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Análise da condição jurídica dos caracterizados refugiados ambientais do Haiti no Brasil

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Agenda 12/08/2013 às 10:24

É necessário revisar o conceito de ‘refugiado’, para ampliá-lo a novas realidades sociais, como as que resultam da destruição paulatina do meio ambiente. Igualmente, são insuficientes as definições atuais de ‘deslocados’ e ‘migrantes’.

1. Introdução

Um refugiado é, de acordo com a Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, uma pessoa que, tendo um medo bem fundado de ser perseguida por razões de raça, religião, nacionalidade, participação de um grupo social particular ou opinião política, está fora do país de sua nacionalidade e incapaz a ou, ante esse medo, sem vontade de retomar a proteção desse país. Embora a ideia inicial fosse assegurar a proteção a indivíduos perseguidos por seus ideais políticos ou religiosos no interior de seus próprios Estados, esse termo tem sido expandido por novas convenções mundiais e leis nacionais, como a brasileira, porém sua ideia principal ainda é a de que refugiado é aquele que, por algum perigo em sua terra natal, se vê forçado a fugir para outro território dentro ou fora de seu país.

Em 2007, cientistas independentes do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas afirmaram que, em 100 anos, os oceanos poderiam subir até 60 cm, o que impactaria na vida de, pelo menos, 600 milhões de pessoas por todo o mundo, atingindo em especial os habitantes de áreas costeiras. Outras mudanças climáticas causadas pela poluição e aquecimento global impactam no destino de milhões de pessoas. Afirma-se que somente no ano de 2008 pelo menos 20 milhões de pessoas foram deslocadas por desastres naturais repentinos.

Um dos desastres mais impactantes na América Latina nos últimos anos foi o terremoto que atingiu o Haiti em 12 de janeiro de 2010. Segundo relatórios da ONU, a catástrofe destruiu 10% da capital do país, Porto Príncipe, deixando 300 mil desabrigados. Segundo a organização, em algumas áreas a destruição chegou a 50%, afetando, no total, 3,5 milhões de pessoas. Os cidadãos haitianos atingidos, após a catástrofe, não tiveram opção além de se evadir do país. Em meio a um caos generalizado, sem água, eletricidade e comida, muitos buscaram em outros países, como o Brasil, uma nova oportunidade de viver. Porém, ao chegar às fronteiras brasileiras, muitos foram impedidos de entrar no país, tendo em vista que, como não se enquadram na definição de refugiados dita pela Lei, não tem como residir no Brasil.

Ainda que seja um fenômeno novo e pouco pesquisado, a questão dos refugiados ambientais é latente e já afeta uma grande parcela da população mundial. Além dos alarmantes dados atuais, o que mais assusta são as previsões oficiais de agências governamentais e internacionais e de teóricos da área.

A presente monografia tem o intuito de analisar brevemente a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e a Lei Brasileira nº 9474/97, conhecida como Lei do Refúgio, bem como questionar a sua adequação e possível ampliação em face da nova realidade contemporânea no tocante à problemática dos refugiados ambientais, com especial atenção aos deslocados haitianos, tendo em vista que se entende que estes grupos de migrantes forçados deveriam gozar da proteção do instituto universal do refúgio e não o fazem por não se enquadrarem na definição formal trazida pela Convenção de 1951 e a Lei 9474/97.

Inicialmente, é realizada uma pesquisa com o intuito de se definir e buscar legislação, tanto internacional quanto nacional,a respeito dos institutos“refugiado”, “asilado”, “deslocado interno” e “migrante”, distinguindo-os entre si, bem como se verifica o tratamento dado ao estrangeiro no território nacional.

Após, se busca definir juridicamente a condição de ‘refugiado ambiental’, tomando por base a doutrina sobre o tema. É examinada a classificação de autores sobre estre possível instituto, se verificará a possível aplicação do termo, bem como as condições de sua criação.

Por fim, é analisado o posicionamento do Governo Brasileiro referente à caracterização como ‘refugiados’ ou ‘migrantes’ das pessoas provindas do Haiti desde a catástrofe natural em seu país, tomando por base documentos oficiais, entrevistas e reuniões de órgãos responsáveis pela classificação destes deslocados perante o Estado Brasileiro. Também é analisada a condição em que estes deslocados se encontram atualmente no Brasil e o tipo de ajuda humanitária direcionada a eles.

Para chegar a tais resultados, é realizada pesquisa documental e bibliográfica, bem como estudo de caso, por meio dos quais é possível encontrar as normas aplicáveis e os entendimentos doutrinários acerca dos refugiados ambientais. Da mesma forma, é utilizado o método comparativo para demonstrar as semelhanças e diferenças entre o ordenamento brasileiro e internacional.


2. Compreendendo o processo migratório: uma comparação doutrinária e levantamento legislatório, com aprofundado histórico, sobre migração, asilo e refúgio.

O deslocamento de pessoas, sejam migrantes, asiladas, refugiadas ou deslocadas internas, sempre esteve presente na raça humana. De acordo com Luiz Paulo Teles Barreto (2007, p. 29), “há um reconhecimento praticamente unânime no mundo quanto à importância das migrações e da contribuição dos deslocados aos países de acolhida. Em muitas nações, os estrangeiros foram fundamentais para o desenvolvimento econômico, social e cultural”.

É difícil saber quantas pessoas se deslocam a cada ano, seja dentro de um país ou para o exterior, mas, segundo o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (UNDP)1 é provável que, anualmente, mais de cinco milhões de pessoas cruzem fronteiras para viver em um país desenvolvido. O número de pessoas que se deslocam para um país em desenvolvimento é muito maior, embora não seja possível saber os números exatos.

As razões para esta mobilidade são variadas. Indivíduos e, às vezes, até famílias inteiras, se mudam para outros lugares por diferentes motivos e, às vezes, por várias razões simultaneamente. É possível, até, que estas razões se alterem durante o período de deslocamento.

Entender a mobilidade humana e compreender a busca que estes deslocados fazem por sua dignidade, por emprego e por uma vida melhor é fundamental para formular as políticas públicas necessárias para abranger os direitos fundamentais destas pessoas. Para aceitar os deslocados, é necessário conhecer suas dificuldades em relação à adaptação em um novo meio.

2.1. Migração

Nas palavras de Celso D. de Albuquerque Mello (2001, p.1019), é importante enunciar dois princípios a respeito do deslocamento da pessoa humana: o da interdependência dos membros da sociedade internacional e o da soberania do Estado, que alcançam os mesmos resultados apesar de partir de pontos diferentes. O primeiro princípio afirma que os indivíduos têm o 'jus communicationis', ou seja, o direito de emigração e imigração no plano internacional; enquanto o segundo princípio afirma que os Estados não são obrigados a admitir estrangeiros no seu território. Na prática, atingem-se resultados semelhantes com qualquer dos princípios, uma vez que eles não são aplicados de modo rígido.

A migração é uma característica intrínseca aos seres humanos, e pode ocorrer por diversos motivos, quer sejam econômicos, sociais, culturais, religiosos, políticos, etc. Ao longo da História mundial, ela já foi caracterizada tanto como inteiramente livre, assim como restrita.

Na Grécia e Roma antigas, eram concedidos, em alguns casos específicos, salvos-condutos, que podem ser classificados como um tipo de passaporte. Também era comum, na época, a concessão de ‘documentos’ a funcionários que saiam de Roma em alguma missão. (FUNARI, 2011, p. 77)

O feudalismo, com suas características não comerciais, reduziu drasticamente o volume de viajantes, e com isso, o uso de passaportes praticamente desapareceu. Este documento só voltou a ser instituído nos séculos XVI e XVII, sendo três as causas contributivas para este evento: o grande número de mendigos que perambulavam pela Europa; a necessidade, por medida de polícia, de fiscalizar os movimentos dos súditos dentro das fronteiras do próprio Estado; e a necessidade de controlar a entrada e saída de indivíduos do território nacional (MELLO, 2001, p.1023).

As autoridades dos Estados, entre o final do século XIX e início do século XX, viam o fenômeno da migração de forma positiva e, em alguns períodos, até o incentivaram. Para uns, a migração era uma ‘válvula de escape’ que diminuía o número de habitantes, reduzindo as chances de crises demográficas na Europa. Para outros, era a oportunidade de importar trabalhadores e povoar regiões desabitadas, como as Américas.

No século XX, houve uma pequena mudança em relação à imigração, com a adoção pelos Estados de restrições e sistemas de quotas, fixando números máximos, ou porcentagens, para a entrada de estrangeiros nos países. Como exemplo pode-se ter a Inglaterra, que em 1905 publicou o Aliens Act, proibindo em seu território a entrada de indivíduos cujo país de origem não possuí a inspeção e cuidados médicos, como objetivo de diminuir as doenças em seus limites territoriais.

Passou a ser estabelecido um “regime duplo de circulação”, fruto do neoliberalismo, que abriu as fronteiras para mercadorias e capitais e, simultaneamente, inibiu a mobilidade humana. As fronteiras, como afirma o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2007, p. 56), se transformaram em ‘membranas assimétricas’, que permitiam a saída de pessoas, mas protegiam, e ainda protegem o Estado contra o ingresso de migrantes indesejados. Após a Segunda Guerra Mundial, aqueles que antes eram vistos como recursos humanos fundamentais, hoje são considerados bárbaros invasores, uma ameaça para a ordem pública, destruidores da identidade nacional.

Esta opinião é corroborada por Márcia Maria de Oliveira, que entende que:

Atualmente o mundo se polariza entre regiões cada vez mais ricas e outras, cada vez mais pobres. Por um lado, defende-se o capital e as mercadorias podem circular livremente, mas, por outro, o mesmo não ocorre com os trabalhadores. Para estes, erguem-se cada vez mais muros físicos ou políticos, ou seja, implantam-se sempre mais políticas restritivas que entravam a circulação dos imigrantes, ainda que necessários, porém indesejados nos países ricos. (2010, p. 236)

Cançado Trindade (2001, p. 15) também expressa o paradoxo entre a liberdade de circulação de capitais e as restrições à circulação de pessoas ao afirmar que “Em relação ao capital, inclusive o puramente especulativo, o mundo se “globalizou”. Em relação aos seres humanos, inclusive os que tentam fugir de graves e iminentes ameaças a sua própria vida, o mundo se transformou em unidades soberanas”. 2

O Brasil também passou por diversas mudanças em relação à entrada e limitação dos imigrantes, mesmo antes da criação de sua primeira lei em relação a este tema, em 1945. Podem-se tomar como exemplo os relatórios e escritos de celebra dos autores brasileiros entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX, como João Batista de Lacerda, Diretor do Museu Nacional e Presidente da Academia de Medicina, e Raymundo Nina Rodrigues, renomado legista e considerado o criador da Medicina Legal brasileira que, com idéias claramente racistas, buscaram realizar um ‘branqueamento’ da população brasileira pela mistura de migrantes arianos, vistos como de classe mais ‘nobre’, com os negros brasileiros, vistos como inferiores.

Claramente influenciado pelo criminologista italiano Cesare Lombroso, o autor Nina Rodrigues afirma, em seu livro que:

A civilisação aryana está representada no Brazil por uma fraca minoria da raça branca a quem ficou o encargo de defende la, não só contra os actos anti-sociaes-os crimes- dos seus proprios representantes, como ainda contra os actos anti-sociaes das raças inferiores, sejam estes verdadeiros crimes no conceito dessas raças, sejam ao contrario manifestações do conflicto, da lucta pela existencia entre a civilisação superior da raça branca e os esboçosdecivilisaçãodasraçasconquistadas,ousubmettidas.(1894,p.169-170)[inverbis].

Uma das políticas brasileiras da época para incentivar este ‘branqueamento’ foi o incentivo para a migração de europeus e a necessidade de autorização especial para imigrantes africanos e asiáticos. Vale ressaltar que esta política de migração foi relativamente comum a todos os países colonizados por europeus, não só no continente Americano, mas também na Oceania e até mesmo África. Esta tentativa de branqueamento foi tão forte que alguns países, como os Estados Unidos, restringiram até mesmo a entrada de imigrantes do sul da Europa, como italianos e portugueses, com receio que estas nacionalidades não fossem ‘puras’ o suficiente.

Além deste incentivo aos migrantes europeus, foram criadas várias barreiras para a entrada de migrantes das raças negra e amarela, como a necessidade de autorização especial do Congresso, em 1890, e menos benefícios do que a autorização comum.

Após este período, a imigração continuou sofrendo mudanças no Brasil, especialmente no curto período de 1930 a 1934, quando foi proibida totalmente. Em 1934 foram abertas novamente as portas aos migrantes, porém com restrições aos semitas e o estabelecimento de uma política de quotas.

Atualmente, a migração está regulamentada pela Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, alterada pela Lei nº 6.964/81, denominada de Estatuto do Estrangeiro que, além de definir a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, também cria o Conselho Nacional de Imigração (CNIg). O CNIg é um órgão colegiado, vinculado ao Ministério do Trabalho, com organização e funcionamento definidos pelos Decretos n° 840, de 22 de junho de 1993, e nº 3.574, de 23 de agosto de 2000, a quem compete, e tem, dentre suas atribuições, ‘formular a política de imigração’, ‘coordenar e orientar as atividades de imigração’ e ‘solucionar casos omissos no que diz respeito a imigrantes’.

Segundo Mirtô Fraga (1985 ,p.30), ainda há uma diferenciação entre o estrangeiro que ingressa no país com ânimo definitivo, sendo chamado de imigrante, e o estrangeiro que aqui permanece temporariamente, como estudantes, turistas, empresários, recebendo a denominação de forasteiro.

Do ponto de vista político, a migração é tipicamente considerada um problema que deve ser resolvido, normalmente com a restrição de entrada de estrangeiros no país, ou um problema essencialmente privado, entre o migrante e sua família. Como resultado, as políticas tendem a controlar os migrantes ou ignorá-los. Entretanto, ao considerar a migração em isolado, se torna muito difícil entender as dimensões socioeconômicas, políticas e ambientais que modelam, e em retorno são transformadas, pelo deslocamento de pessoas. As políticas tendem a lidar com a migração especialmente nas áreas de destino, enquanto é importante considerar tanto as causas quanto as conseqüências da migração e focar tanto no destino quanto na origem dos migrantes.

Interessante pensar, porém, que, na história das migrações, como afirmado acima, nem sempre o fenômeno migratório constituiu ameaça aos Estados. Na verdade, muitos fluxos foram programados ou estimulados tanto pelos países de saída como de chegada. O desenvolvimento, por exemplo, é um fator que combina direitos dos Estados e direitos dos migrantes, salvaguardados os direitos trabalhistas e todos os direitos sociais que permitam que desenvolvimento humano e desenvolvimento sustentável marchem ao mesmo ritmo do desenvolvimento socioeconômico de uma nação, tendo sido amplamente utilizado no passado e, com menor frequência, hoje em dia também. Todavia, outros direitos das pessoas em mobilidade são violados, mesmo indiretamente, não somente por ações propositais diretas de violação de tais direitos, mas também por situações generalizadas de rejeição de migrantes. Outros fatores, como falta temporária de visto de permanência, escassez de dinheiro e saudades dos entes deixados para trás transformam situações de mera vulnerabilidade da situação migratória em grave condição de fragilidade.

Apesar de todo o preconceito que gira em torno dos migrantes, o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas3afirma que, atualmente, existem cerca de 214 milhões de migrantes internacionais, ou seja, aproximadamente 3% da população mundial residem fora de seu país de origem. Em relação aos migrantes internos, ou seja, às pessoas que migram dentro do seu próprio país, o número chega a 740 milhões. A Organização Internacional para Migrações (OIM)4 afirma que este número tende a crescer quase 2,9% ao ano. Hoje, uma em cada seis pessoas é migrante. O maior receptor de migrantes internacionais, segundo a Organização, são os Estados Unidos, que possuía, em 2006, cerca de 38 milhões de migrantes.

Além das migrações em âmbito mundial, existem também as intrarregionais, realizadas entre Estados de uma mesma região, normalmente de países mais pobres para os países mais ricos. Na América Latina, por exemplo, há um grande movimento migratório originário do Nicarágua e destinado à Costa Rica, do Haiti para a República Dominicana, e da Bolívia e Peru para a Argentina e Brasil. Existem várias razões para este fenômeno da migração intrarregional. Entre os mais marcantes, podemos considerar a identidade cultural e as raízes históricas em comum, bem como a proximidade geográfica. A migração causa um impacto grande não só na região aonde o migrante chega, mas também nele mesmo. Migrar para outro país implica em conhecer uma nova cultura, se desapegar de sua família que ficou no seu país natal, ter uma vida totalmente nova. Ao migrar para um lugar que lembre vagamente seu antigo lar, que possua, pelo menos, a mesma língua, ou que ao menos seja próximo e possibilite que visite a família, o migrante se sente num local familiar e tem mais chances de conquistar o que veio procurar no país de destino.

O fenômeno migratório atual alcança uma dimensão global, de acordo com Robert Kurz (2007, p. 17), estando essencialmente relacionado à crise do sistema capitalista, incapaz de promover nas periferias do planeta o mesmo padrão de vida e consumo dos países desenvolvidos.

De acordo com Heidemann (2010, p. 20), a migração contemporânea ainda tem uma nova qualidade, porque não é mais limitada a determinadas arrancadas não-simultâneas da modernização em diversos territórios nacionais ou regionais, mas é universal e global. Ela se realiza quase em todos os lugares simultaneamente e se revela em novas dimensões. Podemos entender que a nova migração maciça, desde o final do século XX, é consequência de uma nova crise socioeconômica da terceira revolução industrial que possui diretamente um amplo caráter global. Como afirma o autor, na ‘crise do trabalho’ cada vez mais pessoas se tornam ‘obsoletas’, continuam desesperadamente a oferecer sua força de trabalho, mas não conseguem mais vendê-la.

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Cerca de 10% da população mundial migra atualmente para se salvar dos pavores econômicos e de suas conseqüências. Desemprego em massa e pauperização tornaram-se fatores comuns do mundo contemporâneo. Heidemann (2010, p. 20) afirma que “os migrantes não constituem mais um ‘exército industrial de reserva’, mas sim integram um ‘lixo social’ de difícil reciclagem humanística”.

De acordo com dados do Censo de 20005, foi apontada a existência de 22.850 imigrantes em toda a Região Norte do Brasil. A Polícia Federal, por sua vez, computava, em 2008, a existência de 12 mil imigrantes regularizados no Amazonas, dos quais 1695 são peruanos, 612 colombianos, 229 bolivianos, 117 guianenses e 116 venezuelanos.

A Pastoral do Migrante estimava em 2001 a presença de 40 mil migrantes documentados e indocumentados, sendo que, deste total, 15 mil eram peruanos que viviam nas cidades fronteiriças, na sua maioria indocumentados. De um modo geral, eles são pouco qualificados e se dispõem a aceitar qualquer tipo de subemprego para manter suas famílias, mesmo no caso dos mais qualificados, os quais passam a exercer atividades muito aquém de suas qualificações, o que significa ser mal remunerado, além de ter a sua condição social rebaixada. A atividade de ambulante acaba sendo a saída mais fácil para quem não conhece as regras do mercado e encontra-se numa situação vulnerável de indocumentação, em razão das representações negativas que esta categoria tem no contexto local.

2.2. Asilo

O instituto do asilo é caracterizado como a proteção dada por um Estado a um indivíduo estrangeiro cuja vida, liberdade ou dignidade estejam ameaçadas pelas autoridades de um terceiro Estado, normalmente seu país de origem, por conta de perseguições de ordem política. Conforme afirma o doutrinador Francisco Rezek, o instituto pode ser definido como:

O acolhimento pelo Estado, de estrangeiro perseguido alhures - geralmente, mas não necessariamente, em seu próprio país patrial - por causa de dissidência política, de delitos de opinião, ou por crimes que, relacionados com a segurança do Estado, não configuram quebra do direito penal comum. (2011,p.214-215)

Pode-se inferir da leitura que o principal fundamento do asilo é a perseguição política.

Segundo José H. Fischel de Andrade, a palavra “asilo” deriva do nome grego asylon, formado pela partícula privativa a, que significa não, e o verbo sylon, que equivale aos verbos quitar, arrebatar, tirar, sacar, extrair. (2001,p.101).

Assim como a migração, o asilo tem suas origens na Antiguidade, porém este instituto foi altamente transformado ao longo do tempo. Uma grande alteração a respeito deste tema foi quanto à possibilidade de aplicação: na Antiguidade, o asilo era concedido a qualquer criminoso comum, numa total inversão do que acontece no quadro atual, pois a proteção de dissidentes políticos constituía ato de afronta entre nações que poderia gerar guerra. A partir daRevoluçãoFrancesa, com seus ideais de liberdade e direitos individuais, começou-se a consolidar a aplicação deste ‘benefício’ a criminosos políticos e a extradição de criminosos comuns.

Os primeiros indícios da proteção do asilo remontam à época da Grécia Antiga, onde os asilados, antigos criminosos comuns em outras Cidades- Estados, gozavam de imunidade sem templos específicos, criados especialmente com esta finalidade. Já no Império Romano, somente os considerados culpados por crimes não previstos nas Leis Romanas poderiam ser beneficiários do asilo. Na Idade Média o asilo ocorria em igreja se conventos,criando,assim,a conhecida “inviolabilidade dos lugares sagrados”. Caso houvesse violação, o autor poderia ser excomungado. Naquele período, a Igreja excluiu certos criminosos da possibilidade de concessão de asilo, como os criminosos de alta periculosidade e aqueles que cometessem crimes nas igrejas e suas redondezas.

Após a Revolução Francesa, o asilo não foi adotado de forma igualitária em toda a comunidade internacional, embora seu alcance tenha se tornado muito mais amplo. Alguns Estados, especialmente os com regime monárquico,tardaramumpoucoaaceitaresteinstituto.

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 assegurou a possibilidade de concessão de asilos em quaisquer restrições, sendo este, segundo o art.4º, inciso X, um dos princípios pelos quais a República Federativa do Brasil deve se reger nas suas relações internacionais, como se pode inferir da leitura abaixo:

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

(..) X - concessão de asilo político.

Embora hoje não haja um tratado de alcance global sobre o instituto do asilo, existem convenções regionais sobre o tema, como a Convenção de Havana sobre Asilo, a Convenção sobre Asilo Territorial de 1954, entre outras. Além das convenções, a Resolução 3.212 de 1967 da Assembleia Geral das Nações Unidas6, contém as diretrizes básicas para a concessão do instituto, afirmando que este é “um direito do Estado baseado em sua s oberania e deve ser concedido a pessoas que sofrem perseguição. A concessão de asilo deve ser respeitada pelos demais Estados, e não deve ser motivo de reclamação.” 7 A qualificação incumbe ao estado asilante, que pode negar o asilo por motivos de segurança nacional. As pessoas que fazem jus ao asilo não devem ter sua entrada proibida pelo país asilante nem devem ser expulsas para Estado onde podem estar sujeitas à perseguição ou repatriamento forçado ao país de origem. Além da definição, a Resolução mencionada reafirma que o asilo é uma arbitrariedade dos Estados, e não um dever internacional. Adecisão do Estado de conceder ou não o beneficio deve ser respeitada pela Comunidade Internacional, porém, caso o Estado sinta que a concessão do asilo trará insegurança nacional, pode optar por não fazê-lo. Estes princípios estão ressalvados na Resolução 2.314 da Assembleia Geral da ONU, conhecida como a Declaração sobre AsiloTerritorial que, em seu art.14 afirma que o ato da concessão de asilo “não pode ser considerado inamistoso por nenhum outro Estado”.

Também não se pode esquecer que a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, reza em seu artigo XIV que “todo homem, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e gozar asilo em outros países”. Ela menciona, ainda, que “este direito não pode ser invocado em caso de processo realmente existente por crime de direito comum ou por atividades contrárias aos fins e princípios das Nações Unidas”.

Nas palavras de Valerio de Oliveira Mazzuoli,

É importante lembrar que a concessão do asilo tem como objetivo não só proteger uma pessoa à qual, por motivos políticos ou ideológicos, foi imputada a prática de um crime, mas também contribuir para a paz social do país do asilado. Como se sabe, no que tange aos crimes comuns- reprováveis em qualquer parte do planeta -os Estados se ajudam mutuamente visando à sua repressão internacional, sendo o instituto da extradição um importante instrumento relativamente a essa cooperação. Mas, no caso dos crimes políticos essa regra deixa de valer, uma vez que o seu objeto não viola bens jurídicos universalmente protegidos (como nos casos em que se opera a extradição), mas sim certa ideologia governamental, que geralmente não dura mais do que o período em que está no poder a autoridade. Em outras palavras, esses ‘crimes’ (políticos ou ideológicos) não resistem à configuração do direito penal comum, somente ocorrendo aos olhos daquelas autoridades que, naquele momento, detêm o poder estatal. (2011,p.734).(grifo nosso)

Da leitura do trecho, é possível inferir o caráter humanitário do asilo, bem como a impossibilidade de que este tenha como princípio a reciprocidade. Resta cristalino que a aplicação deste instituto assegura, primordialmente, a liberdade de pensamento e expressãopolítica, numa tentativa de refrear os regimes totalitários. Quanto à impossibilidade da política de reciprocidade, vale mencionar a opinião de CASELA e SANCHEZ:

A existência ou não de convenção em matéria de cooperação judiciária, seja civil ou penal, ou abrangendo ambas, ou especificamente em matéria de extradição, ou outras questões, não deve, em princípio, interferir com a concessão ou não de asilo territorial. (2002,p.33)

O instituto do asilo é dividido em asilo territorial e asilo diplomático, sendo este último também conhecido como extra territorial. A doutrina minoritária também menciona o asilo naval, aeronáutico e militar, mas o entendimento majoritário é de que estes tipos de asilo estão enquadrados no asilo diplomático.

O asilo territorial consiste no recebimento de estrangeiro em território nacional para evitar perseguição ou punição baseada em crime de natureza política ou ideológica, cometido ou não em seu país de origem. O país asilante recebe o estrangeiro, como dito anteriormente, para preservar sua liberdade ou sua vida, direitos em perigo devido a movimentações sociais ou políticas. Este é o asilo característico, considerado ‘puro’ pela doutrina. A situação típica de concessão de asilo seria esta: o estrangeiro, perseguido em seu país de origem ou de moradia, ingressa no território de um terceiro país e então requer, a este país, a concessão do benefício.

Alémdoasiloterritorial,adoutrinamencionaoasilodiplomático,queé,naverdade,umaformaprovisória,apenasumamodalidadedoasiloterritorial. No entendimento de Roberto Luiz Silva (2008, p. 241), este ‘tipo’ deasilosomenteéreconhecidocomoinstitutodeDireitoInternacional naAméricaLatina,ondeéaplicadodeformamaisregular. Luiz Paulo Teles Ferreira Barreto também afirma que:

O asilo diplomático sempre foi amplamente praticado na América Latina, provavelmente por causa da constante instabilidade política na região, com sucessivas revoluções e golpes de estado, havendo, assim, a necessidade de se conceder proteção aos chamados criminosos políticos.(2010, p. 13)

Esta modalidade do instituto é caracterizada pela acolhida do indivíduo perseguido em missões diplomáticas, em baixadas, navios de guerra, acampamentos militares e aeronaves dentro do país onde a pessoa está sofrendo perseguição, sendo estes locais imunes à jurisdição do país perseguidor. Vale ressaltar que não pode ser concedido asilo em repartições consulares, sendo necessário que, caso pessoa a dentre este recinto com o fim de obter asilo, esta seja imediatamente restituída às autoridades de seu país perseguidor. Resta claro que este tipo de asilo é usado de forma subsidiária, ou uma forma preliminar do asilo territorial, e para que seja concedido é necessário estado de urgência. Para que o asilo diplomático se transforme em asilo territorial, o asilado precisa receber salvo-conduto para sair do local onde se encontre abrigado. 8 O salvo-conduto pode ser reivindicado apenas se o asilo for concedido regularmente e o Estado não desejar que o refugiado permaneça em seu território.

Em regra, os direitos dos asilados são os mesmos dos demais estrangeiros, porém estes devem respeitar as leis internas do Esta do que lhes concedeu asilo, onde não podem exercer atividades políticas nem interferir da política interna. No Brasil, a Lei 6.815/80, também conhecida como Estatuto do Estrangeiro, nos informa que o asilado não poderá sair do País sem prévia autorização do Governo brasileiro, sendo a inobservância desta regra uma das hipóteses de fim da concessão do benefício e impedimento de reingresso nesta condição. A renúncia do benefício, a fuga do asilado e sua expulsão são outras hipóteses.

O asilo territorial também pode terminar com a eventual naturalização do asilado no Estado asilante ou seu recebimento pelo governo de seu Estado de origem.

Na América Latina desenvolveu-se o conceito de asilo originário do Tratado de Direito Penal Internacional de Montevidéu, de 1889.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 4º, declara que o Brasil rege-se nas suas relações internacionais, dentre outros, pelos princípios da “prevalência dos direitos humanos e da concessão do asilo político”. O asilo político é tratado, ainda, em título próprio da Lei nº 6.815 de 1980, o Estatuto do Estrangeiro, que dispõe que o estrangeiro admitido no território nacional na condição de asilado político ficará sujeito, além dos deveres que lhe forem impostos pelo Direito Internacional, a cumprir as disposições da legislação vigente e as que o governo brasileiro lhe fixar.

Segundo Accioly (2009, p. 377. ), no Brasil o asilo territorial é concedido pelo Ministro da Justiça. A sua solicitação pode ser feita pelo estrangeiro na Polícia Federal do local que se encontre, sendo suas declarações encaminhadas ao Ministério das Relações Exteriores para parecer técnico. Após, o parecer é remetido ao Ministro da Justiça e a ele cabe a decisão final. Concedido o asilo,o asilado é registrado junto à Polícia Federal, que recebe identificação e presta compromisso de cumprir as leis do Brasil e normas de direito internacional. Além do disposto acima, o asilado deve respeito às leis locais e é proibido de participar em atos de agressão a o seu Estado de origem, ressalvado o direito à liberdade de expressão, e é obrigado, também, a cumprir as disposições da legislação vigente.

A maior critica em relação ao asilo é, todavia, a arbitrariedade do Estado de conceder ou não este beneficio. Muitos doutrinadores, entre eles Celso D. Albuquerque Melo, afirmam que o asilo somente atenderá totalmente sua finalidade quando se tornar um direito do indivíduo e um dever doEstado.

2.3. Refúgio

Não há que se falar no instituto de refúgio sem confundi-lo com a antiga terminologia de asilo, tendo em vista que, nos dois casos, um Estado estrangeiro abriga um indivíduo que não pode regressar ao seu país de origem. É muito comum verificar que muitos textos, até mesmo de renomados doutrinadores, como Roberto Luiz Silva, se equivocam no emprego de ambas as expressões. Luiz Paulo Teles Ferreira Barreto, ex-presidente do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), também não soube como distinguir as expressões. Ele afirma que:

O asilo diplomático, assim, é instituto característico da América Latina. Em outros lugares do mundo, a expressão que se utiliza é refúgio. É certo, contudo, que outros países aplicam o asilo diplomático esporadicamente, não o reconhecendo, todavia, como instituto de Direito Internacional. Esporádicos casos de asilo diplomático ocorreram na Europa, nos séculos XIX e XX, em proteção a criminosos políticos, geralmente sob intensos protestos dos países onde se originavam as perseguições. Isso fez com que o instituto caísse em desuso naquele continente. (2010, p. 13)

Porém, a pósuma análise mais acurada,é possível perceber que estes institutos são similares apenas na superfície.

Embora ambos os institutos compartilhem um estreito vínculo com relação à pessoa, o asilo é, segundo MAZZUOLI( 2011,p.740-741), regulado por tratados multilaterais bastante específicos de âmbito regional, que nada mais fizeram do que expressar o costume até então aplicado no Continente Americano, enquanto o refúgio tem suas normas elaboradas pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados( ACNUR), uma organização com alcance global de fundamental importância vinculada às Nações Unidas. Por outro lado, enquanto o asilo tem natureza tipicamente política, o refúgio tem natureza claramente humanitária. Além disso, enquanto para a concessão do refúgio basta um fundado temor de perseguição, para a concessão do asilo se faz necessária uma perseguição concreta.

José H. Fischel de Andrade também busca diferenciar asilo e refúgio, ao afirmar que:

Não obstante as diferenças existentes entre as definições eos estatutos jurídicos de asilado e refugiado, pode ser asseverado que os institutos do asilo e do refúgio são complementares e compartilham as mesmas premissas, nomeadamente, a proteção de indivíduos perseguidos. Ao se comparar asilo e refúgio à luz de suas dessemelhanças e similaridades, e ao se discutir a identificação do melhor sistema para se proteger pessoas perseguidas,aceita-se, geralmente, que o sistema global do refúgio é muito mais preciso, moderno e atual. Este, portanto, brinda melhor e mais ampla proteção internacional àqueles que a necessitam. O sistema regional do asilo é considerado mais estreito, inferior em escopo, e inadequado quando da necessidade de responder aos desafios resultantes dos fluxos forçados de pessoas. Portanto, quando se considera a harmonização de definições de refugiado na AméricaLatina, deve-se preferencialmente ter em mente os conceitos de refugiado a nível global (Convenção de 1951) e, em segundo lugar, a nível regional (Declaração de 1984), deixando portanto de lado, mas não esquecendo, a existência histórica e a importância prática frequente das definições regionais de asilado. (2000,p.84)

Por outro lado, para G. E. do Nascimento e Silva (2001, p.11-15), a distinção mais importante entre refúgio e asilo é que o primeiro pode “abarcar inclusive situações de violações generalizadas de direitos humanos, dispensando-se a perseguição específica ao indivíduo solicitante de refúgio”.

Renato Zerbini Ribeiro Leão (2010, p. 76) também afirma que, apesar de aparentemente sinônimos, os termos ‘asilo’ e ‘refúgio’ somente ostentam características singulares. Embora sua definição não seja a seguida neste trabalho, é válida no sentido de se verificar uma distinção entre os institutos. Para ele, o ‘asilo’ também pode ser uma faculdade discricionária do Estado, ou seja, o Estado concede de maneira arbitrária e por essa decisão não deverá satisfação a ninguém. Trata-se de um ato soberano e ponto. Neste caso, a maioria da doutrina reconhece como sendo ‘asilo diplomático’. O ‘refúgio’, em contraste, é um instituto de proteção à vida decorrente de compromissos internacionais (como a Convenção de 1951 e seu Protocolo de 1967 das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados) e, como no caso brasileiro, constitucional. Este último é costumeiramente conhecido na doutrina como ‘asilo territorial’.

Em que pese o refúgio ter a mesma origem histórica do asilo, aquele se desenvolveu de uma forma independente. O fim da Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a ruína do Império Otomano colocaram o mundo diante de movimentos massivos de pessoas, com cerca de 1,5 milhão de deslocados e refugiados. Naquela época, a comunidade internacional teve de enfrentar o problema de definir a condição jurídica dos refugiados, organizar o assentamento ou repatriação e realizar atividades de socorro e proteção. Com a Segunda Guerra Mundial, o problema dos refugiados tomou proporções jamais vistas. Dezenas de milhões de pessoas se deslocaram por diversas partes do globo, a maioria em fuga do expansionismo nazista. Em 1943, foi criada a Administração de Socorro e Reabilitação das Nações Unidas (UNRRA) para auxiliar os deslocados pela Guerra num possível repatriamento ou uma colocação em um novo país.

Também em 1943 foi realizada a Conferência de Bermudas, que ampliou a proteção internacional dos refugiados, os definindo como “todas as pessoas de qualquer procedência que, como resultado de acontecimentos da Europa, tiveram que abandonar seus países de residência por terem em perigo suas vidas ou liberdade, devido a sua raça, religião ou crenças políticas”. Este dispositivo foi origem da futura definição de ‘refúgio’ prevista na Convenção de Genebra de 1951, que será abordada mais adiante.

Em 1946, a Assembleia Geral das Nações Unidas estabeleceu alguns princípios próprios da condição de refugiado. Ela afirmou que o problema do refúgio tem alcance e caráter internacional, decidiu que um órgão internacional deve ocupar-se do futuro dos refugiados e pessoas deslocadas e informou que a tarefa principal consiste em estimular o pronto retorno dos refugiados a seus países e ajudá-los por todos os meios possíveis.

A Assembleia também inovou com outro princípio: não se deve obrigar o regresso ao seu país de origem refugiados que expressem objeções válidas a esse retorno. Foi o início de um princípio consagrado, hoje, pelo nome de ‘non-refoulement’, segundo o qual os países não podem obrigar uma pessoa a retornar ao seu país de origem se houver fundado receio. Foi consagrado nesta Assembleia, também, o princípio de que um órgão internacional deveria ocupar-se do futuro dos refugiados e das pessoas deslocadas em todo o mundo para estimular o pronto retorno dos refugiados a seus países quando a situação política o permitisse.

Em 1947 foi criado o primeiro órgão relacionado ao refúgio. Foi chamado de Organização Internacional de Refugiados (OIR), e se dedicava aos problemas residuais dos refugiados da Segunda Guerra Mundial. Em dezembro de 1950, foi criado o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), uma instituição internacional, humanitária e apolítica com a função de proporcionar proteção internacional aos refugiados. O ACNUR nasceu como agência temporária, com um mandato de curto prazo para refugiados. Foi criado para ajudar milhões de pessoas deslocadas durante a Segunda Guerra Mundial a encontrar um lugar novo lar e se recuperar tanto financeiramente quanto psicologicamente. Posteriormente, o ACNUR foi chamado a prosseguir seu trabalho e responder às crises de refugiados em todo o mundo, acompanhando as profundas transformações no nosso tempo.

O instituto do refúgio se tornou conhecido pela comunidade global pela Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, de[195]1 e, posteriormente, pelo Protocolo de 1966. De acordo com a Convenção de 1951, ‘refugiado’ era toda pessoa que, ‘em consequência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões públicas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao temor, não quer voltar a ele’. O parágrafo 1º do artigo segue mencionando que “para os fins da presente Convenção, as palavras ‘acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951’, do art. 1º, seção A, poderão ser compreendidos no sentido de ‘acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 na Europa’”.

Percebe-se, pela leitura da definição original de ‘refugiado’, uma limitação temporal, que afirma que somente os perseguidos por motivos relacionados a fatos anteriores a 1951 podem ser considera dos refugiados, bem como uma limitação geográfica, tendo em vista que, de acordo com a alínea ‘a’ doart.1º,B, parágrafo 1º, caput, somente pessoas provenientes da Europa poderiam solicitar refúgio em outros países.

Em razão destas limitações, tornou-se muito difícil para muitos países aplicarem a Convenção de 1951. Houve uma tentativa de ‘correção’ dessa definiçãopeloProtocolosobreoEstatutodosRefugiadosde[196]7,retirando-se as limitações temporais e geográficas,e ampliando-se o conceito, que passou a considerar ‘refugiado’ como pesso a que, ‘temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país no qual tinha sua residência habitual, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele’. Percebe-se que, de forma distinta do asilo, a concessão do refúgio não se dá em virtude de perseguição baseada em crime de natureza política ou ideológica, mas sim em virtude de perseguição por motivos de raça, religião ou de nacionalidade, ou ainda pelo fato de pertencer a certo grupo social ou ter certa opinião política. Justamente por se restritamente vinculado ao direito humanitário, o conceito de refugiado é relativamente mutável e pode ser ampliado por meio de instrumentos regionais, como a Declaração de Cartagena sobre Refugiados de 1984, para que abarque, por exemplo, casos de violência generalizada, agressão interna ou a violação massiva de direitos humanos9. A ideia é que o conceito de refugiado possa abranger qualquer situação específica nas mais distintas regiões.

Nos anos 80, num cenário de muitos conflitos na América Central, surgiram acordos que originaram a Declaração de Cartagena, assinada na Colômbia em 1984. Esta declaração foi um marco no conceito de refugiado, uma vez que, buscando dar amplitude aos dispositivos da Convenção de 1951, introduziu o conceito de violência generalizada, invasão estrangeira e conflito interno como razões para a caracterização do refúgio. A Declaração de Cartagena sobre Refugiados se transformou num ponto de referência que proporcionou um enfoque inovador para a proteção e soluções para os refugiados.

Levando em conta esta inovação, Luis Paulo Teles Ferreira Barreto afirma que:

Estende-se o conceito não só para aquela pessoa que, em razão da raça, naturalidade, grupo social, sexo ou opinião política tenha temor fundado de perseguição, mas também àqueles cujos países tenham entrado em processo de degradação política e social e tenham permitido violência generalizada, violação de direitos humanos e outras circunstâncias de perturbação grave da ordem pública. (2010, p. 16)

Muitos dos princípios constantes na Declaração de Cartagena foram incorporados nas legislações internas dos países da América Latina. O enfoque regional e atualizado desta Declaração foi reiterado pela Declaração de San José sobre Refugiados e Deslocados Internos, de dezembro de 1994, elaborada em comemoração aos dez anos da Declaração de Cartagena sobre Refugiados. Esta Declaração recebeu apoio de diversos países sul-americanos, como Colômbia, Venezuela, e Uruguai.

Em 2004, por ocasião das comemorações do vigésimo aniversário da Declaração de Cartagena, foram assinados a Declaração e o Plano de Ação do México, institutos que reconhecem a responsabilidade dos Estados de garantir a proteção internacional de refugiados, bem como a necessidade de cooperação internacional em busca de soluções duradouras. O Plano de Ação do México (PAM) consolida a estratégia dos governos, do ACNUR e da sociedade civil para fazer avançar a proteção dos refugiados no continente pelos próximos anos. O PAM tem cinco grandes objetivos em relação à proteção dos refugiados, que são promoção de estudos e pesquisas acadêmicas sobre a proteção dos direitos humanos e dos refugiados no contexto latino-americano, capacitação e sensibilização dos funcionários públicos para garantir o acesso à proteção internacional de todos aqueles que dela necessitem, alternativas de auto-suficiência dos refugiados nas sociedades de acolhida, desenvolvimento das comunidades localizadas nas zonas limítrofes às regiões em conflito e o reassentamento solidário.

O conceito de ‘refugiado’, porém, não foi ampliado somente pela Declaração de Cartagena. A Convenção da Organização de Unidade Africana (OUA)10, que entrou em vigor em 20 de junho de 1974, afirma em seu artigo 1º que:

O termo refugiado aplica-se a qualquer pessoa que, receando com razão, ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontra fora do país da sua nacionalidade e não possa, ou em virtude daquele receio, não queira requerer a proteção daquele país; ou que, se não tiver nacionalidade e estiver fora do país da sua anterior residência habitual após aqueles acontecimentos, não possa ou, em virtude desse receio, não queira lá voltar.

O termo refugiado aplica-se também a qualquer pessoa que, devido a uma agressão, ocupação externa, dominação estrangeira ou a acontecimentos que perturbem gravemente a ordem pública numa parte ou na totalidade do seu país de origem ou do país de que tem nacionalidade, seja obrigada a deixar o lugar da residência habitual para procurar refúgio noutro lugar fora do seu país de origem ou de nacionalidade. (grifo nosso)

Importante mencionar a inovação da OUA ao adicionar, em seu conceito de ‘refugiado’, a não necessidade de caracterização de violações de direitos humanos na totalidade do território de origem, ou país de nacionalidade do solicitante.

O Brasil, em 1989, por meio do decreto nº 98.602, aderiu plenamente à Declaração de Cartagena. Dois anos depois, em 1991, o Ministério da Justiça editou a portaria interministerial nº 394, com dispositivo jurídico de proteção a refugiados, estabelecendo uma dinâmica processual para a solicitação e concessão de refúgio.

O instituto do refúgio foi definitivamente recepcionado no Brasil pela Lei 9474/97 que, com 49 artigos, definiu todo o mecanismo para a implementação do Estatuto dos Refugiados. De acordo com o § 1º desta Lei, é considerado refugiado todo indivíduo que, devido afundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país, ou aquele que, não tendo nacionalidade e estando fora de país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função da perseguição odiosa já mencionada. Além disso, a nossa Lei chega a ser um pouco mais ampla, considerando como refugiado, também, todo aquele que, devido a grave e generalizada violação dos direitos humanos, é obrigado a deixar seu país para buscar refúgio em outro. O art .2 º da Leia firma que o benefício pode ser estendido ao cônjuge e familiares que dependam economicamente do refugiado, desde que se encontrem no território brasileiro.

Estão assim organizados os seus títulos: o primeiro trata dos aspectos caracterizadores do refúgio, vale dizer, do conceito, da extensão, da exclusão e da condição jurídica do refugiado; o segundo título trata do ingresso no território nacional e do pedido de refúgio; o terceiro título trata do CONARE, o quarto título trata do processo de refúgio, ou seja, do procedimento, da autorização da residência provisória, da instrução e do relatório, da decisão, da comunicação, do registro e do recurso; o quinto título abrange os efeitos do reconhecimento da condição de refugiado sobre a extradição e a expulsão; o sexto título trata da cessação e da perda da condição de refugiado; o sétimo título trata das soluções duráveis, como é o caso da repatriação, da integração local e do reassentamento; e, finalmente, o oitavo título apresenta as disposições finais.

Fato interessante é que a Lei 9474/97 foi a primeira lei nacional a implementar um tratado de direitos humanos no Brasil.(MAZZUOLI, 2011, p.742). Além de regular o instituto do refúgio no Brasil, esta Lei, redigida em parceria com o ACNUR e com a sociedade civil, também criou o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) para ditar a política pública do refúgio e decidir quanto às solicitações de refúgio apresentadas no Brasil. O CONARE é um órgão vinculado ao Ministério da Justiça, composto por representantes da área governamental, da sociedade civile das Nações Unidas. Seu comitê é composto pelo Ministério da Justiça, Ministério das Relações Exteriores, Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério da Saúde, Ministério da Educação, Departamento da Polícia Federal, Cáritas Arquidiocesana de São Paulo e Rio de Janeiro, com direito a voz e voto, e o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), com direito somente a voz.

A Lei 9474/97 informa o que um estrangeiro pode solicitar refúgio a qualquer autoridade migratória na fronteira nacional, ou até mesmo à Polícia Federal. Os olicitante preencherá um formulário e será entrevistado. Após, a Polícia Federal efetuará um Termo de Declaração e o encaminhará ao CONARE. Ao receber o Termo de Declaração, o CONARE autorizará a emissão de um protocolo provisório de solicitação de refúgio,que terá validade de três meses e será o documento de identidade do solicitante de refúgio até que seu caso seja analisado. Com este protocolo, o solicitante poderá tirar CPF e Carteira de Trabalho. Para auxiliar o CONARE em sua decisão, será feita uma entrevista com o solicitante de refúgio. Caso a decisão final do CONARE seja positiva, o solicitante poderá tirar seu Registro Nacional de Estrangeiros no Brasil. Caso a decisão final seja negativa, ele poderá apresentar recurso ao Ministério da Justiça em 15dias. Vale ressaltar que o benefício do refúgio é concedido pelo Ministro da Justiça pelo prazo máximo de dois anos, sendo renovável enquanto subsistirem as condições adversas na terra natal do refugiado.

É importante afirmar que não é necessária entrada legalizada do estrangeiro em território nacional para solicitar refúgio. De acordo com o art. 8º da Lei 9.474/97, “o ingresso irregular no território nacional não constitui impedimento para o estrangeiro solicitar refúgio às autoridades competentes”.

Renato Zerbini Ribeiro Leão exalta a iniciativa brasileira ao salientar que:

A Lei brasileira contemporiza a perspectiva conceitual do refúgio, contornando este conceito com características vanguardistas, porque o seu artigo primeiro contempla as definições estatutárias da ONU, em seus incisos I e II, e a contribuição latino-americana no seu início III, para a definição de refugiado ou de refugiada. Atualmente, no Brasil, os refugiados e as refugiadas vêm sendo especialmente amparados por essa Lei, contempladora dos conceitos de Direito Internacional dos Refugiados do século XXI, assim como motivadora da importantíssima relação tripartite Governo, Sociedade Civil e ACNUR. (2010, p. 75)

Liliana Jubilut (2007, p. 195) também elogia a criação do instrumento, ao afirmar que, com o advento da lei dos refugiados, o Brasil passou a ter “um sistema lógico, justo e atual de concessão de refúgio, razão pela qual tem sido apontado como paradigma para a uniformização da prática do refúgio na América do Sul”.

Embora o Brasil tivesse sido pioneiro na América Latina na formalização de um instrumento normativo sobre refugiados, atualmente todos os países latino-americanos partes na Convenção de 1951 dispõem de normativa interna sobre o instituto. Nos últimos anos, países como Argentina, Bolívia, Colômbia, Costa Rica, Chile, Guatemala, entre outros, legislaram sobre este tema.11

O instituto do refúgio recebe, atualmente, fortes críticas sobre a sua atuação. Muitos estudiosos, como Janaína Freiberger Benkendorf Peixer, John K. Bingham e Scott Leckie afirmam que, embora seja um instituto comum a facilidade muito grande de ampliação, não abrange todos os casos necessários nem na esfera global,nem na regional. Tendo em vista que o refúgio, distintamente do asilo, tem como característica atingir uma coletividade, como pessoas de certo grupo social, com certa situação econômica, que saem de seu país de origem por ameaça a suavida ou integridade, é incabível que este instituto não se molde ao ritmo da evolução das sociedades para, por exemplo, abranger aspessoas perseguidas por exercerem seu direito de greve ou de realizarem manifestações políticas, ou até mesmo pessoas cujo país deixou de ser seguro devido a uma catástrofe ambiental. Tendo em vista que a ideia principal a respeito do refugiado é a de que este é a pessoa que, por algum perigo em sua terra natal, se vê forçado a fugir para outro território dentro ou fora de seu país, o conceito de refugiado deveria abranger todas as pessoas nessasituação.

Segundo o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), existiam em outubro de 2010, no Brasil, 4.306 refugiados reconhecidos, de 75 nacionalidades diferentes, com a sua maior parte, em torno de 65%, ou 2.799 pessoas, provinda do continente africano. O país da África que mais envia refugiados para o Brasil, segundo o CONARE, é Angola, com 1688 pessoas. O segundo maior número de refugiados por continente, no Brasil, provém das Américas, sendo 955 refugiados desta região. O país americano que mais envia refugiados para o Brasil, com 589 pessoas, é a Colômbia. Temos 449 refugiados originários da Ásia e, da Europa, este número cai para 98, ou 2,3%.

Embora ainda não haja uma expressão forte de auxílio aos refugiados, é possível se verificar, e aplaudir, iniciativas recentes em relação ao tema. No campo da Educação, por exemplo, existem orientações da Secretaria de Educação Superior do Ministério da Educação para a criação de mecanismos de ingresso de refugiados em cursos de ensino superior. Estas orientações já atingiram a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que, em sua resolução n.03/98, permite a admissão de refugiados nos cursos de graduação mediante documentação expedida pelo CONARE, uma medida que inclui bolsa de manutenção, apoio psicológico, acesso a programas de habitação e práticas trabalhistas remuneradas.

2.4. O Estrangeiro no Território Nacional

Conforme foi debatido anteriormente, o Estado decide arbitrariamente sobre a entrada ou não de estrangeiros em seu território nacional, considerando-se que é um poder, e não um dever do Estado, decidir se permite ou não proteger asilados ou refugiados, ou deixar migrantes transitarem dentrodo seu espaço. Porém, uma vez tendo aceitado a entrada de estrangeiros em seu país, deve conceder-lhes um mínimo de direitos, no que tange a sua segurança, propriedade e liberdade.

Em tese, nacionais e estrangeiros devemt er os mesmos direitos, ressalvada, com relação aos estrangeiros, a liberdade de expulsão. Nas palavrasde Clovis Beviláqua (p.197,1911), o que não se pode atribuira os estrangeiros, mesmo que residente se domiciliados no país, são direitos mais amplos que os concedidos por lei interna aos nacionais.

Normalmente, à pessoa que entra em um Estado estrangeiro são garantidos todos os direitos civis, situação que vinha prevista no Código Civil brasileiro de 1916, em seu artigo 3º, que dispunha que ‘a lei não distingue entre nacionais e estrangeiros quanto à aquisição e ao gozo dos direitos civis’, porém não foi reproduzida no Código Civil brasileiro de 2002, embora as ações com estrangeiros no Brasil ainda sejam pautadas nesta regra.

Em relação aos direitos políticos, vale dizer que, no Brasil, os estrangeiros não podem votar nem ser votados, mesmo quando aqui residem de forma definitiva, conforme se verifica no parágrafo 2º do artigo 14 da Constituição Federal, que reza que “não podem alistar-se como eleitores os estrangeiros e, durante o período do serviço militar obrigatório, os conscritos”. Porém, o estrangeiro pode votar nas eleições de seu país de origem pelo seu consulado.

Com a promulgação do Decreto nº 3.927, de 19 de setembro de 2001, que inseriu no ordenamento jurídico pátrio o Estatuto da Igualdade, abriu-se uma exceção para os portugueses que, caso desejem adquirir igualdade de direitos e deveres, deverão requerê-la ao Ministério da Justiça. Ressalte-se que não se trata de processo de naturalização, porque adquirida a igualdade de direitos, o cidadão português mantém a nacionalidade portuguesa. Para o alistamento eleitoral, o português que adquiriu a igualdade de direitos políticos deverá comparecer ao Cartório Eleitoral portando a Portaria do Ministério da Justiça e documento de identidade, expedido no Brasil, onde há a menção da nacionalidade portuguesa do portador e referência ao Estatuto da Igualdade. De acordo com o Estatuto, os eleitores portugueses do sexo masculino ficam dispensados de apresentar documento de quitação com o serviço militar obrigatório. Vale ressaltar que os portugueses que não solicitarem a igualdade de direitos recebem o mesmo tratamento que os estrangeiros em geral. Importante mencionar, também, que, de acordo com o Decreto, “o gozo de direitos políticos no Estado de residência importa na suspensão do exercício dos mesmos direitos no Estado da nacionalidade.”. É relevante esclarecer, também, que os direitos previstos no Estatuto da Igualdade somente serão reconhecidos aos que preencherem os requisitos listados no artigo 17 do Decreto, quais sejam três anos de residência habitual e a partir de requerimento formal à autoridade competente.

A Constituição Federal de 1988 ainda admite o acesso aos cargos, empregos e funções públicas por estrangeiros, algo ainda discutido por alguns doutrinadores, como MAZZUOLI (2011, p. 714-715), tendo em vista que alguns autores consideram que este dispositivo traga prejuízo à salva guarda dos interesses nacionais. São duas as situações em que o estrangeiro poderá ocupar cargos públicos no Brasil. A primeira está no artigo 207, § 1º, da Constituição Federal, com redação determinada pela Emenda Constitucional nº 11/1996, que faculta às universidades e às instituições de pesquisa científica e tecnológica a admissão de técnicos, cientistas e professores estrangeiros12. A segunda é a regra do artigo 37, I, com redação dada pela Emenda Constitucional nº 19/1998 que permite que, na forma da lei, estrangeiros ocupem cargos públicos no Brasil13. Vale ressaltar, novamente que os portugueses gozam de um estatuto diferenciado e favorecido, pelo fato de que a Constituição assegurou a eles, desde que haja reciprocidade em favor de brasileiros, os mesmos direitos inerentes ao brasileiro, salvo as exceções previstas no artigo 12, § 3º da Constituição, como cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, Ministro da Defesa, Ministro do Supremo Tribunal Federal, Carreira Diplomática, Oficial das Forças Armadas, Presidente da Câmara dos Deputados e Presidente do Senado.

Aos refugiados é necessário cumprir um leque um pouco maior de deveres, que inclui informar a Polícia Federal e o CONARE sobre qualquer mudança de endereço, não sair do território nacional sem autorização prévia do CONARE, não praticar atos contrários à ordem pública, entre outros, sob pena de perder a condição de refugiado.

2.5. Os deslocados internos

A categoria “deslocados internos” é relativamente antiga na dinâmica da mobilidade humana, e parece ser a mais complexa para a análise das teorias migratórias. Apesar de não serem beneficiários de uma convenção específica, como é o caso dos refugiados, os deslocados internos são protegidos por vários instrumentos jurídicos, principalmente pelas legislações de abrangência nacional e a legislação sobre direitos humanos. Ainda no caso de se encontrarem em um Estado que enfrenta conflitos armados, os deslocados são protegidos pelo Direito Internacional Humanitário.

De acordo com John K. Bingham, pessoas deslocadas internamente são:

Pessoas ou grupos que foram forçados a deixar seu lar ou local de residência, para fugir dos efeitos de conflitos armados, situações de violência generalizadas, violações de direitos humanos ou desastres tanto ambientais quanto os provocados pelo ser humanos, e que não cruzaram fronteiras internacionalmente reconhecidas como estatais. (2010, p. 42)

Geralmente os deslocados internos constituem uma categoria de cidadãos do Estado onde se encontram. Nessa condição, têm direito a total proteção das leis nacionais e dos direitos que elas garantem aos cidadãos do país, sem nenhuma implicação resultante da situação de deslocamento na qual estão inseridos. A descrição mais empregada pela comunidade internacional para definir o termo foi formulada em 1998 por Francis Deng, o representante para Deslocados Internos do secretariado geral das Nações Unidas. A definição aparece no documento da ONU intitulado “Princípios Orientadores Sobre Deslocamentos Internos”14 e afirma que “deslocados internos são pessoas ou grupos de pessoas que foram forçadas ou obrigadas a deixar os seus lares ou locais de residência habitual, particularmente como resultado de, ou a fim de evitar, os efeitos de conflitos armados, situações de violência generalizada, violações dos Direitos Humanos, desastres naturais ou provocados pelo homem, e que não cruzaram uma fronteira internacionalmente reconhecida de um Estado”.

Os deslocados internos constituem um grupo crescente de vítimas de deslocamentos forçados, que fogem da violência e perseguição, ou ainda desastres naturais, mas não chegam a cruzar uma fronteira nacional. Os deslocados internos se encontraram, durante muito tempo, fora do sistema internacional de proteção, porém a crescente consciência a respeito de suas necessidades de proteção fez com que as Nações Unidas e a comunidade internacional começassem a estabelecer mecanismos para atender suas necessidades.

Nas palavras de Márcia Maria de Oliveira (2010, p. 245), deslocados internos e refugiados são categorias estreitamente correlacionadas. No campo teórico, estas categorias são analisadas em duas vertentes, sendo uma institucional, marcada pela análise positivista e outra teórico-crítica caracterizada pela análise contextual. Mesmo considerando a similaridade das duas categorias, faz-se necessário tratar cada uma de modo separado justamente porque são tratadas desta forma no campo institucional. A autora também é de opinião que esta descrição não é fácil de ser aplicada em um contexto operacional, pois é muito abrangente e inclui muitos grupos com diferentes necessidades sob a mesma categoria. A autora também afirma que esta definição cria o risco de diminuir a proteção à qual a população civil como um todo tem direito.

Três fatores têm alimentado o debate sobre deslocados internos no seio da comunidade internacional: o fim da Guerra Fria, a proliferação dos conflitos internos e a conscientização sobre a proteção insuficiente concedida aos deslocados. Várias medidas foram tomadas em resposta às preocupações internacionais referentes aos deslocados, dentre elas a nomeação, em 1992, de um Representante do Secretário-Geral para os deslocados, bem como a formulação dos “Princípios orientadores sobre deslocamentos internos”.

O ACNUR tem publicado, também, uma grande quantidade de material sobre o tema dos deslocados, descrevendo sempre o papel de liderança que se propõe a exercer na proteção e assistência dos deslocados, dada a similaridade crescente entre a situação destes e a dos refugiados.

Em dezembro de 1999 as agências da ONU adotaram, através do Comitê Permanente Inter-Agências, um documento sobre a política de proteção aos deslocados, com diretrizes para coordenação interagências. O Comitê Permanente também estabeleceu mecanismos para aprimorar a resposta humanitária às necessidades dos deslocados.

Em julho de 2000 foi criada a Rede Interagências de Alto Nível sobre Deslocamentos Internos. Meses antes, em janeiro do mesmo ano, foi criada a chamada Unidade de Deslocados que é uma equipe não operacional composta de funcionários cedidos das agências principais da ONU e de Organizações Não Governamentais para o atendimento dos deslocados.

A Declaração de San José de 1994, sobre Refugiados e Pessoas Deslocadas, já afirmava que “a problemática dos deslocados internos, não obstante ser fundamentalmente de responsabilidade dos Estados de onde são nacionais, constitui também objeto de preocupação da comunidade internacional, por se tratar de um tema de direitos humanos que pode estar relacionado com a prevenção de causas que originam os fluxos de refugiados.”. O Plano de Ação do México de 2004 corrobora esta estratégia.

Atualmente, vários países possuem mecanismos que permitem proteger os deslocados internos. Esta sendo realizado um trabalho pelo ACNUR em relação a atender, também, os deslocados internos em seu mandato de proteção internacional.

Em relação ao Brasil, é possível verificar, por meio da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), que mais da metade dos moradores do Distrito Federal (DF), ou seja, 51,4% de seus moradores, não são naturais da região. Segundo a PNAD, o Distrito Federal e o Estado de Roraima são as duas unidades federativas do Brasil cujos habitantes provenientes de outro lugar no Brasil são mais numerosos do que sua população originária própria. Devido à falta de pesquisas da área, não é possível verificar quantos destes habitantes são migrantes internos ou deslocados internos.

A explicação das desigualdades regionais é relevante para entender as migrações de significativos grupos sociais da região nordeste em direção à região sudeste do Brasil.

Segundo Wilson Fusco (2010, p. 92), ao se levar em conta outros fatores que podem estar associados à maior ou menor probabilidade de migrar, dois deles são sempre considerados importantes: a renda e a escolaridade. Indivíduos com maior renda e escolaridade tendem a migrar mais do que os demais. A razão normalmente citada para justificar esta afirmação é que pessoas com renda maior sofrem menor impacto com os custos da migração e participam de um mercado mais amplo do que as demais pessoas. Quando são analisados os fluxos migratórios no Brasil, pensa-se, geralmente, em pessoas de baixa renda fugindo de condições difíceis e buscando sobreviver. Porém, nem sempre é o que ocorre.

De acordo com as análises de Luiz Bassegio (2004, p. 57), “a migração, portanto, ao longo da história do Brasil, tem sido um fenômeno compulsório: os migrantes são obrigados a deixar sua terra em busca de uma vida melhor em outros lugares ou países. Isso acontece porque os interesses econômicos das elites dominantes sempre estiverem por trás das grandes migrações no Brasil”.

Com relação à migração intrarregional, os dados indicam que muitos migram para escapar de conflitos socioambientais, étnicos e familiares, que ocorrem em várias regiões da Amazônia. A grande maioria dos migrantes entrevistados por Márcia Maria de Oliveira (2010, p. 114) é proveniente de municípios das calhas dos grandes rios que recortam a Amazônia. São trabalhadores sem formação profissional, sem estudos, que migram em busca de um posto de trabalho na capital que concentra todos os bens e serviços de todos os estados da Amazônia.

As estatísticas sobre deslocados internos devem ser vistas com muita cautela. Na verdade, o próprio conceito de deslocados varia de uma organização para outra, visto que depende do escopo de ação da organização específica e dos critérios que esta aplica para definir as causas e duração dos deslocamentos. Como resultado, existem debates e divergências frequentes entre organizações humanitárias e governos a respeito das cifras oficiais das populações deslocadas.

Segundo dados do ACNUR, a Colômbia é o país com mais deslocados internos do mundo. Para o Alto Comissariado, todos os sujeitos em situação de refúgio passaram, anteriormente, pelo deslocamento interno.

O ACNUR também afirma que o número de deslocados internos supera, e muito, o número de refugiados que cruzam as fronteiras internacionais. É possível verificar que, enquanto existem aproximadamente 10 milhões de refugiados, o número de deslocados internos é de aproximadamente 25 milhões de pessoas.

Sobre a autora
Anne Paiva de Alencar

Advogada Criminal, Professora de Direito e Legislação Ambiental, Advogada Dativa da Justiça Federal- Seção Judiciária do Estado do Amazonas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALENCAR, Anne Paiva. Análise da condição jurídica dos caracterizados refugiados ambientais do Haiti no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3694, 12 ago. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24288. Acesso em: 24 nov. 2024.

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