I - A RACIONALIDADE DA SINGULARIDADE NÃO REPETÍVEL
Trata-se de uma pesquisa interdisciplinar que diz respeito ao direito, à filosofia, à lingüística e à lógica, em que as três últimas intervêm numa análise que tem por objetivo elucidar a história e o funcionamento atual do direito e suas instituições.
Todos os que freqüentaram as salas das faculdades de direito brasileiras sabem a que ponto o ensino, nesta área, é formalista e essencialmente referido aos códigos. Os diferentes concursos para cargos jurídicos também seguem esta orientação. Com isso, estuda-se mais o "como" do direito, ficando em segundo plano o "porquê". Filosofia, lógica e sociologia jurídica sempre foram disciplinas marginais na nossa formação jurídica, que tem um horizonte essencialmente pragmático.
É nítida uma mudança de orientação no presente momento (outubro de 1998), devido ao atual contexto de crise do Estado e um unânime sentimento de que há que se fazer profundas reformas no mesmo, tendo o Executivo e o Legislativo, bem ou mal, já sofrido mudanças. Com relação ao Judiciário, a unanimidade com respeito à necessidade das reformas é facilmente constatável, porém não se consegue formular um projeto coerente, havendo diversas propostas desarticuladas e concorrentes atualmente em tramitação no Congresso.
Em abril de 1999 a situação permanece essencialmente a mesma.
É possível que isto se deva a uma razão trivial, que é o fato que não se pode reformar alguma coisa de que se desconhece a verdadeira natureza. Sabemos ao certo o que é o Poder Judiciário, não ao nível do "como" da prática jurídica forense, mas ao nível do "porquê" conceitual e substancial do direito e das instituições jurídicas? Se isto fosse claramente sabido, não haveria tanta dificuldade em formular um projeto de reforma, e esta dificuldade é um sintoma claro de que reina um certo desconhecimento neste aspecto. O direito não tem primado em praticar a virtude do auto-conhecimento, sendo um saber que se desconhece, ou "se mal conhece", em função da cobertura ideológica que sempre prencheu o vazio criado por este desconhecimento, ou mal (auto-)conhecimento. Sequer sabemos ao certo se a crise do Judiciário é apenas de funcionamento, ou se é também substancial e conceitual.
Quando se trata de interdisciplinaridade, são inúmeros os caminhos. Aqui propusemos um, a título de "projeto de pesquisa". No caso do direito, há duas formas de interdisciplinaridade, interna e externa, segundo se articulem entre si diferentes especialidades do direito (administrativo e tributário, civil e penal, material e processual, etc. - sempre subdivisões intrajurídicas) ou se a articulação é feita com relação a outros campos do saber, como é caso presente, esperando-se que haja, ao final do processo, um retorno sobre o direito, obtendo-se elementos de respostas a questões sobre ele inicialmente formuladas.
O assunto é então filosofia e lógica jurídica, em que o adjetivo concorda por proximidade com o nome, concordância que confere ao título uma ambigüidade: "filosofia" pode significar "filosofia em geral", na medida em que não é explicitado se "jurídica" se aplica aos dois substantivos, "lógica"e "filosofia", ou se a um só, "lógica". Esta ambigüidade é útil, pois permanece implícito que existe uma filosofia em geral, e também uma filosofia jurídica, além de uma lógica jurídica, em que a terceira é parte da segunda, e esta da primeira.
História e funcionamento atual do direito e suas instituições, diacronia e sincronia: no que diz respeito à história, a referência principal será a obra de Michel Foucault. Mas fica claro que a cada conceito filosófico de "verdade" - podem ser enumerados pelo menos sete (o que tentamos fazer em "CONCEITOS FILOSÓFICOS DE VERDADE") - corresponde um conceito jurídico de "verdade", e um tratamento diferente da questão. Aqui fizemos a escolha de abordar o conceito filosófico-jurídico de "verdade" a partir da obra de Foucault. Mas outras linhas de pesquisa podem ser seguidas, por exemplo a partir de Marx, Heidegger, ou Badiou, sendo que este último se torna indispensável no momento da avaliação dos formalismos em relação ao direito, e dos limites existentes neste aspecto. Encontramos um excesso em relação ao sistema formal, onde aparece o caráter dialético do direito, e seu real inarticulável (com respeito a uma dada articulação simbólica). Isto nos conduz à abordagem da singularidade argumentativa (Perelman e novamente Foucault, na medida em que este último nos fornece a teoria da racionalidade da singularidade não repetível).
Quanto à "lógica jurídica", a análise incide sobre a questão de saber em que consiste a cientificidade do discurso e da prática jurídicas, aparecendo imediatamente uma controvérsia - uma "escolha teórica", diria Foucault: aqueles que afirmam que o direito é efetivamente uma ciência, cuja essência vai-se desvendar numa teoria pura, formal, sob o modelo do silogismo aristotélico (Kelsen), o que implica em atribuir ao direito o predicado formal de universalidade que é característico das ciências sobre as quais não há dúvida quanto a sua cientificidade (matemática, ciências experimentais e mesmo as ciências humanas e sociais, sendo a psicanálise um caso especial), e uma outra posição (Perelman), segundo a qual a essência do direito encontra-se na singularidade da argumentação; dir-se-á então que o direito é racional, porém não científico, na medida em que desprovido do predicado formal de universalidade.
Pode parecer aberrante afirmar, em qualquer sentido que seja, que "o direito é desprovido de universalidade", já que ele é encontrável em todas as sociedades (nem que seja na forma pura do Estado, anterior ou heterogêneo à codificação pelo direito e ao ordenamento por práticas e instituições jurídicas). Mas trata-se aqui de um atributo formal de universalidade, que fica claro se pensarmos que as experiências científicas se caracterizam por sua reprodutibilidade, podendo-se afirmar, por exemplo, que duas reações químicas em lugares diferentes são idênticas, sendo na verdade a mesma reação química, enquanto que no caso do direito dois acontecimentos jamais são idênticos - aquilo que faz com que um acontecimento jurídico se diferencie de outros o caracteriza pelo menos na mesma proporção que o faz sua semelhança. A analogia com a psicanálise é aqui evidente: cada caso tem propriedades comuns a outros, obedecendo então a uma lógica que é a mesma, mas ele se define também por sua diferença em relação àqueles. A lógica comum não se aplicará então a todos os casos de modo indiferenciado (como acontece com as ciências dotadas de universalidade formal), sua aplicação será afetada de um índice de singularidade que se refere exclusivamente àquele caso, e não a outros. Preserva-se a racionalidade, permanecendo o singular dotado de uma lógica, porém a cientificidade não será a mesma, pois no caso do acontecimento jurídico trata-se de algo não (inteiramente) reprodutível, conseqüentemente único, em uma parte essencial dele mesmo.
Neste ponto o método de análise histórica de Foucault é esclarecedor, na medida em que este método conduz ao discernimento de uma lógica no próprio singular do acontecimento, aparecendo que o saber sobre o singular não se reduz, ou pode não reduzir-se, a uma simples apresentação de casos, o que não deixa de ser um risco para uma análise (do direito) em termos de argumentação: cada caso é um caso, e o único discurso racional possível seria a apresentação do caso, passando sob silêncio o que ele tem de repetível e sua lógica. Já o risco para a outra forma de análise, em termos de teoria pura, é de negligenciar tanto a singularidade do acontecimento quanto sua lógica, atendo-se exclusivamente ao repetível. Mas o repetível, no singular, é pouca coisa. Da mesma forma que existe uma lógica do acontecimento histórico que aparece numa análise explicitadora de uma racionalidade que lhe é própria, é possível que uma análise do direito em termos de argumentação não se reduza à apresentação de casos, colocando em evidência uma lógica do singular jurídico enquanto tal, e não só enquanto composto também de uma parte repetível. O que não é o puro reaparecimento do universal por trás do singular, já que a estrutura de racionalidade a que se chega é ela mesma singular.
O SINGULAR, ENQUANTO RACIONAL, NÃO SE REDUZ À UNICIDADE DA APRESENTAÇÃO. A PARTE RACIONAL DO SINGULAR É CONSTITUÍDA APENAS DAQUILO QUE, NO SINGULAR, É REPETÍVEL? NÃO, PORQUE SE TAL FOSSE O CASO, ESTARÍAMOS AFIRMANDO QUE A SINGULARIDADE DO SINGULAR NÃO É RACIONAL, O QUE É EXATAMENTE O QUE CONSTITUI PROBLEMA: A RACIONALIDADE DA SINGULARIDADE NÃO REPETÍVEL.
II - LÓGICA E FILOSOFIA
Seria a distinção lógica jurídica - filosofia jurídica apenas um caso particular da distinção lógica - filosofia?
Por lógica entende-se a lógica matemática (metamatemática): sistemas formais, como o cálculo proposicional, de predicados, lógica modal, e, mais recentemente, lógica paraconsistente (Newton da Costa). Os grandes teoremas da lógica - num nível enunciativo metalingüístico - contêm enunciados genéricos sobre determinadas propriedades dos sistemas formais, em geral referentes às suas limitações (é a famosa questão dos limites da formalização).
Fica prejudicada a tentativa hilbertiana de auto-normatividade total, pela qual o sistema formal se fecharia sobre o enunciado interior de sua própria coerência; toda a história da matemática mostra a resistência da estratificação aos esquemas de fechamento impostos pela filosofia (é o caso da diagonal do quadrado em relação ao conceito pitagórico do número: o número "irracional" é um outro estrato).
No sentido estrito, a lógica delimita um conjunto de proposições bem formadas e não contraditórias, em relação a outras mal formadas e contraditórias, segundo critérios matemáticos (explícitos) de formação e derivação.
Aplicada por exemplo ao direito, a lógica será convocada quando de algum modo estiver em questão a coerência do discurso jurídico, entendendo-se a coerência como um critério mínimo para a verdade (jurídica).
Veremos que, em seus diversos sentidos, a verdade, para a filosofia, abrange sempre a coerência e algo mais.
Abrange sempre a coerência, porque os conceitos filosóficos de verdade repertoriáveis sempre excluem a incoerência lógica sintática e/ou semântica da abrangência do que é tido por verdadeiro. A divisão é aqui tanto mais nítida quanto mais se aproxima da auto-normatividade.
Algo mais, caso contrário a lógica equivaleria à filosofia, e o conceito de verdade seria reduzido à dimensão formal da coerência.
Se a filosofia situa-se em relação à verdade (em que aquele "algo mais" varia de acordo com a doutrina filosófica), a lógica fica do lado da formalização, que opera com o conceito mais restritivo de verdade que se pode conceber, o auto-normativo: "chamaremos de verdadeiras as proposições construídas segundo tais e tais critérios, assim explicitamente pré-estabelecidos...": um conceito tão restritivo de verdade acaba esbarrando na enunciação, interior ao próprio formalismo, de um excesso em relação ao que é formalizável, excesso este que, considerado filosoficamente (pelo menos segundo uma determinada doutrina), concentra a verdade da própria formalização, mesmo naquilo que ela tem de (aparentemente), mais evidente e tranqüilo.
Lógica e filosofia, lógica jurídica e filosofia jurídica distinguem-se então se tomarmos lógica no sentido estrito. Na medida em que incluímos no conceito de lógica (ou de lógica jurídica) algo mais do que a pura coerência formal, os dois termos passam a equivaler-se.
Para as diferentes doutrinas filosóficas da verdade, a coerência formal será então uma parte. Devemos desde já distinguir entre o simples princípio de que o discurso deve ser uma operação coerente, lógica, para pretender minimamente alçar-se ao estatuto de "discurso verdadeiro", e aquilo que seria uma análise lógica do discurso, ou seja, a aplicação da lógica (em suas diversas variantes) à análise discursiva. Tal aplicação tem-se revelado decepcionante, o que não é uma surpresa, na medida em que, por definição, a lógica em sentido estrito não vai além da condição mínima - coerência - exigível pela verdade filosófica. Um exemplo recente desta situacão é a tentativa (até agora frustrada) de aplicação da lógica paraconsistente à formalização da contradição dialética: a contradição para a lógica formal, mesmo paraconsistente, é estática, enquanto que na dialética (estrutural ou não) ela é dinâmica, é sempre um processo, além de tudo gravado de empiricidade: explica-se então porque a formulação simultânea de alguma coisa e seu contrário ("A" e "não A"), longe de ser para a dialética alvo de exclusão, é antes seu "ponto de partida". Empiricidade + processo é o que garante a racionalidade da contradição (dialética).
Se a filosofia diz a verdade da verdade (o que faz com que alguma coisa tenha esse atributo), a filosofia jurídica, incluindo a lógica jurídica, diz a verdade da verdade jurídica, ou seja, a verdade do direito, variável segundo a doutrina filosófica.
III - CONCEITOS FILOSÓFICOS DE VERDADE
1 - INADEQUAÇÃO DA ADEQUATIO
O conceito mais tradicional de verdade na filosofia não difere em nada da maneira como esta noção funciona na linguagem corrente: é a adequatio res et intellectu (adequação da coisa e da idéia) de Aristóteles e São Tomás de Aquino.
A insuficiência deste conceito de verdade aparece imediatamente se pensarmos que não existe nenhuma medida desta adequação: de que forma poderíamos avaliar a exatidão do acordo de uma coisa com a representação que dela é dada? Seria necessário um padrão de medida que nos fornecesse a adequação perfeita, em relação à qual poderia então ser avaliada a precisão das outras adequações, que seriam tanto mais verdadeiras quanto mais se aproximassem daquele modelo, e vice-versa. Mas a dificuldade é que esta adequação perfeita não existe, sendo uma entre outras. Por exemplo, eu posso tentar representar meu gato num desenho. Faço várias tentativas e acabo obtendo uma imagem que me satisfaz. Tenho eu o direito de afirmar que esta representação de meu gato é perfeita, ou verdadeira? De modo algum, ela é no máximo melhor, ou mais exata, do que outras. Só poderia dizer isso se tivesse à minha disposição a maneira perfeita de representar meu gato, com a qual eu poderia então comparar as outras representações.
A adequação perfeita, se existisse, seria uma adequação entre outras, e, por conseguinte, só poderia tirar seu título de sua identidade com outra, esta sim, realmente perfeita. Mas este raciocínio vai valer também para esta última, e temos uma regressão infinita.
Além desta objeção, que poderíamos chamar de "lógica", uma outra pode ser feita, e foi feita efetivamente por Foucault, ao descartar esse conceito de verdade adotando a perspectiva de Nietzsche, que coloca no cerne, na raiz do conhecimento, a luta, a relação de poder, e não a semelhança, a adequação, a unidade.
2 - CONTRATUALISMO
A ideologia corrente do direito parece situar-se numa perspectiva rousseauista, na medida em que, subjacente à concepção segundo a qual o direito é assintoticamente perfectível, podemos detectar o princípio metafísico de uma renúncia primordial a uma parcela de liberdade no momento da socialização. Nesta perspectiva o direito e sua evolução seriam, em sua essência, o caminho em direção à sociedade ideal, uma assíntota dirigida ao ponto em que seria enfim realizada a perfeita justiça. O direito se aproxima da verdade na medida em que codifica enfim a contratualidade ideal entre os humanos, e todo seu movimento histórico vai nessa direção. Tanto em seu fundamento, quanto em sua prática, evolução e codificação, a base do direito é aqui a justiça, realizada pelo sujeito da consciência, cartesiano, kantiano, fundamento da significação.
3 - O DIREITO COMO SUPER-ESTRUTURA
Para Marx e seus seguidores, o fundamento do direito vai ser exatamente o inverso, ou seja, a injustiça, na medida em que a base da sociedade é o modo de produção e a luta de classes, e o direito apenas uma emanação, um reflexo dessa base, a super-estrutura jurídica, cuja função é precisamente a reprodução da base da qual deriva, retroagindo sobre ela. Na utopia marxista da sociedade sem classes, desaparecem o Estado e o direito, derivados que são de uma situação social de dominação, ou seja, de injustiça. A verdade filosófica do direito é aqui exatamente o inverso daquela em que ele é visto como assintoticamente perfectível.
Com relação à problemática do sujeito, já é nítida em Marx a ruptura com as filosofias centradas na subjetividade cartesiana, pela introdução de mecanismos estruturalmente detentores de uma lógica interna, extra-subjetiva.
4 - A VERDADE COMO ESTRUTURA
O ponto de partida do estruturalismo é a ruptura com relação ao sujeito cartesiano. A verdade encontra-se aqui numa posição exterior ao sujeito, num mecanismo que o domina e constitui. Para o estruturalismo mais radical, o sujeito sequer existe. Ele é no máximo parte de uma engrenagem abstrata, a ser explicitada pela análise estrutural. A posição de Sartre é neste ponto altamente sintomática, na medida em que, tentando conciliar o marxismo com um existencialismo de base heideggeriana, numa visão ainda cartesiana do sujeito, acabou por distanciar-se de Heidegger (este distanciamento, para ser mais exato, foi mais inciativa de Heidegger do que de Sartre), ao mesmo tempo em que lançava o anátema sobre o estruturalismo, "ideologia da sociedade tecnocrática". Para Sartre, o marxismo estrutural de Althusser é inconcebível, e toda sua polêmica com Foucault só se explica na medida em que via neste último um "estruturalista", o mais ousado de todos, por ter tentado levar o império da estrutura precisamente àquele domínio que mais lhe parecia irredutível, a história. Veremos que esta interpretação da obra de Foucault não é bem exata.
5 - A VERDADE HEIDEGGERIANA
O marxismo existencialista sartreano, se por um lado conduziu Sartre a lançar um anátema contra o estruturalismo, por outro fez com que ele se afastasse também de Heidegger (questão explicitamente elucidada na "Carta sobre o Humanismo" - iniciativa de Heidegger).
Para Heidegger, existem as coisas, animais e plantas; a estes podemos atribuir os predicados que quisermos; do Ser, dizer que ele é, a única afirmação que pode ser feita, já é demais; o ser humano é aquele que não existe nem é, situando-se "entre os dois", ex-sistindo, na medida em que é o único capaz de formular uma interrogação sobre o Ser, interrogação que para Heidegger é a própria filosofia, o que faz com que o Ser saia de sua solidão eterna. Não fosse por esta interrogação, o Ser permaneceria perpetuamente "fechado em si mesmo". A verdade do ser humano, sua essência, aparece na denominação Dasein ("ser aí"). Todo o pensamento ocidental, desde Sócrates, Platão e Aristóteles - a ratio occidentalis - produz um efeito de esquecimento do Ser que Heidegger tenta eliminar por meio da "desconstrução da metafísica" e do restabelecimento do laço originário com o Ser existente na época dos pré-socráticos. Restabelecer a verdade é aqui restabelecer o laço com o Ser.
6 - FOUCAULT
O historicismo foucaldiano se transforma em filosofia no ponto em que, no estabelecimento do que é a verdade, a investigação histórica é convocada para mostrar o que foram os diferentes procedimentos de veridição, que tornaram possível a divisão do verdadeiro e do falso num dado momento. O que faz com que, para Foucault, é só em função das aparências que o que é tido por verdade detém esse caráter a partir de uma virtude ou propriedade intrínseca, interior - e é sob a fé dessa aparência que alguns filósofos puderam pensar que, uma vez determinado em que consistia a verdade da coisa verdadeira, seria dada a própria Verdade, enquanto que na perspectiva foucaldiana inexiste a "verdade em si", pois o caráter "verdadeiro" atribuído a algo lhe é sempre delegado por uma prática, que apenas existe historicamente, não sendo em si mesma nem verdadeira nem falsa. Isto significa que, por trás de uma verdade qualquer, mesmo científica, o que se encontra não é a "revelação metafísica da verdade em si", e sim apenas um procedimento, de que ela é uma manifestação, um produto. Então, de duas coisas uma: ou a verdade não existe nem nunca existirá, ou aquilo que se teve por verdadeiro num dado momento da história não é nem mais nem menos verdadeiro do que aquilo que se teve por verdade séculos depois. Temos apenas diferentes procedimentos de veridição.
Por exemplo, o enunciado "o sol gira em torno da terra", tido por absolutamente verdadeiro antes de Copérnico (tão verdadeiro que na época tinha até uma justificação teológica: o centro do universo é o planeta em que habita o homem, imagem e semelhança de Deus) vai ser por Foucault considerado tão verdadeiro quanto seu inverso, depois de Copérnico. Vê-se que, levada às últimas conseqüências, a posição de Foucault conduz a uma negação da idéia de progresso.
O positivismo historicista foucaldiano é na verdade um transcendentalismo historicista. Na prática, a "revolução coperniciana" na análise histórica, de que fala P. Veyne a propósito do método foucaldiano, consiste em descrever práticas desobjetivadas, abolindo-se o emprego de conceitos como modo de produção, estrutura social, luta de classes, etc., como elementos explicativos primordiais, sendo os mesmos considerados segundos, ou seja, objetivações resultantes de determinadas práticas.
7 - O SUJEITO PÓS-CARTESIANO
Em Jacques Lacan e Alain Badiou encontramos uma concepção da verdade que corresponde ao enunciado corrente "chegou a hora da verdade". Há verdade cada vez que um sistema ordenado sofre uma interrupção - interrupção da repetição por meio da qual algo de novo se produz, acarretando uma modificação total ou parcial deste mesmo sistema. O ponto preciso em que Badiou se separa de Lacan é que, para o segundo, não há novidade radical: toda e qualquer transformação, por mais profunda e radical que seja, só tem por efeito produzir uma combinação modificada de elementos pré-existentes (dialética estrutural), enquanto que para Badiou, um excesso pode existir, que é algo radicalmente heterogêneo ao sistema que o produziu (dialética materialista): onde há excesso, um mundo novo vem à existência. O pós-estruturalismo recoloca a questão do sujeito, porém não mais cartesianamente unificado, e sim essencialmente cindido, entre uma parte de si mesmo constituída por condições anteriores, formando sistema, e outra parte que o excede. Clivagem que reproduz aquela operada por Freud, ao introduzir o inconsciente. São condições conceituais deste tipo que suscitam a questão de saber até que ponto o sujeito pós-cartesiano realiza ou não, ao mesmo tempo, uma ruptura com relação tanto ao sujeito da consciência quanto à estrutura dos estruturalistas.
Do ponto de vista da teoria (pós-cartesiana) do sujeito, o inventário dos nomes filosóficos da verdade é composto de coerência, repetição, totalidade e torsão (Alain Badiou, Théorie du Sujet, Ed. Du Seuil, Paris, 1982, pp. 134 1 142):
- a verdade limitada à coerência se reduz ao estatuto formal de sua inscrição. Basta que o pensamento não contradiga a si próprio para ser verdadeiro. A ontologia subjacente a esta concepção é a idéia de que o pensamento não tem exterior sensível (solipsismo); o real sofre aqui uma forclusão: é o idealismo metafísico subjetivo, representado pelo bispo Berkeley;
- na repetição opera-se o inverso do idealismo metafísico subjetivo; aqui só existe o exterior objetivo, o mecanismo subjetivo do conhecimento é nulo, acontece unicamente que uma região do mecanismo geral se nomeia "conhecimento"; "conhecer" é re-produzir alguma coisa: Lucrécio (materialismo metafísico);
- na figura da totalidade, o exterior é reconhecido como tal, mas o primado ainda é dado ao pensamento, cujo acesso ao real se faz (ou não) de duas maneiras: no idealismo metafísico subjetivo, o real intervém como pura menção pelo fato mesmo da experiência, donde procede o sujeito transcendental: Kant; no idealismo metafísico objetivo, o pensamento fica suspenso a uma totalização futura, donde se segue que a verdade só existe de forma integral. A conseqüência do caráter imaginário desta integralidade é o retorno à coerência como critério do verdadeiro e do falso, na ausência da totalização: Hegel;
- na modalidade da torsão, o pensamento e o exterior objetivo são distintos, mas o primado é dado ao real, e não à idéia. Contrariamente a Hegel, a garantia da verdade não vem de uma totalização futura, mas da defasagem espiralada do novo. A espiral se repete, porém não de modo mecânico, já que a circularidade é sem unidade de plano, determinada por um coeficiente de torsão, nela residindo a essência subjetiva da verdade (dialética materialista).
Com relação à ontologia, a figura subtrativa do Ser da ontologia matemática opõe-se frontalmente ao Ser como presença na visão heideggeriana; para a primeira, aquilo que procura a segunda afinal é a essência da metafísica e inversamente, Heidegger veria na ontologia matemática apenas mais um capítulo da metafísica, capítulo especial, sem dúvida, mas afinal só mais um entre outros.