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Qual é o cheiro do Direito? Primeiras conjeturas para uma semiótica da “matéria” jurídica

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Este artigo é uma aproximação semiológica de uma possível sensação olfativa do Direito, considerando-se que a semiótica pode englobar os cinco sentidos. Conjectura-se se o cheiro do Direito seria de fumaça (fumus boni juris).

“Em virtude de seu status marginal e reprimido na cultura ocidental contemporânea, o cheiro dificilmente é considerado um veículo político ou um meio para a expressão de fidelidades e lutas de classes. Não obstante, a olfação participa de fato na construção de relações de poder em nossa sociedade, nos níveis popular e institucional.” (1)

Resumo: Este artigo é uma aproximação semiológica de uma possível sensação olfativa do Direito, considerando-se que a semiótica pode englobar os cinco sentidos. Sendo a percepção do Direito expressa pelo latim fumus boni juris, conjectura-se se o cheiro do Direito seria de fumaça, descrevendo-se as suas estruturas. A partir desse ponto, pensa-se sobre as estruturas da matéria jurídica.     

Palavras-chave: Direito - cheiro – fumaça – estrutura – matéria – semiótica.


1. INTRODUÇÃO E CONTEXTO DO PROBLEMA

Em tempos de uma Semiótica Jurídica emergente, mas ainda não culturalmente arraigada (2) na compreensão e explicação dos fenômenos, é perceptível que a Iconografia Jurídica, de uma maneira geral, volta-se mais às artes visuais (pintura e escultura, principalmente, na chamada “Visual Law”) do que a outros possíveis signos que integram a percepção empírica dos fenômenos envoltos pelo Direito, e que podem ser fonte de informação e de interpretação para o ser cognoscente, imerso nesta profusão concorrente de variados estímulos e conceitos que formam a imagem ideal da juridicidade.

Poder-se-ia ponderar referida ascendência com base na noção de que são estes, visão e audição, os sentidos mais explorados na produção cultural, muito embora, na realidade dos acontecimentos, nem sempre sejam os mais conscientemente manejados, nem tampouco os mais ativados pelas trocas humanas. Ou seja, o fato de atentarmos mais à visão e à audição em nossas produções comuns não significa, necessariamente, que o mais importante da realidade sejam estas manifestações, o que por si elide a aspiração da plena mímese linguística de qualquer coisa, produzindo-se feixes de sentidos e representações em que domina sempre uma ausência substantiva.

Uma causa provável do desequilíbrio, ou das diferentes destinações culturais dos usos dos sentidos, pode ser buscada nos estudos de biologia, na morfologia comparada. Uma explicação corrente é a de que a evolução de partes específicas do cérebro correspondem aos estilos de vida das espécies, produzindo diferentes ascendências funcionais. O cérebro humano possui uma dominância do córtex visual, com visão binocular acurada na percepção da distância, tendo reduzidas as estruturas olfativas enquanto traço evolutivo resultante da vida ao ar livre e uso maior de referências visuais e táteis para a sobrevivência (3). Contudo, permanece a relevância do olfato na identificação das mais variadas condições de sobrevivência.

Nesse contexto, ainda, pode-se verificar que os meios de comunicação contemporâneos aperfeiçoam a representação tridimensional da imagem e do som, mas pouco avançam na apresentação ou reprodução de aromas com fins intelectivos. Concretamente, o apelo ordinário do olfato se aprimorou na indústria alimentícia, em aromas artificiais idênticos ao natural, da baunilha ao bacon; e na perfumaria, da mais barata à milionária, tantas vezes uma emulando a outra na incessante busca de sofisticação. A gastronomia, também, refina-se no apego às sensações específicas, transcendendo a alimentação pela sobrevivência, vendo nela uma arte e um prazer do paladar. Todos esses exemplos apontam para uma maior fluidez do aroma, destinado ao consumo e se encerrando em seu caráter de composto volátil.

As artes seguem o mesmo caminho, de modo que os cheiros (enquanto manifestação, e não representação imagética) integram e estrelam principalmente as experiências de vanguarda na arte contemporânea, geralmente em arte ambiental (4), ficando a produção aromática difundida, de ponta e exaustiva canalizada nas grifes e designers de perfumes, unindo alta sofisticação com a imediata venda casada de sensualidade, modernidade, bem-estar e toda sorte de imagens que as pessoas possam agregar a si por meio da compra e do estilo (5). O perfume é também um meio de valores sociais que o indivíduo pode exalar.

Filosoficamente, a pergunta latente no assunto é: o cheiro permite produzir conhecimento? Conforme se verifica pelo cenário acima desenhado, ao aroma ficou relegado mais o papel dentro do consumo do que, necessariamente, de conhecimento; ou seja, sua função precípua é ser fruído, e não poderia ser diferente ante sua natureza. O papel das especiarias e sua fascinação no desenvolvimento comercial corrobora esse entendimento.

Contudo, como todo fenômeno, do aroma pode se depreender conhecimento, valoração, enfim, produções culturais que, ao se perpassarem na discussão, se transmutam em novas possibilidades. A dualidade está presente no sentido.

Um interessante exemplo nesse sentido de discussão é a análise e crítica de perfumes. O crítico Chandler Burr se destaca nesse ramo e, para ilustrar, brevemente pode-se destacar alguns pontos de seu artigo “Gucci Envy é obra de arte olfativa moderna e enigmática” (6). Nesta crítica, o autor verifica que o perfume seria digno de exposição no Museu de Arte Moderna, tamanha sua transcendência e grandiosidade aromática: uma obra de arte olfativa. Para Burr, a fragrância única possibilita estados mentais surreais, criando-se uma beleza pura, límpida e requintada, qualificada pelas qualidades técnicas perfeitas de fixação, intensidade e estrutura. A fragrância seria “maravilhosamente estranha quanto estranhamente maravilhosa”, devendo-se para apreciá-la abandonar as referências aos aromas naturais. Ainda, destaca o autor, acerca da atividade de crítica aromática: “é interessante como é mais difícil descrever um bom perfume do que um perfume ruim, mas não é de surpreender: isto acontece, em boa medida, porque quase sempre os bons incorporam a originalidade, e esta é, por definição, uma qualidade que desafia a descrição.”.

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Veja-se, pois, como os aromas e as suas clássicas notas de saída, de corpo e de fundo, que conferem estrutura, estão intimamente vetorizados ao campo da memória, das sensações, intuição, e, em certo sentido, transcendem as habilidades verbais e linguísticas. Aliás, as peculiaridades do olfato desafiam a capacidade de remissões e de articulação explicativa. Ainda no exemplo do autor em comento, perceba-se a criativa estratégia utilizada para comunicar sua compreensão do aroma, valendo-se de analogia com outros sentidos e metáforas, além das referências aos padrões das escolas de criação de perfumes: “Envy é uma inovação verde, fresca, moderna e abstrata, tão enigmático e ao mesmo tempo irresistível quanto os quadrados coloridos e flutuantes de um quadro de Mark Rothko e tão livre quanto informação consciente. Pode ou não ser atemporal. Veremos. Mas é tão singular e indescritível quanto um eclipse.”.

Esta crítica revela exemplarmente os desafios de tratar do assunto, o que requer trânsitos variados que, no escopo deste artigo, são feitos em um caminho inverso ao do crítico, contudo, segundo estratégia de abordagem similar: enquanto o analista de perfume deve criar imagens para expressar o aroma que sente, neste artigo se pretende buscar alguns caracteres do objeto para se inferir seu possível aroma, a partir de algumas abstrações.

O olfato, assim, é desafiador ao conhecimento, e estimula a linguagem, obrigando-a abandonar suas estratégias ordinárias, forçando a enunciação para produzir um sistema significativo da mensagem. Sua interação com a vida social se dá nas múltiplas dimensões, tais como os focos de estudo do Sense of Smell Institute, em Nova Iorque (7), ao definir campos da Aromacologia (estudo dos efeitos psicofisiológicos dos aromas): comportamento do consumidor; memória; humor e emoções; aprendizado e desenvolvimento; interação social; aplicações clínicas; genética e neurobiologia; percepção do odor e cérebro olfativo; saúde e percepção molecular e de misturas; feromônios. Por isso, a utilidade do assunto em se tratando de estética jurídica.


2. QUAL O CHEIRO DO DIREITO?

No amplo contexto do mundo olfativo, não se pode deixar de considerar que o Direito, por óbvio, não escapa do orbe dos sentidos, e nesse campo de exploração um pouco se tem falado também do Direito por meio da Música; e muito se tem falado, quase tudo, sobre Direito e Literatura. Porém, sentidos como o olfato e a audição, ao que soa e ressende, nada têm sido explorados, não obstante seu potencial para integrar entendimentos sobre a interação entre as pessoas no mundo jurídico e no social de interesse jurídico. Ou seja: como visto, o aroma interessa e desafia a produção de conhecimento, inclusive, o jurídico.

Em suma, a tradicional “qualificação” – preconceituosa e obtusa – que se dá comumente no Direito a respeito de algumas disciplinas essenciais (que integram mera “perfumaria”, ou seja, o que está fora do costumeiro pragmatismo), pode ser manejada, sem medo do jogo de palavras e sentidos: no Direito, os aromas estão condenados à simples perfumaria.

A busca pelo cheiro do Direito, “[...] para além e por detrás ou por baixo ou por cima”(8)  de sua realidade fenomênica (9), e desta também, em uma expressão quase sinestésica de seu conceito, pode representar uma intuição transmutada em aroma. Qual seria?

“Quod non est in actis non est in mundo” – o que não está nos autos, não está no mundo jurídico. Há algum cheiro “in actis”? O “fumus boni iuris” “est in actis” e, sem dúvida, “est in mundo”. Num processo criminal, o cheiro do cadáver “non est in actis” e, consequentemente, “non est in mundo”. Mas o cheiro do papel foge à escrita (sem perdão do trocadilho): ele está nos autos, mas não está no mundo jurídico. Os planos de cheiros são muitos e todos inter-relacionados em momentos distintos.

Isso obriga a distinguir entre dois tipos de odores possíveis para o Direito: um é abstrato e teórico, chamado de “fumus boni iuris”. Portanto, a Doutrina Jurídica e a Teoria do Direito teriam, supostamente e por alegoria, cheiro de fumaça: agradável ou não, expressam um indício, possivelmente, do direito positivo, o que leva ao problema do cheiro deste.

Diz um adágio popular que “isto não me cheira bem”. Evidentemente, é uma síntese do senso comum para expressar a verificação de algo errado, imperfeito, obscuro ou inacabado. E não se duvida que uma atitude antiética, ou mesmo uma conduta antijurídica, realmente agridam, ardam aos sentidos. A expressão do “isto não me cheira bem” é a de um indício de podridão, de extemporaneidade, enfim, de degenerescência e decomposição da coisa dantes íntegra, e que agora exala os estímulos de seu nefasto desfazimento.

Neste mesmo contexto, a indiferença é representada por outro adágio, o “nem fede nem cheira”, demonstrando que o aroma é apto para indicar focos da atenção e da relevância. Por isso, para muitos o Direito fede, enquanto para outros, exala seus perfumes mundo afora.

É justamente nesse contexto que se pode encontrar o “fumus boni iuris”.

Há o outro dito popular, “onde há fumaça há fogo”; e algumas tribos indígenas, como os apaches, comunicavam-se por meio de sinais de fumaça, que, inclusive, em semiótica constitui o exemplo clássico para se explicar a figura do índice na tríade ícone, índice e símbolo. Ora, isto quer dizer que a fumaça também é um veículo de comunicação. Nesse sentido, sob o ponto de vista semiótico, a fumaça é um signo perfeito e acabado, onde há emissor e receptor da mensagem. A fumaça é a mensagem. O “fumus” também, uma mensagem do requerente ao juiz.

O outro tipo de odor possível para o Direito, na linha do acima delimitado, é concreto e material; revela-se plural e cotidiano: trata-se de cheiro de papel, que pode ser papel novo, velho, sujo, empoeirado, derramado de café, etc. E cheiro de bolor, que significa, em última análise, cheiro de tempo transcorrido e da mudança imperativa das coisas em curso. Até quando o Direito, na prática, terá cheiro de papel e de bolor? Até virtualizar-se por completo no processo eletrônico? E até quando o mundo virtual estará abastado da difusão aromática? Qual diferença faz o aroma na percepção e integração dos fenômenos?

O cheiro de hospitais se consagra como o aroma da assepsia e, para alguns, do temor. O cheiro das penitenciárias expressa a condição de indignidade ali vivenciada. Os cheiros dos fóruns podem representar pessoas bem atendidas em suas necessidades básicas, inclusive com capacidades de supérfluo, indicando também respeito institucional ou mera afirmação pessoal, ou, ainda, a convivência dos aromas que expõem as mais variadas condições de vida reunidas no espaço público de solução de controvérsias. O aroma informa, une, demarca, separa; aproxima, afasta e hierarquiza as pessoas.

Os aromas podem acalmar ou agredir, e qualquer um que sofra de enxaqueca sabe o poder destruidor até dos melhores dos perfumes. Os diferentes ambientes sociais condensam massas aromáticas que indicam sobre as pessoas que ali convivem e sobre os fenômenos e relações que nele se estabelecem, de modo que o aroma compõe o conhecimento do objeto, dá-lhe identidade, finalidades, qualidades.

Interessante verificar como a integração dos sentidos acerca do Direito revela os mais íntimos conceitos, preconceitos e concepções acerca do fenômeno jurídico. É inegável a ligação direta do olfato com a memória e as emoções, tanto que é por essa via que Proust celebrizou a imagem da remissão direta às vivências da infância por meio do experimentar a madeleine embebida em chá, experiência de lançamento temporal que qualquer um já vivenciou ao ser bombardeado, por acaso, por um perfume da pessoa antes amada e distante, pelas lembranças associadas ao aroma do café coado, da chuva na terra e assim por diante, em uma totalidade de apreensões.

Talvez a integração do que se vê, com o que se aspira, com o que se ouve e se manipula permita interrelacionar dados de um objeto essencialmente complexo à inteligência, reunindo as emoções com os dados racionais.

Esta integração poderá produzir novos conceitos e aspirações (no duplo sentido) jurídicas (10), permitindo ver e sentir o que antes se encontrava oculto, ou por estar encoberto pela cegueira cotidiana, ou porque naturalizado nas práticas sociais. Sendo consabido que estas estão abertas à criatividade e reinvenção humanas, encontra-se na exploração do olfato um novo instrumento para conhecer, sensibilizar e criar o Direito mais consoante a demanda do real a que se direciona.

É nesse contexto que a pergunta do “cheiro do Direito”, enquanto envolvimento de plano estético e de semiótica, faz pleno sentido, quanto mais se pensando nas virtualidades do emprego do caráter “sinestésico”, como dito, que o conhecimento pode adquirir: a junção de sentidos distintos produzindo resultados de estímulos de uns nos outros (p. ex. a cor ou o cheiro do som, a aspereza do aroma etc.), como figura de linguagem, apropriado e funcional, pois próximo da metáfora, constituindo assim método de apreensão intelectivo-especulativo. Ao se pensar sobre o cheiro do direito está-se também no campo da sinestesia, unindo-se um aspecto olfativo com outro, intelectivo, cognoscente, produzindo diálogos e investigando a natureza dos objetos por caminhos menos convencionais.

Ainda neste rumo, importa destaque a definição deveras controvertida e debatida, qual seja, a de que palavra “sentença” vem de “sentir” (11). Muito se critica que ela traria um apelo ao sentimentalismo, mas não se pode negar seu caráter indicativo de função.

O cheiro do direito é sentido antes da sentença. Basta lembrar a “fumaça do bom direito”. Pois bem, a fumaça (“fumus”) não é um gás, mas um colóide, partículas sólidas (micelas) no ar (“desmanchadas”, cf. pregante imagem criada por Marshall Berman), em movimento browniano, observáveis graças ao efeito Tyndall. A fumaça é uma estrutura dissipativa, relacionada à teoria do caos (Prigogine). O movimento browniano é tipicamente caótico, ou seja, aparentemente, a semiótica do “cheiro do direito” permite, de fato, uma abordagem pela teoria das estruturas dissipativas. A teoria das estruturas dissipativas e o Princípio da ordem por meio das flutuações contribuíram para a formação de uma nova mentalidade. Nesta nova visão, destacam-se: a história, a imprevisibilidade, a interpretação, a espontaneidade, a desordem, a criatividade, o acidente a auto-organização. Tem-se ainda, para essa teoria que o pensamento está sempre em processo. É provisório, não é estável, não é fixo. Assim como a liminar fundada no “fumus”: provisória, instável, sujeita às flutuações processuais (e a linha processual não é reta, mas cheia de incidentes, portanto, fractal, ou seja, caótica) que podem cassá-la ou suspendê-la.

Falar em “fumus” também remete ao “sfumato”, técnica básica de representação consagrada na pintura renascentista, evidente na face da Monalisa. Pelo “sfumato”, as passagens de cor e de tonalidade são feitas sem cortes abruptos, mas suave e progressivamente, o que leva à imagem difundida e metafórica do conhecimento das diferenças, segundo a qual não se deve encarar a realidade de modo tão contrastante, “preto no branco”, mas considerando os inúmeros intermédios cinzas que permitem distinguir sutilezas e nuances, similitudes e oposições que nos permitem compreender as formas pelos jogos de luz e sombra e múltiplos matizes.

À primeira vista, pois, se pode considerar que a presença do “fumus boni iuris”, ao contrário do “sfumato”, serve justamente para “quebrar” o “status quo”, mediante a imposição de uma medida liminar. Quer dizer, a liminar se apresenta justamente como a transição abrupta, não “sfumata”. No entanto, como bem esclarece Marinoni, o que ocorre é exatamente o contrário: a liminar vem justamente para aparar as arestas, em favor do autor que vem tendo seus direitos violados no plano fático. Mesmo porque a liminar pode não ser satisfativa, mas acautelatória do resultado útil do processo, o que daria uma ideia ainda mais próxima de amenização de transições abruptas. O “fumus” é, de fato, “sfumato”.

Mas nem tudo é “fumaça” ou “cheiro” no Direito. Enfatizem-se expressões como “direito líquido e certo”, no mandado de segurança. Não é só o sólido que é relevante, no imaginário jurídico; o colóide (“fumus”) e também o líquido (liquidez do direito, de um crédito etc.) igualmente podem ser considerados juridicamente valorosos. Ora, a ideia da “liquidez” remete imediatamente a Bauman, especialmente à “Modernidade Líquida”, enquanto a solidez aponta para o passado. Tais expressões, no jargão jurídico, estão carregadas de um perfil não “pejorativo” (negativo) – que, por exemplo, teria um direito “ilíquido” – ora, mas o ilíquido é o quê? Gasoso? Não é possível precisar em abstrato. De qualquer sorte, o gás está mais próximo de uma noção de incerteza, o que entra em conflito com a pretensão de segurança jurídica.

Porém, a “solidez” é também bastante presente no imaginário jurídico. Basta citar jargões que remetem à idéia de concretude, porque calcados numa concepção jusfilosófica pré-atômica, como “materialidade do delito”, “materialidade da prova” (e do direito); em contraponto à  a tese da “desmaterialização da propriedade”, por exemplo, com os ativos intangíveis (lembramos Marshall Berman: “tudo o que é sólido se desmancha no ar”).

Chama particularmente a atenção a expressão “sólido saber jurídico”, a qual se apresenta como expressão fossilizada, digna de um “Dicionário de idéias feitas” de Flaubert, o que diz muito sobre o imaginário que o universo jurídico faz sobre a consistência do direito. Pensando-se sobre a ideia de “solidez” no imaginário jurídico, é possível observar que, para as concepções mais tradicionalistas, tudo tinha que ser sólido: o saber, a consistência, a mobília, o vetusto mármore, etc. Mais do que uma questão estética, a ideia de solidez no Direito deriva de uma concepção da matéria anterior à descoberta do átomo, quando se acreditava que a matéria era maciça.

Atualmente, sabe-se que no interior da matéria há mais espaços vazios do que massa, mas para muitas concepções do Direito, a mobília e o saber continuam sendo sólidos, maciços, densos, opacos, sem ar no entremeio. Em contraponto, os juristas de qualquer tempo adotam o “fumus boni iuris”, que é volátil e dissipativo como o cheiro – assim como a efemeridade e volatilidade enquanto metáforas da fugacidade de fatos jurídicos perdidos no tempo. A operação jurídica muitas vezes se torna um apanhar de fumaça com as mãos.

Sobre os autores
Laércio A. Becker

Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Paraná

Maria Francisca Carneiro

Doutora em Direito pela UFPR, Pós-doutora em Filosofia pela Universidade de Lisboa, membro do Centro de Letras do Paraná, da Italian Society for Law and Literature e do International Journal for Law, Language & Discourse.

Eliseu Raphael Venturi

Mestrando em Direito pela UFPR, advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BECKER, Laércio A.; CARNEIRO, Maria Francisca et al. Qual é o cheiro do Direito? Primeiras conjeturas para uma semiótica da “matéria” jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3570, 10 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24139. Acesso em: 22 nov. 2024.

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