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A boa-fé pré-contratual nos contratos internacionais segundo os princípios Unidroit

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Agenda 20/05/2013 às 09:40

IV – A BOA-FÉ SEGUNDO OS PRINCÍPIOS UNIDROIT

De acordo com o artigo 1.7 dos princípios Unidroit:

“(1) Ciascuna parte deve agire in conformità alla buona fede nel commercio internazionale.

  (2) Le parti non possono escludere o limitare quest´obbligo”

Os princípios Unidroit atribuem à boa-fé nos contratos comerciais internacionais um papel significativo, na medida em que a mesma é tratada como norma de caráter geral a ser aplicada a cada singular aspecto do contrato[62]. Constitui, portanto, uma das principais idéias inspiradoras dos princípios, tanto que é possível citar diversos artigos que fazem menção ao principio da boa-fé, ainda que indiretamente, tais como os artigos 2.4 (2) (b), 2.15, 2.16, 2.18, 2.20, 3.5, 3.8, 3.10, 4.1 (2), 4.6, 4.8, 5.2, 5.3, 6.1.3, 6.1.5, 6.1.16 (2), 6.1.17 (1), 6.2.3 (3) (4), 7.1.2, 7.1.6, 7.1.7, 7.2.2 (b) (c), 7.4.8 e 7.4.13[63]. Afinal, conforme já se discorreu anteriormente, ao contrário no que se verifica na concepção clássica de obrigação, em que as obrigações são lineares, nos contratos comerciais internacionais as obrigações existentes são complexas, o que resulta na atual visão doutrinária da obrigação como processo. Nesse sentido, a boa-fé deve ser observada em todas as fases contratuais, ou seja, desde o período de negociações até a fase pós-contratual, bem como nas obrigações acessórias ao objeto principal do contrato.

Existe certa dificuldade em delinear com precisão qual é o conceito e quais são os limites da boa-fé adotados pelos princípios Unidroit. Afinal, a concepção de boa-fé[64] acolhida pelos princípios Unidroit não se confunde, por exemplo, no que se refere ao âmbito europeu, com aquela adotada nas diretivas emanadas pela Corte de Justiça, baseada no artigo 1.102 dos princípios europeus. Tal situação decorre do fato de os princípios Unidroit referirem-se à boa-fé presente na relação entre dois comerciantes, que desenvolvem sua atividade em sede profissional, ao contrário do que ocorre nas situações enquadradas sob os princípios europeus ou, ainda, como questões de consumo[65].  Cumpre, dessa maneira, identificar qual modelo de boa-fé é adotado pelos princípios Unidroit.

Nesse sentido, faz-se necessário, preliminarmente, analisar, brevemente, a concepção de boa-fé adotada em alguns ordenamentos jurídicos domésticos. Em se tratando do sistema de Civil Law, é interessante a referência aos modelos francês, alemão e italiano. O modelo francês trata a boa-fé sob um prisma subjetivo. Além disso, não há previsão de aplicabilidade do princípio na fase das tratativas. Para o direito alemão, a boa-fé é um princípio geral do direito das obrigações, não havendo previsão para sua utilização no âmbito específico dos contratos, motivo pelo qual é visto como um modelo mais aberto. No que se refere aos dois citados modelos contratuais, observa-se que o código civil italiano de 1942 apresenta uma evolução singular, uma vez que prevê a obrigação de agir com boa-fé também na fase pré-contratual.

Quanto ao sistema de Common Law, podem ser identificadas diferenças entre os modelos dos Estados Unidos e da Inglaterra. No sistema inglês, a exigência de boa-fé é banida da fase pré-contratual, uma vez que se entende que o risco é característica inerente à negociação e, assim sendo, não haveria sentido em eliminar ou atenua-lo. No que se refere ao direito americano, ao contrário do sistema inglês, existem estatutos que fazem referência à boa-fé (codificação parcial)[66]. Reconhece-se, dessa forma, a necessidade do comportamento de boa-fé entre os contratantes tanto na fase de conclusão, quanto na fase de execução do contrato. Contudo, assim como no modelo inglês, não existe um dever de boa-fé na fase pré-contratual. Cumpre, ainda, observar que, no direito americano, o dever de boa-fé é entendido como implied term, ou seja, como uma cláusula inserida implicitamente no contrato. Por fim, resta analisar se a boa-fé é acolhida sob uma perspectiva subjetiva (honesty in fact) ou objetiva (reasonableness). O entendimento majoritário é no sentido de atribuir à boa-fé um senso objetivo, tendendo-se a defini-la como “reasonable commercial standards of fair dealing”.

É relevante ressaltar que a correteza (boa-fé, good faith) refere-se, sobretudo, à necessidade de obediência a um juízo de natureza ética comportamental. Enquanto isso, a razoabilidade (reasonableness) remete ao empirismo da practis uma vez que oferece soluções aceitáveis no caso concreto, apesar de, talvez, não serem as mais justas. Isso significa que, ao passo que a boa-fé oferece ao comércio internacional soluções de ordem ética, a razoabilidade fornece respostas de ordem utilitária[67].

Por fim, pode-se afirmar que os pincípios Unidroit apresentam características derivadas tanto do modelo Civil Law, quanto do sistema de Common Law. A concepção de boa-fé como um princípio abstrato, amplo e geral, aproxima-a, indubitavelmente, com o sistema de Civil Law. Também o dever de observância da boa-fé na fase pré-contratual é originada do sistema de Civil Law. Por outro lado, no que se refere ao emprego da boa-fé como implied term, há evidente similaridade com o modelo de Common Law. De acordo com essa perspectiva, o conceito de boa-fé será variável de acordo com o conteúdo do contrato[68].

A boa-fé segundo os princípios Unidroit refere-se, especificamente, à boa-fé a ser observada pelos agentes econômicos que atuam no comércio internacional. Nesse sentido, seu conceito deverá ser aplicado segundo padrões normalmente adotados nos diversos sistemas jurídicos nacionais[69]. Sendo assim, em tema de boa-fé, pode dizer que os princípios Unidroit pendulam dentre vário modelos disponíveis. Apenas dessa maneira, é possível que atinjam seu objetivo de atender ás efetivas exigências e expectativas das práticas do comércio internacional, garantindo às relações comerciais internacionais equilíbrio e correção[70].

Nos princípios Unidroit, o referimento à boa-fé (good faith) vem acompanhado do termo “fair dealing”. O referimento ao termo “fair dealing” atribui à boa-fé uma conotação tendencialmente objetiva, hipótese em que o cumprimento do dever de boa-fé é apurado segundo o confronto com um comportamento standard e não de acordo com as intenções do infrator (state of mind). Todavia, diante da dificuldade de estabelecimento preciso do correto comportamento no âmbito do comércio internacional, a desobediência ao princípio deve ser apreciada no caso concreto. Pode-se dizer, portanto, que a identificação da correteza do comportamento constitui uma difícil tarefa, tendo em vista que deve haver uma mediação entre uma regra do caso concreto e uma regra de validade objetiva e geral (ou seja, o standard de comportamento no comércio internacional)[71].

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Um exemplo que pode ser apontado como conduta de má-fé é o “abuso de direito”. Segundo esse princípio, age de má-fé a parte que exercita um direito com objetivo exclusivo de prejudicar a outra ou com a finalidade diversa daquela pela qual o direito foi concedido ou, ainda, quando o exercício do direito é desproporcional ao resultado originalmente pretendido. Age, ainda, de má-fé, a parte que se comporta conforme previsto no artigo 1.8 (“Venire contra factum proprium”)[72]:

“Una parte non può agire um modo contraddittorio rispetto ad un intendimento che há ingenerato nell´altra parte, e sul quale questa há ragionevolmente fatto affidamento a próprio svantaggio”.

Ao final, conclui-se que o princípio da boa-fé, segundo os princípios Unidroit, trata-se de um dever de lealdade objetivo a ser observado entre as partes. A sua definição específica provém não apenas do comportamento verificado nas práticas do comércio internacional e da conceituação de boa-fé nos ordenamentos jurídicos da maior parte dos ordenamentos do globo, mas deriva também da apuração de cada caso concreto considerado singularmente. De qualquer maneira, a exigência de observância de boa-fé surge sempre como instrumento de garantia de equilíbrio e da estabilidade nas relações comerciais que se desenvolvem em âmbito internacional.


V – A BOA-FÉ PRÉ-CONTRATUAL DE ACORDO COM OS PRINCÍPIOS UNIDROIT

A formação dos contratos internacionais, tendo em vista sua complexidade, não é imediata, mas progressiva. Sendo assim, antes da conclusão do contrato, segue-se, em via de regra, uma fase preliminar de negociação. Em geral, as tratativas têm como objeto de discussão os aspectos técnicos relacionados à transação, bem como os aspectos jurídicos. Sendo assim, por óbvio, quanto maior a complexidade do objeto contratado, maior será a necessidade de esclarecimentos técnicos e, consequentemente, mais prolongada será a duração das negociações. Apenas acordados os aspectos técnicos é que será possível o acordo sobre nuances jurídicos como data de entrega e condições de pagamento, por exemplo[73].

Não se pode confundir oferta com negociações preliminares. A oferta, juntamente com a aceitação, é elemento formativo do contrato, ou seja, sem oferta e sem aceitação o contrato simplesmente não existe. Por outro lado, as negociações preliminares são atos preparatórios. Nesse sentido, a oferta (offer) distingue-se do convite para negociar (invitation to deal). É possível que uma fase de negociação inicie-se com uma oferta precisa ou apenas com um convite para negociar. A diferença entre ambas está no elemento subjetivo[74]. Nesse sentido, para que exista, efetivamente, uma oferta, é necessário que a mesma seja precisa e determinada, compondo-se de objeto, preço e condições de entrega e pagamento.

O artigo primeiro dos princípios Unidroit prevê o princípio da liberdade contratual. Assim como a boa-fé, trata-se de um princípio geral norteador de todos os contratos comerciais internacionais a serem celebrados. De acordo com esse princípio, as partes não estarão, de maneira alguma, obrigadas a concluir um contrato, ou seja, cabe às partes, e somente às mesmas, decidir sobre a celebração ou não do acordo. Contudo, a boa-fé surge como princípio limitador do princípio da liberdade contratual, o que significa que as partes não podem se conduzir de maneira desleal em nenhuma etapa da relação contratual, inclusive durante a fase negocial[75].

Afinal, deve-se atentar para o fato de que a não-conclusão de um contrato pode causar prejuízo. Afinal, durante a fase de tratativas é comum que ambas as partes despendam esforços com objetivo de, ao final, realizarem um negócio jurídico vantajoso para ambas. Nesse sentido, não raras são despesas com pesquisas, projetos, experiências, viagens de executivos, entre outros. Sendo assim, o rompimento das negociações pode traduzir-se em gastos efetuados em vão, o que constitui um prejuízo. Até mesmo o mero fracasso, por si só, das negociações é danoso por frustrar as expectativas de um contratante que esperava concluir um contrato vantajoso e, para isso, despendeu forças. Por esse motivo, na moderna consciência social, é viva a idéia de que seja justo que essas despesas sejam repartidas, ou, conforme o caso, integralmente ressarcidas.

Portanto, certo é que, quando partes que possuem eventual interesse de contratar aproximam-se e iniciam uma fase de negociações, não estão vinculadas à conclusão do contrato. Entretanto, o fato de o rompimento das tratativas não configurar responsabilidade contratual não significa que ambas as partes estarão isentas de qualquer tipo de responsabilização pela sua interrupção. Pelo contrário, em havendo prejuízo a uma das partes em decorrência do rompimento das negociações, é justo que a parte causadora do dano deva ressarcir a parte lesada em virtude de dano negativo[76]. O dano negativo nada mais é senão o prejuízo suportado pela parte lesada em virtude da não conclusão do contrato. Portanto, o montante a ser ressarcido não se confunde com o ganho que seria auferido caso o contrato houvesse sido celebrado. É também considerado dano negativo quando a parte continua em processo de negociação com outra que não possui real interesse de celebrar o contrato e perde a oportunidade de negociar o mesmo contrato com terceiro[77].

Por fim, pode-se concluir que, no período pré-contratual, as partes visam, indubitavelmente, a liberdade contratual. Isso significa que tanto uma quanto outra parte não desejam ser obrigados a celebrar um contrato que não lhes seja favorável apenas por terem iniciado uma aproximação para esse fim. Contudo, ao mesmo tempo, as partes possuem evidente interesse em preservar os pontos sobre os quais já existe acordo. Têm, ainda, expectativa de que sejam devidamente ressarcidos eventuais danos que lhe tenham sido causados em virtude do rompimento das negociações. Observa-se, nesse sentido, que se tratam de aspirações contraditórios, pois permeiam tanto o interesse na liberdade contratual quando na vinculação durante a fase das tratativas. Diante desse cenário, deve o direito buscar uma forma de equilíbrio, objetivando a cooperação, a lealdade e a correção entre as partes também na fase preliminar à conclusão do contrato[78].

Diante disso, o entendimento segundo o qual as partes devem agir de boa-fé também durante a fase pré-contratual é acolhido pelos princípios Unidroit, sobretudo em seu artigo 2.1.15, que dispõe:

“(1) Ciascuna parte è libera di condurre trattative e non è responsabile per il mancato raggiungimento di um accordo.

(2) Tuttavia, la parte che há condotto o interrotto lê trattative in mala fede è responsabile per lê perdite cagionate all´altra parte.

(3) In particolare, si considera mala fede iniziare o continuare trattative malgrado l´intenzione di non raggiungere um accordo com l´altra parte”.

E, segundo o comentário desse artigo, a negociação de má-fé se verifica:

 “quando una parte deliberatamente o per negligenza há ingannato l´altra parte sulla natura o sulle condizioni del contratto proposto, vuoi travisando, vuoi non rivelando fatti che, per la qualità delle parti e/o la natura del contratto, avrebbero dovuto essere rivelati”.

No citado artigo, é imposta às partes, em termos gerais, uma responsabilidade pré-contratual pela conduta de má-fé na fase das tratativas, o que configura uma inovação em relação a ordenamentos jurídicos de muitas partes do mundo. Tal princípio costuma ser admitido somente em alguns Estados sob o modelo de Civil Law, em que o rompimento injustificado das negociações, bem como sua continuidade sem a intenção de concluir o contrato constituem as hipóteses mais significativas de conduta de má-fé. Ao contrário, os sistemas de Common Law são relutantes no que se refere á limitação da liberdade de negociação. Sendo assim, nos países onde vigora esse modelo jurídico, costuma-se defender que os riscos inerentes a qualquer negociação devem ser integralmente suportados pelas partes. Contudo, a inexistência de uma previsão explícita relativa à boa-fé pré-contratual no sistema de Common Law não significa que não há qualquer base legal que ofereça respaldo para a responsabilização na fase das negociações. A pretensão indenizatória, nesse caso, pode ocorrer sob a alegação, por exemplo, de unjust enrichment, misrepresentation, bargain in good faith, caveat emptor, ou, ainda, mediante um expresso acordo entre as partes de negociar de boa-fé[79].

Entretanto, mesmo dentre os sistemas de Civil Law, são raros aqueles que dispõem, expressamente, acerca da responsabilidade pré-contratual. O código civil francês, por exemplo, oferece apenas disposições genéricas, sem qualquer menção específica à responsabilidade por comportamento de má-fé na ocasião das tratativas, conforme se observa:

“Art. 1.382 Tout fait quelconque de l´homme, qui cause à autrui un dommage, oblige celui par la faute diquel il est arrivé, à lê reparer.

Art. 1.383 Chacun est responsable du dommage qu´il a cause, non seulement par son fait, mais encore par sa negligence ou par son imprudence”.

O mesmo se verifica em relação ao código alemão, que também não é específico em relação à hipótese de ruptura das negociações:

“Art. 823. Quem dolosa ou culposamente lesiona de forma antijurídica a vida, o corpo, a saúde, a liberdade, a propriedade ou qualquer outro direito de outra pessoa, está obrigado para com ela à indenização do dano por isto causado”.

Todavia, o mesmo não ocorre em relação ao código civil italiano de 1.942, que foi o primeiro a referir-se expressamente às negociações:

Art. 1.337. Trattative e Responsabilità Precontrattuale – Lê parti, nello svolgimento delle trattative e nella formazione del contratto, devono comportarsi secondo buona fede”.

Merece, ainda, especial atenção o código civil português que disciplina “a culpa na formação do contrato”:

“Art. 227. Quem negocia com outrem para a conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa-fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte”.

No que se refere à responsabilidade pré-contratual em virtude do rompimento das tratativas é, ainda, relevante a distinção entre duas hipóteses. Na primeira delas, uma das partes age de forma desleal ou abusiva e, de forma dolosa ou culposa, causa dano à outra. Nesse caso, estará caracterizada uma conduta ilícita. Sendo assim, o dever de indenização não decorre de uma infração pré-contratual, mas sim de uma infração extra-contratual. É o caso, por exemplo, de um contratante que rompe as negociações arbitrariamente, ou, ainda, que dá continuidade à mesma apenas para desvendar segredo de comércio ou indústria ou a fim de impedir que a outra parte celebre o contrato com terceiro concorrente. Em uma segunda hipótese, existe uma interrupção justificada das negociações, sem culpa, que causa dano à outra parte. Nessa situação configura-se a responsabilidade pré-contratual. Não há ilícito, mas existe uma antijuridicidade objetiva, o que resulta no dever de indenizar[80].

De acordo com os princípios Unidroit, faz, ainda, parte da boa-fé pré-contratual observar aquilo que dispõe o artigo 2.1.16, que estabelece:

“Se, nel corso delle trattative, una parte rivela un´informazione in via riservata, l´altra parte há il dovere di non divulgare tale informazione o di non usarla scorrettamente a próprio vantaggio, indipendentemente dalla successiva conclusione del contratto. Ove il caso lo richieda, il remédio per l´inosservanza di questo dovere può includere un risarcimento commisurato al vantaggio ottenuto dalla controparte”.

Preliminarmente, deve-se considerar que não existe qualquer uma norma geral que obrigue as partes a tratarem quaisquer informações trocadas durante a fase de tratativas como secretas. Todavia, é possível que haja interesse que uma determinada informação comunicada à outra não seja divulgada, ou, ainda, que não seja utilizada para fins diversos daqueles para os quais a informação foi prestada. Nesse sentido, a partir do momento em que uma parte declare expressamente tratar-se de uma informação confidencial, ou caso a mesma seja evidentemente confidencial dada a sua natureza, caberá à outra mantê-la nesses termos. Quanto à ressarcibilidade do dano, o montante deverá corresponder à vantagem econômica representada pela informação[81].

Para que se constitua qualquer das hipóteses de responsabilidade pré-contratual, é necessária a verificação de três elementos fundamentais: a) o dano; b) a falta; e c) o nexo de causalidade entre a falta e o dano.

O dano refere-se, substancialmente, ao interesse contratual negativo. Nesse interesse englobam-se:

(i) despesas vinculadas à negociação, ou seja, que foram efetuadas somente em virtude da intenção da conclusão do contrato;

(ii) dano resultante da perda de razoável oportunidade, que poderia ter decorrido de outra negociação capaz de conduzir à celebração do contrato;

(iii) dano moral à reputação comercial ou industrial;

(iv) dano produzido pela violação de segredo de comércio ou indústria, que tenha sido revelado durante a negociação.

A falta, de acordo com os princípios Unidroit, constitui a infração ao dever de boa-fé pré-contratual prevista em seu artigo 2.15.1. Todavia, para definir com maior precisão o conteúdo desse princípio, faz-se necessário recorrer à jurisprudência arbitral, bem como alguns julgados domésticos.

De acordo com a decisão arbitral 2.291 de 1975, proferida em Bruxelas, devem reger os contratos comerciais, a título de boa-fé:

1. a colaboração leal, total e constante entre as partes;

2. a obrigação de as partes não se prejudicarem mutuamente;

3. o dever de diligência normal, útil e razoável na salvaguarda dos bens e interesses das partes;

4. a presunção de competência profissional;

5. o dever de minimizar as perdas próprias e dos outros contratantes.

Além dessa decisão, deve-se salientar a de nº 2.508 de 1976, proferida em Glenebra, que, além de reiterar as provisões da decisão 2.291/75, ainda estabelece, sempre a título de boa-fé:

1. o dever de abstenção de toda e qualquer conduta, proposição ou proposta manifestadamente inaceitável, capaz de conduzir ao fracasso das negociações, e

2. o dever de não realização de propostas insensatas e de não recusa de propostas razoáveis.

Relevante, ainda, a decisão da Câmara de Comércio Internacional de Paris de nº 4.381 de 1986, segundo a qual as partes possuem a obrigação de informar acerca das particularidades de normas em vigor em seus respectivos ordenamentos jurídicos domésticos que possam incidir sobre o contrato a ser celebrado.

Interessante, ainda, a decisão do Tribunal de Roma sobre o conteúdo do artigo 1.337 do código civil italiano, que veio a reconhecer dois princípios, segundo os quais:

1. não é lícito criar no parceiro comercial, por leviandade ou por dolo, uma razoável confiança sobre a conclusão do contrato, e

2. o princípio da correção de conduta sinônimo de boa-fé deve ser entendido em sentido objetivo, o que significa que a responsabilidade pré-contratual pode configurar-se independentemente da intenção do infrator.

Ao final, pode-se concluir que a antijuridicidade da conduta que caracteriza o desrespeito à boa-fé pré-contratual caracteriza-se na:

a) omissão dolosa, desleal, de informação necessária;

b)  violação de segredo ou dado confidencial divulgado durante as negociações;

c)  violação do dever de minimizar os prejuízos

d) falta de cooperação e diligência normal, útil e razoável na salvaguarda dos interesses próprios e da outra parte;

e) quando a decisão de não concluir o negócio ocorreu antes da negociação (má-fé na origem), ou mesmo no seu decurso, e a outra parte disso não foi informada.

O nexo de causalidade refere-se á ligação entre dano e falta necessária para o surgimento do dever de indenizar[82].

Com o escopo de evitar eventuais prejuízos derivados do rompimento das tratativas, a comunidade comercial internacional deu origem a novos modelos jurídicos. Tratam-se de documentos e acordos preliminares (modelos jurídicos pré-contratuais) que precedem o contrato definitivo. Destinam-se, sobretudo a relatar o andamento das tratativas, balizar a negociação, obrigar as partes a negociar seriamente, fazer balanços dos resultados obtidos, recordar pontos relevantes, selar acordos essenciais à conclusão do contrato definitivo, evidenciar detalhes imprescindíveis às partes, salvaguardar segredos de comércio e indústria, etc. Dentre eles, pode-se citar as cartas de intenções, as comfort letters, os acordos de segredo, as garantias, as cláusulas standard e os pré-contratos.

Ao final, é possível concluir que a boa-fé, especificamente no âmbito pré-contratual, surge como um aspecto inovador dos princípios Unidroit. Afinal, a exigência da observância do princípio de boa-fé também no âmbito das negociações não é prevista na maior parte dos ordenamentos jurídicos domésticos do globo. Apesar disso, é de imensurável relevância, no que diz respeito à garantia da lealdade de correção do comportamento dos contratantes em sede de tratativas, para garantia do equilíbrio, da segurança e da estabilidade nas relações comerciais internacionais. Seu conteúdo específico deverá ser apurado não apenas em face das práticas comerciais internacionais em sentido objetivo, mas também de acordo com a verificação do caso concreto.

Sobre a autora
Erika Nicodemos

Advogada atuante na área cível, sócia do escritório Erika Nicodemos Advocacia, graduada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especialista em Direito da Propriedade Intelectual pelo Centro de Extensão Universitária, em convênio com a Universidad Austral de Buenos Aires. Pós-graduada em Direito Empresarial e especialista em Direito Digital e Planejamento Sucessório pela Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas. Mestre em Direito Internacional Privado pela Università degli Studi di Roma – La Sapienza. Mestranda em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Membro efetivo da Comissão de Direito de Família e das Sucessões da Ordem dos Advogados do Brasil, São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NICODEMOS, Erika. A boa-fé pré-contratual nos contratos internacionais segundo os princípios Unidroit. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3610, 20 mai. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24483. Acesso em: 7 nov. 2024.

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