3. Repisando o iter criminis no tipo penal de furto: por uma mais precisa e justa delimitação do momento da consumação e do início da execução do crime.
O verbo nuclear do tipo penal descrito no art. 155 do Código Penal é subtrair. De acordo NUCCI, subtrair significa “apoderar-se ou assenhorear-se de coisa pertencente a outrem, ou seja, tornar-se senhor ou dono daquilo que, juridicamente, não lhe pertence”[19]. Portanto, nos termos do art. 14, I, c/c art. 155 do Código Penal, para que haja a consumação do crime de furto mister é que todos os elementos da definição legal do crime estejam reunidos na conduta imputada ao acusado. Portanto, enquanto não ocorrida a subtração da coisa alheia móvel, isto é, enquanto o indivíduo dela não apoderar-se ou assenhorar-se, não se pode considerar consumado o delito de furto.
Nesse ponto, como visto, tanto os Ministros do Superior Tribunal de Justiça como os do Supremo Tribunal Federal afirmam que, para a definição do momento da consumação dos crimes de furto e de roubo, adotam a teoria da aprehensio, isto é, adotam como critério a existência de posse da coisa pelo indivíduo. O entendimento judicial mais recente, contudo, sustenta que, para a verificação da posse, e, por conseguinte, da consumação do furto, não seria necessária a retirada da coisa da esfera de vigilância da vítima, sendo prescindível também que essa posse seja mansa e pacífica.
As decisões que caminham nesse sentido, entretanto, parecem não aplicar corretamente a ideia de posse, que pode ser extraída do Direito Civil. A posse é, como salienta Caio Mário da Silva Pereira, uma situação de fato, “em que uma pessoa, independentemente de ser ou não ser proprietária, exerce sobre uma coisa poderes ostensivos, conservando-a e defendendo-a”[20]. A posse é, para o civilista brasileiro, a “exteriorização da conduta de quem procede como normalmente age o dono”[21], ou seja, é “a visibilidade do domínio”[22]. Orlando Gomes também destaca os sinais exteriores do domínio como essenciais para caracterização da posse. Consoante suas palavras: “qualquer pessoa é capaz de reconhecer a posse pela destinação econômica da coisa. Sua existência se atesta por sinais exteriores”[23].
Ora, na hipótese em que alguém detém um bem móvel e tenta fugir sendo imediatamente perseguido por policial ou por pessoa que se diz proprietária do bem que é, ao fim da perseguição, recuperado, não há espaço de tempo suficiente para que o detentor dê qualquer destinação econômica para a coisa e não pode ele, por evidente, manifestar qualquer sinal externo sobre o domínio da coisa e, muito menos, comportar-se como “normalmente age o dono”. Nos casos perseguição imediata pela vítima ou por terceiro ou nas hipóteses em que o agente não consegue sequer abandonar o local onde já se encontrava a res furtiva, isto é, quando esta não é retirada da esfera de vigilância da vítima, não se pode considerar consumado o crime de furto, porquanto não ocorrido o resultado naturalístico, que é a lesão ao bem jurídico. Se o patrimônio da vítima não for afetado (e, à luz dos princípios da intervenção mínima e da fragmentariedade do Direito Penal, diríamos mais, severamente afetado), não se pode pretender consumado o crime de furto.
Nesse sentido, Guilherme de Souza Nucci também defende que:
O furto está consumado tão logo a coisa subtraída saía da esfera de proteção e disponibilidade da vítima, ingressando na do agente. É imprescindível, por tratar-se de crime material (aquele que se consuma com o resultado naturalístico), que o bem seja tomado do ofendido, estando, ainda que por breve tempo, em posse mansa e tranquila do agente. Se houver perseguição e em momento algum conseguir o autor a livre disposição da coisa, trata-se de tentativa. Não se deve desprezar essa fase (posse tranquila da coisa em mãos do ladrão), sob pena de se transformar o furto em um crime formal, punindo-se unicamente a conduta, não se demandando o resultado naruralístico[24].
Julgamos, pois, equivocada a mudança de entendimento havida no âmbito do STJ e do STF, que, além da falha dogmática, destoa da política criminal minimalista imposta pela Constituição de 1988, cedendo, ao revés, espaço para o discurso policialesco da defesa social[25].
Do mesmo modo, consideramos juridicamente equivocada a condenação dos réus nos casos apreciados na primeira instância da Justiça Federal em Pernambuco. Ora, como já dito, no que tange a realização do crime, todo agente percorre um caminho, um roteiro entre o momento da idéia de sua realização até aquele em que ocorre a consumação. A esse caminho se dá o nome de iter criminis, que é composto de uma fase interna (cogitação) e de uma fase externa (atos preparatórios, atos de execução e consumação). Entretanto, nem todas essas fases interessam ao Direito Penal.
Os atos preparatórios correspondem ao momento em que o agente começa a movimentar-se executando seu planejamento de acordo com a vontade e a finalidade imaginadas na fase anterior. Ele se cerca dos meios possíveis para a execução do crime, passando de mera cogitação para a ação objetiva; arma-se dos instrumentos necessários à prática da infração penal, procura o local mais adequado ou a hora mais favorável para a realização do crime etc. Tais atos também escapam, regra geral, à aplicação da lei penal, uma vez que exige-se para a punição ao menos o início da execução.
No caso de Anastácio, diante do que fora relatado pelas testemunhas ouvidas no inquérito policial, era possível concluir que o réu não foi flagrado praticando atos executórios do crime de furto, passíveis de configurar a materialidade delitiva, sequer na forma tentada. De fato, tem-se comprovado apenas que ele estava “agindo como se procurasse por peças soltas”.
No caso em análise, o Juízo a quo tipificou a conduta imputada ao acusado como furto na modalidade tentada com base no que dispõe o art. 14, II, do Código Penal. Quando não ocorreu sequer apreensão da coisa, por óbvio, não se pode afirmar, de acordo com o critério da teoria objetivo-formal, que foi iniciado os atos executórios, uma vez que não praticada qualquer conduta efetivamente descrita no núcleo do tipo penal.
De acordo com René Ariel Dotti: “o início da execução do delito é o começo da realização do verbo contido no tipo”.[26] Ora, nos termos do art. 155 do Código Penal, o verbo constante no núcleo do tipo é subtrair. Se o acusado não deu início à realização desse verbo nuclear, não se iniciou, por conseguinte, à execução e, portanto, não há crime.
Convém sempre enfatizar que os atos preparatórios (cogitação, preparação, etc.) não estão incluídos na execução delitiva, fase esta imprescindível para que a tentativa, ao menos, subsista. É interessante notar que também no caso de Anderson, mesmo depois de transcorrida toda a instrução processual, não se logrou identificar qual seria a res furtiva. Qual a coisa alheia móvel que foi ou seria subtraída? É ela insignificante? De pequeno valor? Com efeito, não se pode, com elementos que foram coligidos aos autos, responder a essas indagações, o que leva a crer, efetivamente, que a execução do imaginado crime de furto não chegou sequer a ser iniciada. Anderson poderia, quando muito, responder pelo crime dano.
Neste sentido, o egrégio Tribunal Regional Federal da 1ª Região tem entendimento que parece mais adequado às teorias mais recentes sobre os critérios para a definição do início da execução:
PENAL. ROUBO QUALIFICADO. ART. 157, § 2º, INCISOS I e II, DO CÓDIGO PENAL. CARGA DE CHARQUE. TENTATIVA. EMPREGO DE ARMA DE FOGO. SUPOSTO ENVOLVIMENTO DE POLICIAL RODOVIÁRIO FEDERAL[27]. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. 1. Preliminar de incompetência da Justiça Federal afastada, considerando que consta da denúncia imputação de fato delituoso a servidor público federal (Patrulheiro Rodoviário Federal), no exercício de suas atividades institucionais, fato este que, por si só, atrai a competência da Justiça Federal para o julgamento da causa. 2. Para que o agente seja punido por crime tentado (art. 14-II do CP), necessário se faz que se tenha dado início aos atos de execução, que sejam próprios e adequados a provocar o evento típico, causando um perigo real ao bem jurídico protegido pela norma penal. 3. Não configuração da tentativa, visto que os réus foram detidos quando davam início aos atos preparatórios, que, embora se situem fora da esfera de cogitação (1ª etapa do iter criminis), ainda não se traduzem em início da execução do crime, não sendo, assim, puníveis. 4. Manutenção da sentença absolutória, em relação aos demais denunciados recorridos, à falta de provas consistentes à confirmação da imputação veiculada na denúncia. 5. Provimento às apelações dos acusados ALVACY DE OLIVEIRA e ISRAEL DE ALMEIDA SAMPAIO SANTOS FILHO, para absolvê-los das acusações contra si imputadas, com fulcro no art. 386, III, do Código de Processo Penal. 6. Apelação do Ministério Público Federal improvida.6
Perceba-se que, nesse caso, o Tribunal adotou a teoria objetivo-material, que leva em consideração tanto o início da prática da conduta descrita no tipo penal como a exposição do bem jurídico tutela à situação de perigo concreto. O mesmo haveria de ter sido feito nos casos concretos discutidos neste estudo.
Conclusões
Vimos que o estudo do iter criminis é essencial para a prática judicial em matéria criminal. Saber delimitar com a máxima aproximação possível da realidade os momentos que vão desde a cogitação até a consumação do delito é essencial para controlar o abuso do poder punitivo estatal. Ainda que reconheçamos ser o Direito essencialmente linguagem e mesmo admitindo o uso retórico de qualquer critério hermenêutico construído pela dogmática jurídica, acreditamos ser possível tentar estabelecer limites ou contornos (embora imprecisos ou insuficientes) para o debate judicial que obriguem os intérpretes ou aplicadores do Direito a argumentar em bases que reputamos mais objetivas.
Percebemos que, no crime de furto, há ainda polêmica doutrinária e jurisprudencial acerca dos momentos que separam os atos preparatórios dos executivos e estes da consumação da subtração.
Em relação ao primeiro aspecto, optamos por adotar o critério objetivo-formal, com abertura exegética para o critério material e concreto, desde que, no caso de interpretação extensiva, seja para beneficiar o réu.
Assim, consideramos que, no crime de furto, o início da execução somente ocorre com a apreensão da res furtiva, momento que se pode afirmar iniciada a execução da subtração.
Por outro lado, em que pese o entendimento jurisprudencial no sentido de que, para a consumação do crime de furto, não se exige a posse mansa e pacífica, consideramos que a manifestação de sinais externos de domínio são essências para a caracterização da posse, de modo que, sendo o agente interrompido no seu intento de se apoderar da coisa antes que lhe seja possível dela fruir, gozar ou usar, não se pode considerar consumado o delito de furto, o que se estende também para o crime de roubo.
Por fim, deixamos registrado o entendimento de que uma política criminal verdadeiramente minimalista deveria caminhar para a limitação do uso do Direito Penal apenas para os crimes com violência[28], de modo que toda a discussão aqui aventada seria útil apenas para o crime de roubo. De qualquer sorte, enquanto não implementada essa política, é necessário, ao menos, bem conhecer os limites do uso legitimado pela Constituição da violência estatal representada pela pena.
Referências:
· BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. V. 1. São Paulo: Atlas, 2003.
· BRANDÃO, Claudio. Curso de direito pena: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
· BRUNO, Aníbal. Direito penal: parte geral. Tomo 2ª. Rio de Janeiro: Forense, 1967.
· GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal. 7 ed. (Série Clássicos Jurídicos). São Paulo: Saraiva, 2008.
· GOMES, Orlando. Direitos reais. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983.
· NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
· PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. V.4. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
· ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 7ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
Notas
[1] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. V. 1. 2003. Atlas, p. 144;
[2] BRANDÃO, Claudio. Curso de direito pena: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p 256.
[3] BRUNO, Aníbal. Direito penal: parte geral. Tomo 2ª. Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 229.
[4] BRANDÃO, Claudio. Curso de direito pena: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p 258-259.
[5] Idem, p. 257.
[6] ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 7ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 602-603
[7]Idem, p. 603.
[8][8] Ibidem.
[9] BRUNO, Aníbal. Op. Cit. p. 231-232.
[10] GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal. 7 ed. (Série Clássicos Jurídicos). São Paulo: Saraiva, 2008, p. 332
[11] Embora possa parecer ridículo, o réu afirmou sua intenção sem jocosidade. Registramos deliberadamente a intenção dele para desfazer, na mente daqueles que, por ventura, não tenham contato cotidiano com a Justiça Federal, a idéia de que nesta são apenas julgados casos de grande relevância sócio-jurídica. Urge, de fato, repensar a política e a definição das prioridades persecutórias do Estado.
[12] STJ. REsp 156.775/RJ, Rel. Ministro VICENTE LEAL, SEXTA TURMA, julgado em 28/04/1998, DJ 01/06/1998, p. 204.
[13] STJ. HC 165.866/DF, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 09/10/2012, DJe 17/10/2012.
[14] STJ. AgRg no HC 254.399/RS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 27/11/2012, DJe 04/12/2012.
[15] STF. HC 108678, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 17/04/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-091 DIVULG 09-05-2012 PUBLIC 10-05-2012 RT v. 101, n. 922, 2012, p. 731-735
[16] STF. HC 104593, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 08/11/2011, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-230 DIVULG 02-12-2011 PUBLIC 05-12-2011 RB v. 24, n. 579, 2012, p. 53-56
[17] STF. HC 88.259/SP, Relator Min. Eros Grau, Segunda Turma, Julgamento em 2/5/2006, DJ 26/5/2006.
[18]STJ. REsp 1178317/RS, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado em 26/10/2010, DJe 13/12/2010
[19] NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 705.
[20] PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. V.4. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 13.
[21] Idem, p. 17.
[22] Ibidem.
[23] GOMES, Orlando. Direitos reais. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 22.
[24] NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 705-706.
[25] Entendemos que a Constituição de 1988, ao prever, no seu art. 1º, III, a dignidade humana como um fundamento da República e, no seu art. 5º, a liberdade como direito fundamental de todo cidadão, impôs ao legislador ordinário a limitação ao máximo das hipóteses de violação desses preceitos, determinando, por conseguinte, que a pena (a mais grave forma de intervenção na esfera de liberdade do cidadão) só poderá ser aplicada em casos raros e extremamente necessários. Disso decorre o nosso posicionamento no sentido de que a política criminal ínsita na Carta Política brasileira é, se não abolicionista, no mínimo (a redundância é proposital), minimalista.
[26] DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal – Parte Geral. Rio de Janeiro: 2004, Forense, p. 325;
6 TRF 1ª Região. Quarta Turma. Apelação Criminal—200101000178032. Relator(a):Desembargador Hilton Queiroz; Data da decisão:12/03/07; Data da publicação: 19/04/07.
[28] Numa sociedade idealmente “justa, fraterna e solidária”, que o Brasil não é, apesar do que dispõe a Constituição, talvez, o Direito Penal seria até mesmo desnecessário. O debate em torno do abolicionismo, contudo, é muito mais amplo do que os limites do presente estudo.