De acordo com a base de dados do censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), estima-se que o número de usuários de crack, hoje, no Brasil ultrapassa 1,2 milhão. Os dados foram apresentados pelo psiquiatra Pablo Roig, especialista no tratamento de dependentes do crack, durante o lançamento da Frente Parlamentar Mista de Combate ao Crack, na Câmara dos Deputados, em 2010.
O efeito do crack é devastador, advertem psiquiatras especializados no tratamento de usuários de drogas no Brasil. “O crack diminui o funcionamento cerebral, afasta o usuário da família e ele passa a ter grande risco de morte nos primeiros anos de uso”, explica o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, coordenador da UNIAD (Unidade de Pesquisas em Álcool e Drogas da Universidade Federal de São Paulo). E continua: “O crack produz dependência muito maior do que a da cocaína. Quem fuma crack, não faz mais nada na vida, além de fumar a droga. Às vezes, passam dois ou três dias fumando crack e só param quando não suportam mais fisicamente. Chama-se dependência, uma doença do cérebro.”
Afirma o psiquiatra Pablo Roig, que “usuários de crack, muitas vezes, são pessoas que agem como psicopatas, porque não têm a parte pensante do cérebro ativa. Eles são puro impulso.” A Organização Mundial de Saúde (OMS) também classifica o uso de drogas como transtorno mental.
Diante do exposto, podemos concluir que o usuário de crack é diferente do usuário de qualquer outro tipo de droga e que nunca houve na história um fato de impacto tão violento na nossa sociedade.
E o que os Operadores do Direito têm a ver com isso?
O uso do crack é causa também do aumento dos homicídios, roubos e sequestros no Brasil; informa o Ministério Público de SP. “Para conseguir dinheiro para comprar a droga, o usuário do crack furta, rouba e mata. Mais de 50% das mortes de usuários de crack foi decorrente de homicídios, especialmente por armas de fogo.”
Indicadores do Ministério da Justiça mostram que a população carcerária em 2009 era de 469.546 detentos. Sendo que 85.506 presos estavam envolvidos diretamente com drogas, 50.834 em casos de homicídio e 210.501 envolvidos em crimes contra o patrimônio, os quais envolvem furto, roubo, latrocínio, entre outros. Detalhe importante é que a capacidade carcerária, na época, era de 299.392 vagas. (1)
Quantos destes presos cometeram algum crime em função da dependência de crack? Em função de uma doença mental? O Operador do Direito contemporâneo deve estar atento para não lotar as prisões de pessoas doentes, as quais cometeram algum tipo de crime como meio para obter dinheiro para sustentar o vício do crack e ou como resultado desta doença mental gravíssima.
Denota dizer, que o Legislador, ao redigir o Código Penal em 1940, ou alterar seus dispositivos pelo Decreto-Lei 7209/84, não imaginava que atravessaríamos uma pandemia de uso de crack e suas consequências no âmbito jurídico, em 2013.
Lembra BETTIOL:
“Afirma-se algo de todo inexato quando se diz que é tarefa da hermenêutica ir à procura da vontade do legislador, compulsando trabalhos preparatórios. O legislador, como tal, é um ‘mito’, porque na realidade é composto por um grupo de homens que, sentados em torno de uma mesa, concordam, quiçá com sacrifício de suas idéias pessoais, em elaborar uma ordenação. Mas a ordenação, uma vez elaborada, se objetiva, desvincula-se do pensamento daqueles que a tomaram, vive uma vida autônoma. Repetindo Calamandrei, a lei é como um filho que sai da casa paterna para ir ao encontro da vida, para seguir a sua própria estrada, frustrando, talvez ou superando toda a expectativa do genitor. Assim, a lei é independente da vontade do legislador, mas independente também do complexo de condições histórico-ambientais que a determinaram, pelo que deve saber adaptar-se a um complexo de novas condições sociais que se podem apresentar, com o fluir do tempo.” (2)
Assim, a Lei deve ser interpretada conforme os movimentos da sociedade. E será que estamos interpretando de maneira correta os casos de crimes motivados pelo uso patológico de crack? Contudo, hoje, uma das preocupações mais evidentes do Poder Judiciário é não deixar que se torne comum o uso do instituto da Inimputabilidade, como desculpa para cometer crimes.
Entretanto, o Título III, em seu artigo 26, do Código Penal, trata como isento de pena, o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Por outro lado, o inciso II, do artigo 28, CP, consagra que não excluem a imputabilidade penal: II - a embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos.
Através da Interpretação restritiva, podemos concluir que, embora fazendo referência ao uso de substâncias de efeitos análogos voluntaria ou culposa - o texto não cita o uso patológico – portanto, este abrangido pelo Artigo 26, CP, como doença mental, segundo a medicina. O qual, a correta aplicação é a medida de segurança, e não a pena restritiva de liberdade.
A legislação citada prevê, ainda:
Parágrafo único - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
“Art. 96. As medidas de segurança são:
I - Internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, em outro estabelecimento adequado;
II - sujeição a tratamento ambulatorial ”
Entretanto, Segundo o Princípio da Especialidade, aplica-se:
A Lei Especial Nº 11.343/2006, a qual trata especificamente sobre drogas, a qual cita:
“Art. 45. É isento de pena o agente que, em razão da dependência, ou sob o efeito, proveniente de caso fortuito ou força maior, de droga, era, ao tempo da ação ou da omissão, qualquer que tenha sido a infração penal praticada, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Parágrafo único. Quando absolver o agente, reconhecendo, por força pericial, que este apresentava, à época do fato previsto neste artigo, as condições referidas no caput deste artigo, poderá determinar o juiz, na sentença, o seu encaminhamento para tratamento médico adequado.
Nos casos em que há apenas o estreitamento da consciência, ou seja, o dependente possui um pouco de consciência sobre seus atos, mais comum nos períodos de abstinência, aplica-se a inimputabilidade parcial, senão vejamos:
Art. 46. As penas podem ser reduzidas de um terço a dois terços se, por força das circunstâncias previstas no art. 45 desta Lei, o agente não possuía, ao tempo da ação ou da omissão, a plena capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.”
É claro que é necessário discernir uso patológico do uso voluntário ou culposo. Desta maneira, cabe a medicina, através de perícias, constatar ou não a doença mental que originou o crime e ao Operador do Direito interpretar de maneira histórica, sistêmica, restritiva e constitucional, a Lei, nestes casos.
Cavalieri Filho destaca que “é por isso que se diz não existir norma jurídica, senão norma jurídica interpretada.” (3)
O que não é admitido em nosso ordenamento jurídico é colocar pessoas doentes em presídios como criminosos, e assim tentar solucionar um problema de saúde pública e de cunho social com pena restritiva de liberdade.
Ora, cabe ao Operador Jurídico defender a nossa Carta Magna, a qual elenca princípios que tutelam valores intrínsecos ao ser humano, sendo correto adequar estas pessoas em centros de tratamento especializados, por se tratar de dependência tão específica e gravíssima.
Destarte, é interpretando a Lei, sob o diálogo das diferentes formas de interpretação e da comunicação interdisciplinar, em se tratando, principalmente, de Direito Penal, é que, de fato, beneficiaremos toda a sociedade com evolução social, sob o prisma constitucional da valorização, do desenvolvimento e da dignidade da pessoa humana.
Fontes:
(1) http://portal.mj.gov.br
(2) BETTIOL, Giuseppe. Direito penal. 2. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. V. 1, p. 152.
(3) FILHO, Sérgio Cavalieri. 2004, p.161