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Análise histórica e conceitual da função do Defensor Público

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3. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA: HISTÓRIA E DEFINIÇÃO DE DEFENSOR DO POVO

Na Argentina, a Defensoria do Povo foi primeiramente criada por uma lei orgânica, para só depois ser inserida no texto constitucional. Trata-se da Lei nº 24.284[39], promulgada pelo Decreto nº 2.469, de 02 de dezembro de 1993:

Artigo 1º - creación: se crea en el ámbito del Poder Legislativo de la Nación la Defensoría del Pueblo, la cual ejerce las funciones que establece la presente ley, sin recibir instrucciones de ninguna autoridad. El objetivo fundamental de esta institución es el de proteger los derechos e intereses de los individuos y la comunidad frente a los actos, hechos y omisiones de la administración pública nacional [...].

Vê-se, portanto, que a Defensoria do Povo faz parte do Poder Legislativo, de modo diverso do que acontece no Brasil, onde o Ministério Público é colocado em capítulo independente daqueles que tratam dos três poderes estatais.

No âmbito constitucional, o Defensor do Povo, também chamado de ombudsman, foi incorporado pela reforma constitucional de 1994. O Constituinte de 1994 introduziu o Defensor do Povo na segunda parte da Constituição da Nação Argentina de 1853, intitulada “autoridades da nação”, composta de dos títulos. O Título I, distribuído em quatro seções, trata do Governo Federal: a primeira seção normatiza o Poder Legislativo (artigos 44-86); a segunda seção é dedicada ao Poder Executivo (artigos 87-107); a terceira seção trata do Poder Judiciário (artigos 108-119); e a quarta seção é dedicada ao Ministério Público (artigo 120). O Título II versa sobre os governos de província (artigos 121-129).

No que interessa para este estudo, a primeira seção do Título I, que trata do Poder Legislativo argentino, subdivide-se em sete capítulos, nessa ordem: Câmara dos Deputados, Senado, disposições comuns a ambas as Câmaras, atribuições do Congresso, da formação e sanção das leis, da Autoridade Geral da Nação, e do Defensor do Povo. Este último capítulo, de nº VII, possui apenas o artigo 86, in verbis:

Artigo 86: el Defensor del Pueblo es un órganos independiente instituído en el âmbito del Congreso de la Nación, que actuará con plena autonomia funcional, sin recibir instrucciones de ninguna autoridad. Su misión es la defensa y protección de los derechos humanos y demás derechos, garantias e intereses tutelados en esta Constitución y las leyes, ante hechos, actos u omisiones de la Administración; y el control del ejercicio de las funciones administrativas públicas. El Defensor del Pueblo tiene legitimación procesal. Es designado y removido por el Congreso con el voto de las dos terceras partes de los miembros presentes de cada una de las Câmaras. Goza de las inmunidades y privilégios de los legisladores. Durará en su cargo cinco anos, pudiendo ser nuevamente designado por una sola vez. La organización y el funcionamiento de esta institución serán regulados por una ley especial.

A lei a que faz referência o citado dispositivo constitucional é a Lei nº 24.284, que precisou ser modificada para se adaptar à reforma constitucional, razão pela qual foi editada, em 1994, a Lei nº 14.379, promulgada pelo Decreto nº 1.756, de 1994[40]. A organização e o funcionamento da Defensoria do Povo rege-se pelo “Reglamento de Organización y Funcionamiento del Defensor del Pueblo[41], aprovado pela Resolução nº 1, de 26 de outubro de 1994, da Comissão Bicameral Permanente das Defensoria do Povo, publicada no Boletim Oficial de 02 de dezembro de 1994. Tal regimento expressa no artigo 1º que:

El Defensor dei Pueblo es una institución de carácter constitucional, con plena autonomia funcional, administrativa y financiera. No está sujeto a mandato imperativo alguno. No recibe instrucciones de ninguna autoridad y actúa de acuerdo a su critério. Su misión es ia defensa y protección de los derechos humanos y de los demás derechos, garantias e intereses tutelados en la Constitución Nacional y las leves, ante hechos, actos u omisiones de la Administración y el eontrol dei ejercicio de las funciones administrativas públicas.

Por sua vez, no artigo 120, da Constituição da Nação Argentina de 1853, único artigo da quarta seção do Título I, consta que o Ministério Público argentino é um órgão independente, com autonomia funcional e autarquia financeira, que tem a função de promover a atuação da justiça em defesa da legalidade, dos interesses gerais da sociedade, em coordenação com as demais autoridades da República daquele país. O Ministério Público argentino é composto por um Procurador Geral da Nação e um Defensor Geral da Nação, bem como pelos demais membros que a lei estabeleça. Seus membros gozam de imunidades funcionais e intangibilidade de remunerações.

De acordo com o Decreto nº 605, de 25 de abril de 1994[42], publicado no Boletim Oficial do dia 28 de abril do mesmo ano, o Ministério de Justiça é um departamento do Estado argentino que tem como função cooperar com a concretização de projetos voltados à otimização do funcionamento da Defensoria do Povo. A referida cooperação se efetivará “conforme a las modalidades y prestaciones del artículo 4º, de la Lei nº 23.283”, que “autoriza a la Secretaría de Justicia a celebrar convenios de cooperación técnica y financiera a la Dirección Nacional de la Propiedad del Automotor y de Créditos Prendarios con entidades públicas o privadas”.

Para finalizar esse tópico, importa a informação de que a sucessão legislativa (Lei nº 24.284, de 1993, modificada pela Lei nº 14.379, de 1994), “con una reforma consdtitucional entremedio, ha suscitado opiniones encontradas”. A doutrina argentina tem suscitado entendimentos discrepantes, em relação à legitimidade constitucional da Lei da Defensoria do Povo, tanto em sua redação originária quanto na versão atual. Porém, como pontua Emílio L. Fernández[43]:

Desde la perspectiva dogmática, la postura que sostiene la inaplicabilidad de la ley carece de respaldo. Sus directivas se encuentran vigentes, y los precedentes reiterados que sento el alto tribunal desde el caso “Frías Moliria” en adelante, que la aplico expresamente, dan por tierra con dicha postura (grifo do original).

Permanece, portanto, legítima e vigorante a lei argentina da Defensoria do Povo, instituição que tem por escopo a difícil tarefa de assegurar o equilíbrio entre autoridade e liberdade, funcionando como importante mecanismo para limitar e controlar a arbitrariedade do ativismo administrativo em todos os seus aspectos, amplo ou restrito. Para tanto, conta com a colaboração do Ministério Público argentino, no sentido da concretização de projetos voltados à otimização de seu funcionamento.


4. MINISTÉRIO PÚBLICO BRASILEIRO E DEFENSOR DO POVO ARGENTINO

4.1 Fundamentação legal do Ministério Público

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 dedicou os artigos 127 a 130 ao Ministério Público, inseridos como seção I do capítulo que trata das funções essenciais à Justiça.

O artigo 127 traz o conceito, os princípios institucionais, sua natureza e proposta orçamentária.

O Ministério Público brasileiro que, dentre outras, exerce a função de Ombudsman, é definido pela Constituição Federal de 1988 como uma instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, investida do poder-dever de defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis (artigo 127, caput), norteado pelos princípios institucionais da unidade, da indivisibilidade e da independência funcional (artigo 127, parágrafo 1º).

Na interpretação do Superior Tribunal de Justiça:

Ementa: Processo civil. Legitimidade do Ministério Público. [...]. 1. O Ministério Público possui legitimidade para defesa dos direitos individuais indisponíveis, mesmo quando a ação vise à tutela de pessoa individualmente considerada. 2. O artigo 127, da Constituição Federal de 1988, que atribui ao Ministério Público a incumbência de defender interesses individuais indisponíveis, contém norma auto-aplicável, inclusive no que se refere à legitimação para atuar em juízo. [...][44].

Para tanto, o Constituinte de 1988 assegurou, ao Ministério Público, autonomia funcional e administrativa, facultando-lhe, dentro dos limites legais de despesas com pessoal ativo e inativo da União (artigo 169), “propor ao Poder Legislativo a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares, provendo-os por concurso público de provas ou de provas e títulos, a política remuneratória e os planos de carreira” (parágrafo 2º, do artigo 127). Nessas matérias, o Ministério Público brasileiro tem o poder de legislar.

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Também é de competência do Ministério Público elaborar sua proposta orçamentária nos limites da Lei de Diretrizes Orçamentárias anual. Nesse particular, o Ministério Público não tem o poder de iniciativa da proposta orçamentária, devendo esta “integrar-se no orçamento geral a ser submetido ao Poder Legislativo pelo Poder Executivo”[45] (parágrafos 3º a 6º, do artigo 127).

No artigo 128, a Constituição Federal de 1988 trata da estrutura orgânica e das garantias do Ministério Público.

Diz o referido artigo que o Ministério Público abrange: a) o Ministério Público da União, que compreende o Ministério Público Federal, o Ministério Público do Trabalho, o Ministério Público Militar e o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios; e b) os Ministérios Públicos dos Estados. Ressalte-se que além do Ministério Público da União e dos Ministérios Públicos dos Estados, o artigo 130 admite um Ministério Público Especial, não mencionado no artigo em comento, para atuar junto aos Tribunais de Constas, portanto, no âmbito de um órgão não jurisdicional. Importa considerar, também, que não há propriamente o Ministério Público Eleitoral, mas funções eleitorais do Ministério Público Federal.

O Ministério Público da União é chefiado pelo Procurador-Geral da República, nomeado pelo Presidente da República dentre integrantes da carreira, maiores de trinta e cinco anos, após a aprovação de seu nome pela maioria absoluta dos membros do Senado Federal, para mandato de dois anos, permitida a recondução, que deverá seguir o mesmo procedimento da nomeação. Não foi limitado o número de reconduções para o Ministério Público da União. Os Ministérios Públicos dos Estados também são chefiados por um Procurador-Geral do Estado, nomeado pelo Chefe do Poder Executivo estatal, para mandato de dois anos, permitida apenas uma recondução, sem a necessidade dos procedimentos de nova eleição, bastando a renomeação do Chefe do Poder Executivo do Estado.

É no interior dessa estrutura orgânica multifária e diversificada que são realizados os princípíos da unidade, da indivisibilidade e da autonomia.

O objetivo do artigo 128 é dar “consequência ao princípio da unidade do Ministério Público” E por isso, “trata todos os Ministérios Públicos enumerados nos seus incisos e alíneas como se constituíssem uma instituição única de atuação no plano federal e estadual[46].

Há que se reconhecer as dificuldades em se construir unidade e indivisibilidade de instituições que se inserem num contexto de organização federativa como a brasileira, cuja própria natureza já é diversificante. Porém, o sentido desses princípios é possível ser identificado, se for considerado que:

No Brasil, em virtude da organização federativa, pode-se dizer que há um Parquet [Ministério Público] em cada Estado, além do que constitui o Ministério Público Federal e dos que funcionam junto às jurisdições especiais. Dentro de cada Parquet existe a unidade e indivisibilidade que estruturam a instituição como um corpo hierarquizado. De Parquet para Parquet há apenas unidade funcional sob a base da lei, pois na aplicação do direito existem laços de coordenação e igualdade[47].

O Ministério Público brasileiro é independente porque não existe subordinação intelectual entre os Promotores de Justiça. As convicções precisam ser respeitadas, isto é, os Promotores de Justiça exercem suas atribuições sempre de acordo com a consciência do que consideram justo, não podendo receber ordens de seus superiores para agir deste ou daquele modo[48]. Por exemplo, no caso de substituição, o sucessor não está obrigado a seguir a mesma linha de pensamento que o anterior, nem mesmo em se tratando de processo em andamento:

Ementa: Processual penal. Ministério Público. Princípios da unidade e da indivisibilidade. Alcance. Vinculação de pronunciamento de seus agentes. Inexistência. O princípio da unidade e da indivisibilidade do Ministério Público não implica vinculação de pronunciamentos de seus agentes no processo, de modo a obrigar que um promotor que substitui outro observe obrigatoriamente a linha de pensamento de seu antecessor. Se um representante do Ministério Público manifestou-se na fase das alegações finais em prol da exclusão de qualificantes, o que foi acolhido na sentença de pronúncia, um outro membro do Parquet que substitui no processo pode interpor recurso pugnando para que se preserve a acusação inicial, não merecendo abrigo a tese de falta de interesse processual” Recurso Especial conhecido e provido[49].

O ingresso à carreira como Promotor de Justiça se dá por meio de concurso público de provas e títulos. A Constituição Federal de 1988 enumera algumas garantias aos membros do Ministério Público, que funcionam não como privilégios, mas como mecanismo de asseguramento funcional, já que são agentes políticos e precisam de liberdade funcional e maior resguardo para o desempenho de suas funções. São elas: vitaliciedade, após dois anos de exercício, não podendo perder o cargo senão por sentença judicial transitada em julgado; inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, mediante decisão do órgão colegiado competente do Ministério Público, pelo voto da maioria absoluta de seus membros, assegurada ampla defesa; e a irredutibilidade dos subsídios fixados pela lei.

Porém, ainda em razão da nobre função que realizam para a administração da Justiça, a Constituição Federal de 1988 veda aos membros do Ministério Público: receber, a qualquer título e sob qualquer pretexto, honorários, percentagens ou custas processuais; exercer a advocacia; participar de sociedade comercial, na forma da lei; exercer, ainda que em disponibilidade, qualquer outra função pública, salvo uma de magistério; exercer atividade político-partidária; e receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei.

O artigo 129, por sua vez, trata das funções institucionais do Ministério Público. Em síntese, o Ministério Público brasileiro aparece na Constituição Federal de 1988 como[50]:

a) titular (legitimidade processual) para impetrar ação penal; ação civil pública para a tutela dos interesses públicos, coletivos, sociais e difusos; e ação direta da inconstitucionalidade genérica e interventiva, nos termos da Constituição Federal de 1988;

b) garantidor do respeito aos Poderes Públicos, aos serviços de relevância pública e aos direitos assegurados na Constituição Federal de 1988, podendo promover as medidas necessárias para a sua garantia;

c) defensor dos direitos e interesses das populações indígenas, além de outras de intervenção em procedimentos administrativos, de controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar, de requisição de diligências investigatórias e de instauração de inquérito policial, vedadas essas funções a quem não seja integrante da carreira, salvo quanto à legitimação para as ações civis que não impede seu exercício por terceiros; e

d) fiscal da lei (custos legis) junto aos Tribunais de Contas: é salutar que o Ministério Público continue vigilante junto aos tribunais de Contas, para que suas decisões sejam cada vez mais técnicas e menos políticas, e que o Ministério Público comum continue garantindo o cumprimento destas decisões na justiça e o efetivo respeito aos interesses públicos.

Sobre a legitimidade processual do Ministério Público Brasileiro, assim decidiu o Superior Tribunal de Justiça:

Ementa: Processual civil. Administrativo. Ação Civil Pública. [...]. Interesses individuais homogêneos. Legitimidade ativa do Ministério Público. [...]. 10. A nova ordem constitucional erigiu um autêntico concurso de ações entre os instrumentos de tutela dos interesses transindividuais e, a fortiori, legitimou o Ministério Público para o manejo dos mesmos. 11. O novel artigo 129, inciso III, da Constituição Federal de 1988 habilitou o Ministério Público à promoção de qualquer espécie de ação na defesa de direitos difusos e coletivos não se limitando à ação de reparação de danos. 12. Hodiernamente, após a constatação da importância e dos inconvenientes da legitimação isolada do cidadão, não há mais lugar para o veto da legitimatio ad causam do Ministério Público para a Ação Popular, a Ação Civil Pública ou o Mandado de Segurança coletivo. 13. Em conseqüência, legitima-se o Parquet a toda e qualquer demanda que vise à defesa dos interesses difusos e coletivos, sob o ângulo material ou imaterial. 14. Deveras, o Ministério Público está legitimado a defender os interesses transindividuais, quais sejam os difusos, os coletivos e os individuais homogêneos. [...][51].

O constituinte, através do artigo 129 da Constituição Federal de 1988 tratou de estabelecer um elenco de funções institucionais do Ministério Público, para o alcance daquele desiderato, o qual, sem dúvida, é apenas exemplificativo, dado o infindável campo de relações que demanda a sua interferência. Entretanto, traz como função mestra a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Além dos citados dispositivos constitucionais, o Ministério Público é regulado por diversos textos legislativos.

O Ministério Público da União submete-se à Lei Complementar nº 75, de 20 de maio de 1993 (Estatuto do Ministério Público da União), que dispõe sobre sua organização, suas atribuições e seu Estatuto; pela Portaria nº 358, de 02 de junho de 1998[52], que traz o Regimento Interno do Ministério Público Federal; e pela Lei nº 11.415, de 15 de dezembro de 2006[53], que trata das carreiras dos servidores do Ministério Público da União e fixa os valores de sua remuneração.

O Ministério Público dos Estados é regido pela Lei nº 8.625, de 12 de dezembro de 1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público), que trata das normas gerais para a organização do Ministério Púbico dos Estados.

Lembre-se que cada Estado-Membro possui legislação estadual própria.

Em síntese, o Ministério Público vem ocupando lugar cada vez mais destacado na organização do Estado brasileiro, notadamente com sua primordial função de Ombudsman, que promoveu um alargamento de suas funções no sentido da proteção de direitos indisponíveis e de direitos coletivos. A Constituição Federal de 1988 lhe dá o relevo de instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Os membros do Ministério Público, como agentes políticos que são, podem atuar com plena liberdade funcional, desempenhando suas atribuições com prerrogativas e responsabilidades próprias, estabelecidas na Constituição de 1988 e em leis especiais. Possuem normas específicas para sua escolha, investidura, conduta e processo por crimes funcionais e de responsabilidade, que lhes são privativos[54].

4.2 Marco jurídico do Defensor do Povo

Na Argentina, o Ministério Público é definido pela Constituição da Nação de 1853, como um órgão independente, com autonomia funcional e financeira, com a finalidade de promover a administração da Justiça na defesa da legalidade e dos interesses gerais da sociedade, em conjunto com as demais autoridades da República argentina. O Ministério Público argentino é composto por um Defensor Geral da Nação e demais membros estabelecidos por lei, que gozam de imunidades funcionais e intangibilidade de remunerações (artigo 120, da Constituição da Nação de 1853).

O artigo 120 está inserido na quarta seção do título que trata do Governo Federal, juntamente com as seções que o precedem, na seguinte ordem: seção primeira: Poder Legislativo; seção segunda: Poder Executivo e seção terceira: Poder Judicial.

Por meio do Decreto nº 605, de 25 de abril de 1994, o Ministério Público argentino recebeu a incumbência de colaborar com a concretização dos projetos visando optimizar o funcionamento da Defensoria do Povo.

Por sua vez, o Defensor do Povo não está vinculado ao Ministério Público como no Brasil, mas ao Poder Legislativo. Está regulado pelo artigo 86, da Constituição Nacional de 1853, inserido como último capítulo da seção primeira que versa sobre o Poder Legislativo. Grosso modo, não se trata de uma função do Ministério Público como acontece no Brasil, mas de um órgão independente e com plena autonomia funcional, instituído no âmbito do Congresso Nacional, com a função específica de defender e proteger os direitos humanos e demais direitos, garantias e interesses tutelados pela Constituição da Nação de 1853 e leis infraconstitucionais, diante de atos, fatos e omissões da Administração Pública; bem como de fiscalizar o exercício das funções administrativas públicas. Na definição de Eduardo Mondino, Defensor do Povo da Nação argentina:

El Defensor del Pueblo es una Institución de la Nación que actúa con plena independencia y autonomía funcional; sin recibir instrucciones de ninguna autoridad, para la defensa y protección de los derechos humanos y los demás derechos, garantías e intereses tutelados en la Constitución y en las Leyes y el control del ejercicio de las funciones administrativas públicas[55].

Para tanto, o Constituinte de 1853 muniu o Defensor do Povo de legitimidade processual.

O Defensor Público argentino é designado e removido pelo Congresso Nacional, exigindo dois terços dos votos dos membros presentes de cada uma das Câmaras. Ademais, goza das mesmas imunidades e privilégios dos legisladores. O cargo de cada Defensor do Povo dura cinco anos, podendo ser reconduzido por apenas uma vez.

A organização e o funcionamento da instituição são regulados por lei especial que, no caso, é o Regulamento de Organização e Funcionamento do Defensor do Povo, aprovado pela Resolução nº 1, de 26 de outubro de 1994. Ressalte-se que a criação do Defensor do Povo se deu por meio da Lei nº 24.284, de 1993, revista pela Lei nº 14.379, de 1994.

Trata-se de um uma instituição de caráter constitucional, com autonomia funcional, administrativa e financeira. Destarte, não se sujeita a nenhum mandato imperativo, não recebe instruções de nenhuma autoridade e atua de acordo com seu critério de justiça (artigo 1º, do Regulamento de Organização e Funcionamento do Defensor do Povo).

O Defensor do Povo argentino “únicamente es responsable de su gestión ante el Congreso de la Nación”, sendo que “los Adjuntos, en su calidad de auxiliares del Defensor del Pueblo, son directamente responsables de su gestión ante el mismo, en virtud del carácter unipersonal de la institución” (artigo 3º, do Regulamento de Organização e Funcionamento do Defensor do Povo). No exercício de sua função, o Defensor do Povo poderá ser assistido por um Conselho de Administração (artigo 4º, do Regulamento de Organização e Funcionamento do Defensor do Povo).

No âmbito institucional, ao Defensor Público compete: representar a instituição, outorgar poderes genais ou especiais e constituir domicilio; propor os Adjuntos e a Comissão Bicameral Permanente; manter relações com o Congresso Nacional por meio da Comissão Bicameral Permanente; delimitar os âmbitos de funcionamento dos Adjuntos; subscrever acordos e convênios internacionais; propor modificações nas normas que ao seu critério são consideradas injustas o prejudiciais, bem como prever mecanismos que permitam eliminar ou diminuir os comportamentos falhos da Administração Pública; convocar e dirigir as deliberações do Conselho de Administração; dispor sobre a nomeação, a função e a remuneração dos funcionários da Instituição, com poder disciplinar sobre eles; ditar as normas relacionadas à organização e ao funcionamento da Instituição; determinar e administrar as necessidades “presupuestarias”; autorizar os processos de aquisição e contratação de bens e serviços; realizar todo ato, contrato ou operação necessária para o exercício de suas funções; e realizar modificações na estrutura organizativa e aprovar aberturas inferiores (6º, do Regulamento de Organização e Funcionamento do Defensor do Povo).

Portanto, a Instituição é composta: pelo Defensor do Povo, pelos Adjuntos, pelo Conselho de Administração, e pelo corpo de funcionários da instituição.

Em suma, o Defensor do Povo foi criado no âmbito do Poder Legislativo da Nação, embora não receba instruções de nenhuma autoridade, para exercer, fundamentalmente, a função de proteger os direitos e interesses dos indivíduos e da comunidade frente aos atos, fatos e omissões da Administração Pública Nacional, na forma do artigo 14, da Lei nº 24.284, de 2003, in verbis:

Artículo 14 - Actuación. Forma y alcance. El Defensor del Pueblo puede iniciar y proseguir de oficio o a petición del interesado cualquier investigación conducente al esclarecimiento de los actos, hechos u omisiones de la administración pública nacional y sus agentes, que impliquen el ejercicio ilegítimo, defectuoso, irregular, abusivo, arbitrario, discriminatorio, negligente, gravemente inconveniente o inoportuno de sus funciones, incluyendo aquellos capaces de afectar los intereses difusos o colectivos. Los legisladores, tanto Provinciales como Nacionales, podrán receptar quejas de los interesados de las cuales darán traslado en forma inmediata al defensor del pueblo.

Na enumeração de Emilio L. Fernández[56], as qualidades que definem o Defensor do Povo são:

[...] disfruta de enclave contitucional, circunstancia que desde La perspectiva piramidal del ordem normativo lo ubica como autoridad de La Nación, em um plano de máxima jerarquia, no sujeto a instruciones de ninguna outra, dado que La norma constitucional lo inviste como independente, y, em consecuencia, por La índole del atributo conferido ejerce su misión com autonomia funcional.

Por sua vez, Juan José Leo Basanta[57] entende que as notas características do Defensor do Povo podem ser assim agrupadas::

[...] la autonomía que le permite organizarse internamente, la independencia de los poderes públicos, la ausencia de solemnidad e informalismos en sus trámites, el origen parlamentario dado su designación, la obligación de rendir informes. La rapidez de las actuaciones se torna un imperativo categórico frente a la excesiva tardanza de los procedimientos administrativos.

A idéia de “órgão independente” que decorre do texto constitucional, numa interpretação literal, pode levar ao entendimento de que o Defensor do Povo argentino se distancia de suas origens, idealizado como “comissário parlamentário”. No entanto, o Constituinte argentino apenas quis dizer que o Defensor do Povo não depende do Congresso ou de outro Poder constituído, mas tem autonomia para fazer ou deixar de fazer, ou seja, “integra el andamaje administrativo del Congresso, pero no depende jerárquicamente del Congresso”. Destarte, “la eficácia institucional del Defensor del Pueblo estará dada em función de la independencia e imparcilidad de las personas a quiene se les confie el ejercicio de sus atributos”[58].

Quanto à função, o Constituinte argentino realiza uma distinção na incumbência que atribui ao Defensor do Povo: de um lado institui como missão “la defensa y protección de los derechos humanos y demás derechos, garantías e intereses tutelados en esta Constitución y las leyes, para representar e proteger o cidadão argentino contra atos, fatos ou omissóes da Administração Pública que venham a lesionar, restringir alterar ou diminuir direitos e interesses de incidência coletiva. De outro lado atribui “el control del ejercicio de las funciones administrativas públicas” (artigo 86, da Constituição da Nação de 1853), ou seja, o poder de controle preventivo contra abusos de gestão administrativa do aparato burocrático estatal encarregado de levar a cabo as funções administrativas do governo[59].

Como se vê, a Instituição argentina em apreço nasce e se desenvolve com o fim último de “garantizar los derechos de los ciudadanos y también para intermediar entre los ciudadanos y la administración del Estado”. Trata-se, portanto, de “un instituto creado para defender a la sociedad de los abusos de autoridad y de los funcionarios de la administración pública centralizada como descentralizada, entes autárquicos. No para la defensa de los gobernantes”[60].

Ressalte-se que o Defensor Público não substitui nem desconhece outros mecanismos de controle e fiscalização internos e externos da Administração Pública. Ao contrário, os complementa, haja vista que, enquanto órgão de controle independente, pode contribuir com uma postura crítica na busca de soluções, bem como denunciar abusos e excessos de poder.

Significa dizer “toma activa intervención ante un ejercicio ilegitimo, irregular, abusivo, arbitrario, discriminatorio, defectuosos, gravemente, negligente o inoportuno de la Administración Pública”. Para tanto, pode “iniciar acción de amparo para defender los derechos del medio ambiente y del consumidor y puede estar en juicio”, pois “tiene legitimación procesal goza de la inmunidades y privilegios de los legisladores”[61].

Conclui-se esse tópico com a constatação de que tanto o Promotor de Justiça brasileiro quanto o Defensor do Povo argentino estão comprometidos fundamentalmente com a proteção e defesa dos direitos humanos; dos direitos econômicos, sociais e culturais; dos direitos coletivos; dos direitos difusos e dos direitos tradicionais.

Sobre as autoras
Luzia Gomes da Silva

Bacharela em Direito pela Faculdade de Alagoas (FAL). Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Musel Social Argentino (UMSA). Professora de Direitos Humanos da Faculdade Metropolitana da Grande Recife.

Monik Suélly da Silva Castro

estagiária do Ministério Público em Ponte Mova-MG; discente do curso de direito-ESUV.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Luzia Gomes; CASTRO, Monik Suélly Silva. Análise histórica e conceitual da função do Defensor Público . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3696, 14 ago. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24178. Acesso em: 29 dez. 2024.

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