupação constante do Direito, que procura não só estabelecer normas para alcance da paz social, mas também criar uma ordem jurídica justa e acessível aos envolvidos em um conflito. A função principal do Direito na sociedade é “de coordenação dos interesses que se manifestam na vida social, de modo a organizar a cooperação entre pessoas e compor os conflitos que se verificarem entre seus membros”[1]. A solução de tais lides será tanto mais efetiva, rápida e igualitária quanto for a própria abertura do Direito para dar a resposta a tais inquietações na sociedade.
Assim, será aqui realizada uma análise das principais formas de solução de conflitos sob o ideal de acesso à justiça como fim a ser buscado, apreciando-se especificamente o conflito trabalhista e as contribuições das Comissões de Conciliação Prévia para a sua solução.
2. Meios de composição de conflitos
Na sociedade humana, conforme já salientado, o conflito é tido como algo a ser solucionado, pois há uma preocupação com a manutenção da harmonia e paz social, valores perturbados com a permanência de lides. Assim, a busca de soluções de tais conflitos tem sido frequentemente tratada como um tema importante e relevante.
Nesse sentido, são apontados como métodos de solução dos conflitos a autotutela, a autocomposição e a heterocomposição.
A autotutela, geralmente rechaçada pelo ordenamento jurídico brasileiro, é o impulso inicial de todo ser humano ao se deparar com violação a seu direito. Nesse meio de solução do conflito, apenas os envolvidos se relacionam, sendo a solução imposta por uma das partes à outra. Desta forma, a autotutela representa uma superposição de uma parte sobre a outra, pois prevalecerá o interesse de por coerção. Certamente, esse mecanismo não é o melhor para o alcance da solução do conflito, pois acaba por criar novo conflito daquele que, submetido a uma solução, fica em uma posição de desigualdade imposta e forçada, motivo pelo qual esta solução só é admitida pelo Direito Brasileiro em raras exceções, como é o caso do desforço imediato no esbulho possessório do Direito Civil.
Na autocomposição a solução continua a ser buscada pelos próprios envolvidos e pode importar em renúncia, aceitação ou transação. Renúncia e transação ocorrem quando uma das partes, por ato unilateral, se despoja de um direito ou reconhece o direito da outra. Na transação, por outro lado, há uma bilateralidade por concessões recíprocas.
Na heterocomposição um terceiro exterior ao conflito intervém para solucioná-lo, submetendo-se as partes à solução proposta, favorecida ou firmada por ele. São três as suas modalidades: a jurisdição, a arbitragem e a conciliação.
Pode-se afirmar que a jurisdição, com a transferência para um terceiro do controle e a direção na dinâmica de solução do conflito, sempre foi o meio de solução de conflito mais importante no Brasil, onde o Estado tomou para si o exercício do mecanismo, como expressão da sua própria soberania.
3. A criação das Comissões de Conciliação Prévia: inspirações.
As Comissões de Conciliação Prévia foram criadas pela Lei 9.958/2000, alterando dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, com o objetivo de criar um novo instrumento para facilitar e promover a solução de conflitos entre trabalhadores e empregadores. Foram as mesmas concebidas como mecanismos de autocomposição dos conflitos entre capital e trabalho.
Tal legislação foi concebida no interior do Tribunal Superior do Trabalho, por seus Ministros, em 1998, muito embora tenha sido formalmente encaminhada ao Congresso Nacional pelo então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, no mesmo ano, contando com rápido trâmite legislativo para a sua aprovação, tendo sido modificada em diversos aspectos.
Surgem com o principal objetivo de desafogar a Justiça do Trabalho da crescente quantidade de novas demandas, promovendo a solução amigável e extrajudicial dos conflitos e combatendo a cultura crescente no seio da sociedade brasileira de demandar judicialmente. Possuem caráter não-oficial ou seja: “não existe qualquer vinculação da Comissão da Conciliação Prévia com o Ministério do Trabalho e do Emprego, não estando sujeito a nenhum registro prévio para funcionamento, nem com a Justiça do Trabalho.”[2]
A preocupação com a eficiência da jurisdição diante da enxurrada de processos anuais perante a Justiça Especializada já era comentada por Bento Herculano Duarte no ano de 1998:
Não se admite que no Brasil se chegue a quase dois milhões de processos em tramitação nas ‘casas’ trabalhistas. Desde a primeira instancia até a Corte Especial os autos amontoam-se, boloram-se, tal o acúmulo processual. Os Magistrados Trabalhistas são submetidos à massacrante rotina, exaustiva e ‘estressante’, sem contudo vislumbrar resultados práticos de tão grande esforço, o que leva, inclusive, a uma incompreensão pela maioria da sociedade. Muitos dos litígios são primários e/ou de pequena monta, facilmente evitáveis em esfera extrajudicial. É, sem dúvida, o momento de se dar uma guinada na solução dos conflitos laborais pátrios, mas sem esquecermos: a Justiça do Trabalho é essencial a que o labor subordinado continue sendo extensão fundamental da dignidade humana.[3]
Desta forma, o principal valor que inspirou o legislador brasileiro para a criação das Comissões foi justamente o acesso à justiça, no seu sentido mais amplo, considerando não somente o acesso ao processo, ou o acesso ao judiciário, mas sim o acesso à própria justiça, bem maior, que deve ser alcançado por todas as partes envolvidas nos conflitos trabalhistas. Isso porque, no seu âmbito, as partes irão dialogar buscando a solução negociada do conflito, atingindo então o ideário de paz social e justiça naquele caso concreto.
A expectativa diante da criação das Comissões foi grande, como comenta Altamiro J. dos Santos:
Com certeza poderá a Comissão de Conciliação Prévia produzir extraordinária e nobre atividade na solução de controvérsia já em sua origem, oferecendo a conquista da força harmonizadora do equilíbrio entre os agentes do trabalho e do capital. Além disso, evitar-se-á uma carga dramática processual nos órgãos do Judiciário Trabalhista em todo o território nacional, atendendo até mesmo o princípio da celeridade, tão almejada entre os atores sociais da relação de emprego, e oportunizando valiosas soluções pacíficas, que atendem os mais altos e democráticos interesses de todos.[4]
O nascimento das Comissões de Conciliação Prévia, além disso, está intimamente ligado à extinção da representação classista no âmbito da Justiça do Trabalho, em 1999 por meio de Emenda Constitucional. Esse mecanismo interno do Judiciário tinha como objetivo também priorizar o diálogo e a conciliação, além de ser inspirado na concepção de representação paritária das partes envolvidas no conflito, visões transferidas ao instituto posterior.
O Relatório Geral da Justiça do Trabalho publicado pelo Tribunal Superior do Trabalho em 2007 demonstra, por seus dados estatísticos, que no ano de 1999, em todo o Brasil foram recebidas 1.877.022 novas demandas de conhecimento, sendo que em 2000 esse número reduziu-se para 1.722.541 novos processos, e em 2001 houve um leve aumento para 1.742.523 para cair novamente em 2002 para 1.614.255 novos processos recebidos na fase de conhecimento. O mesmo relatório demonstra que a quantidade de processos somente chegou a patamar próximo daquele de 1999, no ano de 2007 quando foram ajuizados 1.824.661 novos processos de conhecimento, ou seja, mesmo em 2007 a quantidade de processos não alcançou ou ultrapassou o patamar de 1999.[5]
Os dados estatísticos da mesma pesquisa também demonstram um decréscimo do percentual de processos conciliados. Em 1999, 46,9% dos processos terminavam com tal solução, tendo tal número sofrido seguidas reduções em 2000, quando somente em 45,1% das demandas houve conciliação, em 2001 esse número ficou no patamar de 44,8% e finalmente em 2007 em 43,9%.
Os números estatísticos demonstram, portanto, que a quantidade de processos novos ajuizados perante a Justiça do Trabalho sofreu um decréscimo na mesma época em que concebidas e colocadas em funcionamento as Comissões de Conciliação Prévia, mostrando que, talvez, possa ter havido alguma contribuição desse novo mecanismo na diminuição de novas demandas. Não se pode, entretanto, afirmar ter sido este o único motivo para tanto, já que o próprio aumento ou diminuição da participação do emprego formal da população economicamente ativa em tais anos, por exemplo, também pode ter contribuído para a alteração dos dados, além de outras circunstâncias sociais e econômicas.
Em relação à conciliação, seu decréscimo percentual também sofreu impacto do surgimento da Comissão de Conciliação Prévia, pois ao mesmo tempo em que deixaram de ser ajuizadas demandas solucionadas extrajudicialmente e mais simples, foram propostas somente demandas que não alcançaram tal resultado ou nas quais essa conciliação foi questionada, restando ao Judiciário, portanto, causas de maior litigiosidade e complexidade.
4. Estrutura e funcionamento das Comissões de Conciliação Prévia.
As alterações trazidas pela Lei n° 9.958/00 importaram na inserção dos artigos 625-A até H na CLT criando-se o Título VI A: Das Comissões de Conciliação Prévia. De logo, enuncia-se que esse mecanismo de negociação destina-se essencialmente a tentar conciliar os conflitos individuais do trabalho. É de se esclarecer que a Comissão não julga a causa, mas somente empenha-se em compor amigavelmente o conflito, criando um ambiente de diálogo leal e objetivo para alcance de uma solução negociada, como nos ensina José Augusto Rodrigues Pinto e Rodolfo Pamplona:
A leitura dos novos dispositivos da CLT sobre a matéria, com toda certeza, singulariza a sua missão em conciliar, nada mais do que isso (arts. 625-De, § 2º, e 625 -F). A singularização é muito importante porque exclui do órgão toda liberdade para formular soluções, atribuição que avançaria seu papel para a mediação, e todo poder de ditar solução, papel de conteúdo jurisdicional privado, que identifica a arbitragem.[6]
A representação paritária, com participação de representantes dos empregados e dos empregadores foi prevista como um de seus requisitos para funcionamento, com vistas justamente à preservar o diálogo entre os envolvidos.
Em relação ao âmbito de funcionamento, poderia a legislação ter privilegiado o papel dos sindicatos no particular, atribuindo-lhe a exclusividade na instalação e funcionamento de tais Comissões. Todavia, permitiu a sua criação também dentro do âmbito da empresa ou mesmo grupo de empresas, visando democratizar sua criação e aproximá-la dos próprios protagonistas do conflito.
O legislador, apesar disso, não se descurou completamente da importância da valorização da negociação coletiva e das vantagens do debate, pelos trabalhadores, no âmbito sindical, sobre a necessidade, utilidade e vantagens da instalação da Comissão, ao prever que somente por acordo ou convenção coletiva poderia ser a mesma instalada nesse caso. Por esse motivo, as Comissões são mecanismos não obrigatórios, ou seja, a legislação não impôs a sua criação, mas somente facultou-a, dando aos trabalhadores, nesse caso, a oportunidade de voluntariamente aderir ou não à tal instrumento. A criação deste novo mecanismo de promoção da paz social e do acesso à justiça, portanto, dá-se a partir da manifestação dos trabalhadores, diretamente ou por intermédio de seus representantes. Discorre Leila Lobato:
Assim, a composição e funcionamento serão frutos da autonomia coletiva da vontade, pois os instrumentos coletivos de trabalho, mais precisamente a convenção ou acordo coletivo, devem estabelecer o numero de conciliadores, a possibilidade ou não da garantia de emprego, o afastamento ou não do conciliador das atividades normais na empresa ou outras regras não previstas para as Comissões no âmbito das empresas (art. 625- C da CLT).[7]
O procedimento no âmbito de tais órgãos, uma vez instalados é simples e destituído de grandes formalidades. Sucintamente, uma vez instalada a Comissão de Conciliação Prévia, esta poderá receber as suas demandas oralmente ou por escrito, devendo comunicar a parte contrária acerca da sua existência. Feito isso, as partes serão convocadas para uma sessão de tentativa de conciliação no prazo máximo e escorreito de 10 dias, na qual, na presença de representantes de empregados e empregadores, será aberto o diálogo para alcance da conciliação.
Há, de fato, dispositivos na legislação que revelam preocupações em reduzir ao mínimo eventuais prejuízos decorrentes da submissão da demanda à apreciação da comissão, como a suspensão da prescrição e a emissão da certidão de conciliação frustrada acaso a sessão não tenha sido realizada no prazo legal.
A imperatividade de submissão de todas as demandas previamente à propositura da ação buscou atacar justamente um dos principais obstáculos à democratização do acesso à justiça: a cultura da demanda judicial. Assim, as partes envolvidas são compelidas a encontrar-se antes de propor a demanda, buscando uma solução para o conflito no qual estão envolvidas, sendo mesmo que forçadas a sentar frente a frente para ao menos, tentar alcançar a conciliação.
5. O acesso à justiça como direito fundamental.
Inicialmente se justifica a opção pela terminologia direitos fundamentais e não direitos humanos no presente trabalho, na esteira do constituinte brasileiro. Isso porque se adota aqui o critério do plano ou esfera de positivação para distinguir essas duas figuras, segundo o qual: direitos fundamentais são considerados como aquelas posições jurídicas expressamente positivadas ou reconhecidas no âmbito de uma ordem jurídica constitucional, ao contrário dos direitos humanos que possuem reconhecimento e positivação no âmbito internacional. Desta forma, opta-se pelo enfrentamento da questão dos direitos fundamentais no âmbito da ordem jurídica constitucional brasileira.
Entretanto, a ordem constitucional pátria ao consagrar direitos fundamentais no texto constitucional o faz junto com a enumeração de diversos outros direitos cuja fundamentalidade não se evidencia. Assim, há de se identificar, dentro de uma realidade constitucional complexa, quais direitos podem ser considerados fundamentais.
Nesse passo, os direitos fundamentais devem ser entendidos como aqueles cujo conteúdo se mostra relevante e essencial em uma dada realidade constitucional. Isso quer dizer que a qualidade de fundamental é estabelecida primordialmente pelo próprio constituinte, que elege valores considerados essenciais e cuja proteção diferenciada se mostra necessária. A esses bens jurídicos relevantes e essenciais o constituinte atribui uma força jurídica especial em relação às demais normas, prevendo-os de forma implítica ou explícita.
Isso porque há direitos fundamentais que não se encontram expressamente positivados no texto da Constituição brasileira, mas, nem por isso, por sua essencialidade, deixam de ser considerados fundamentais. São os direitos fundamentais positivados em tratados internacionais que passam a integrar na ordem jurídica brasileira como normas constitucionais, a teor do artigo 5º, parágrafo terceiro da CF/88.
Como se vê, a qualidade de fundamental atribuída a um dado direito não goza de uma perspectiva universal e atemporal; os direitos fundamentais enquanto valores essenciais do homem desenvolvem-se ao longo do tempo e em conjunto com a própria noção de Estado, não sendo possível seu estudo a não ser a partir de um sistema jurídico específico e considerando ainda a sua evolução histórica. Portanto, os bens jurídicos essenciais necessários à sobrevivência do homem são culturalmente construídos.
Comenta tal circunstância Daniel Sarmento, salientando que “os direitos fundamentais não constituem entidades etéreas, metafísicas, que sobrepairam o mundo real. Pelo contrário, são realidades históricas, que resultam de lutas e batalhas travadas no tempo, em prol da afirmação da dignidade humana”[8].
Dessa forma, a construção dos direitos fundamentais está intimamente relacionada às noções do Estado Liberal e Estado Social, no mundo ocidental. Isso porque a evolução do conteúdo, eficácia e efetivação dos direitos fundamentais tem sofrido transformações que, regra geral, acabam por coincidir com as alterações ocorridas na forma de tratamento do próprio poder estatal nas sociedades.
Essa perspectiva histórica é comentada por Ingo Wolfgang Sarlet, segundo o qual “há que dar razão aos que ponderam ser a história dos direitos fundamentais, de certa forma (e, em parte, poderíamos acrescentar), também a história da limitação do poder”[9], ou seja, os direitos fundamentais guardam íntima relação com a evolução histórica da delimitação da soberania estatal.
A partir deste aspecto histórico, tem-se que no Estado Liberal a lógica que imperava era a da limitação do Poder Estatal ao qual cabia assegurar o desenvolvimento livre da sociedade, a partir de uma intervenção mínima. Vigorava a premissa de que o Estado deveria ausentar-se de interferir nas relações entre particulares; havia uma preocupação intensa em limitar rigorosamente a ação estatal cuja intervenção era considerada negativa. É a fase de reconhecimento dos direitos fundamentais como direitos de defesa, oponíveis ao Estado, e que impõem uma conduta omissiva, ou de não intervenção estatal na esfera de autonomia individual. Nesta fase inicial surgem os direitos fundamentais de liberdade, vida e igualdade.
Já no Estado Social, construído a partir da falência do modelo anterior, o Poder Estatal passa a ocupar um espaço maior de intervenção na sociedade, adotando uma postura comissiva com o objetivo de alcançar o buscado bem-estar social. As prestações estatais, portanto, são então valorizadas. Dá-se, assim, o surgimento dos direitos fundamentais a prestações, ou positivos.
Toda essa construção histórica demonstra que os direitos fundamentais possuem, regra geral, assento formal no texto constitucional e acabam por ser caracterizados como direitos humanos expressamente positivados na Constituição de um determinado Estado, além de resgatarem o valor da pessoa humana.
Dessa forma, ao lado desse aspecto histórico, que grande influência possui na construção de um conceito acerca dos direitos fundamentais, acopla-se a noção de que é preciso se reconhecer a essência de tais direitos como relacionados à própria noção de dignidade da pessoa humana. Direitos fundamentais são valores que se relacionam com as noções de liberdade, igualdade e solidariedade e, portanto, não só o aspecto formal da previsão constitucional informa a sua conceituação, mas também o seu conteúdo material.
Flávia Piovesan, ao analisar os precedentes históricos do processo de internacionalização e universalização dos direitos humanos, conceitua:
Defende este estudo a historicidade dos direitos humanos, na medida em que estes não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução. Enquanto reivindicações morais, os direitos humanos são fruto de um espaço simbólico de luta social, na busca por dignidade humana, o que compõe um construído axiológico emancipatório.[10]
Isso significa que além do assento constitucional, os direitos fundamentais se relacionam com um padrão justo e digno de vida, reconhecidos ao todos os homens.
Conjugando os diferentes aspectos da conceituação dos direitos fundamentais, Dirley da Cunha Junior esclarece:
[...] os direitos fundamentais são todas aquelas posições jurídicas favoráveis às pessoas que explicitam, direta ou indiretamente, o princípio da dignidade humana, que se encontram reconhecidas no texto da Constituição formal (fundamentalidade formal) ou que, por seu conteúdo e importância, são admitidas e equiparadas, pela própria Constituição, aos direitos que esta formalmente reconhece, embora dela não façam parte (fundamentalidade material). Esse conceito, entretanto, ainda fica a depender da ordem constitucional concreta de cada Estado, uma vez que, o que é fundamental para certo Estado, pode não ser para outro.[11]
Nesse passo, inspirado na doutrina de Robert Alexy, para Ingo Wolfgang Sarlet, tratando da circunstância de que os direitos fundamentais representam um rol em constante transformação, com novas inclusões de direitos, explana:
Direitos fundamentais são, portanto, todas aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas, que, do ponto de vista do direito constitucional positivo, foram, por seu conteúdo e importância (fundamentalidade em sentido material), integradas ao texto da Constituição e, portanto, retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos (fundamentalidade formal), bem como as que, por seu conteúdo e significado, possam lhes ser equiparados, agregando-se à Constituição material, tendo, ou não, assento da Constituição formal (aqui considerada a abertura material do Catálogo). [12]
A clássica doutrina de José Afonso da Silva, também contribui com a conceituação, ao optar pela expressão direitos fundamentais do homem que seriam “situações jurídicas, objetivas e subjetivas, definidas no direito positivo, em prol da dignidade, igualdade e liberdade da pessoa humana”.[13]
De tais noções, portanto, se podem extrair os aspectos material e formal dos direitos fundamentais, uma vez que essa categoria de direitos representam um catálogo aberto, não se restringindo somente àqueles expressamente previstos no texto constitucional.
Por fim, destaca-se a contribuição de Arion Sayão Romita para quem:
[...] pode-se definir direitos fundamentais como os que, em dado momento histórico, fundados no reconhecimento da dignidade da pessoa humana, asseguram a cada homem as garantias de liberdade, igualdade, solidariedade, cidadania e justiça. Este é o núcleo essencial da noção de direitos fundamentais, aquilo que identifica a fundamentalidade dos direitos. Poderiam ser acrescentadas as notas acidentais de exigência do respeito a essas garantias por parte dos demais homens, dos grupos e do Estado e bem assim a possibilidade de postular a efetiva proteção do Estado em caso de ofensa.[14]
Os direitos fundamentais, portanto, são destinados à proteção do ser humano, à promoção da vida digna, impondo-se a todos, não só a Estado, mas também aos particulares o dever de realizar tais valores. Revelam uma construção histórica e, portanto, não representam um conjunto de posições jurídicas estanque, mas sim em constante evolução.
O acesso à justiça é concebido, sob esta perspectiva de essencialidade e dignidade, como um direito fundamental. Aponta-se, inclusive que o acesso à justiça é um direito fundamental que permite o próprio exercício de todos os outros direitos fundamentais, afinal, acaso violados, todos os demais direitos fundamentais não se efetivarão sem a necessária busca pela sua realização. Sob essa concepção “buscar a justiça não é necessariamente procurar o Judiciário, mas encontrar soluções para os conflitos que estao por aí amiúde”.[15]
Comenta acerca da fundamentalidade de tal direito o Professor Paulo César Santos Bezerra, para quem este é também um direito natural:
Quando se pensa a justiça, não se está apenas querendo observar o aspecto formal da justiça, nem seu caráter processual. Argumenta-se com um valor que antecede a lei e o processo. O acesso à justiça pois, nessa perspectiva é um direito natural, um valor inerente ao homem, por sua própria natureza. A sede de justiça, que angustia o ser humano, tem raízes fincadas na teoria do direito natural. Como direito, o acesso à justiça é, sem dúvida, um direito natural. Como direito, o acesso à proteção judicial, é um direito formal do indivíduo de propor ou contestar uma ação. Nesse sentido é um direito fundamental. Naquele antecede o Estado, esse imbrica-se fundamentalmente com o surgimento do Estado. (...)[16]
Desta forma, a própria noção de acesso à justiça não pode ser dissociada dos ideais de liberdade e igualdade, bem como da dignidade da pessoa humana.