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A construção do processo constitucional brasileiro: uma visão crítica

Agenda 27/05/2013 às 19:12

É fundamental que a sociedade para a qual se destina a norma pense, discuta e participe do processo constitucional, a fim de que o Direito não perca seu propósito e se esvazie numa burocracia mecânica.

Resumo: Trata-se este trabalho de um estudo sobre a construção do processo constitucional brasileiro, bem como sobre os papéis do Supremo Tribunal Federal e da sociedade em geral diante de tal processo, com o objetivo de contextualizar questões relevantes do Direito Processual Constitucional, necessárias ao bom entendimento dos paradigmas jurídicos atuais.

Palavras-chave: constituição, processo, Supremo Tribunal Federal


1 Introdução

A liquidez da pós-modernidade[1] trouxe consigo a necessidade de se repensar conceitos e funções. O Direito, com seu papel de normatizador da conduta humana, não escaparia a tal efeito. Nesse contexto, o processo constitucional se apresenta como um tema importante para reflexão e discussão. Em tempos em que a própria função do Supremo Tribunal Federal (STF) se vê questionada, é válido entender como se configura a construção do processo constitucional brasileiro tanto no âmbito jurisdicional quanto social. Poderia o STF ser considerado uma espécie de Jurisdição Constitucional Autônoma? Ou, segundo o entendimento de José Afonso da SILVA, o processo constitucional não possuiria conexão com os processos político e legislativo? Em que medida o processo constitucional se faz presente nos julgamentos do STF? Qual o papel da sociedade diante das questões constitucionais?

O entendimento da construção do processo constitucional é fundamental para um Estado que se pretende justo e democrático, uma vez que se estende a todas as áreas do Direito, salvaguardando a efetiva aplicação dos princípios e garantias constitucionais e sendo objeto e fim da própria Justiça Constitucional.


Direito Constitucional e Direito Constitucional Processual

Muito se fala em Direito Constitucional entre os operadores do Direito; pouca atenção se dá, no entanto, à sua parte instrumental, que o legitima e o coloca em prática.

Enquanto o Direito Constitucional se debruça sobre o estudo da Constituição e, conseqüentemente, sobre as funções e os limites do poder estatal, o processo constitucional garante a realização desse direito material por meio de regras constitutivas de uma cadeia procedimental adequada ao exame e controle das questões jurídico-constitucionais. (CANOTILHO: 1991, p. 1043)

CANOTILHO conceitua o Direito Constitucional Processual como “o conjunto de regras constitutivas de um procedimento juridicamente ordenado através do qual se fiscaliza jurisdicionalmente a conformidade constitucional de actos normativos”, ou seja, em alguns aspectos o processo constitucional é a concretização dos direitos material e formal, com certo grau de autonomia em relação à ordem jurídica processual geral. (2000, p. 939)

Para José Afonso da SILVA, o processo constitucional encontra-se mais próximo do controle de constitucionalidade, sendo instrumento jurisdicional de solução de conflitos derivados da aplicação das normas constitucionais e, portanto, um conjunto de atos destinados a ativar a função da jurisdição constitucional em defesa dos princípios constitucionais, especialmente daqueles que conferem direitos fundamentais contrariados pela autoridade pública. (2003, p. 753 e 759-760)

O objeto do Direito Constitucional Processual não se restringe à averiguação da conformidade constitucional do procedimento, mas abrange também “as pretensões (...) que se deduzem perante o Tribunal Constitucional, solicitando um juízo de legitimidade constitucional relativamente a determinados actos normativos”. (CANOTILHO: 1991, p. 1044)

O processo constitucional pode ser entendido como um conjunto de procedimentos que conduzem à concretização de determinada situação jurídica, cujo fundamento de validade se encontra na Constituição. Por esse ângulo, o processo constitucional se inicia com a necessidade de determinado direito fundamental ser exercido pelo indivíduo e se concretiza com seu julgamento por uma Corte Constitucional. (GONTIJO: 2007, p. 4)

De acordo com GONTIJO, o Direito Constitucional Processual tem sua origem vinculada às funções de poder, podendo caminhar para: (a) debates de um projeto de lei cuja aprovação, sanção presidencial e promulgação podem ser questionadas no âmbito jurisdicional; (b) a possibilidade de requisição de direito fundamental em um processo administrativo que pode ser levado ao Poder Judiciário ou, ainda, para (c) a requisição direta ao Poder Judiciário quando o direito fundamental, cujo conteúdo essencial se encontre em norma de eficácia plena ou contida, possa ser concedido pela prestação jurisdicional mediante a interpretação de tais preceitos, de modo que o devido processo constitucional torna-se uma garantia contra decisões inconstitucionais mediante a previsão de determinados procedimentos constitucionais, os quais, a priori, cumprem uma exigência fundamental do princípio do Estado Constitucional de Direito. (2007, p. 4)

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A Jurisdição Constitucional Autônoma e a moderna hermenêutica constitucional

A Jurisdição Constitucional Autônoma pressupõe, conceitualmente, uma instituição independente frente a outros órgãos estatais, com competências e funções determinadas. No Brasil, é o Supremo Tribunal Federal que assume o papel de guardião da Constituição (artigo 102, caput, CF/88) e protetor dos direitos e garantias fundamentais, ganhando status de Corte Constitucional, com plenitude nunca antes atribuída pela Carta Magna a órgão estatal. O constitucionalista alemão Peter HÄBERLE rechaça a idéia de haver um “guardião da Constituição”, uma vez que a proteção da Carta Magna deve ser confiada a todos os cidadãos e a todos os órgãos estatais em igual proporção, sendo contrário ao ideário de Estado Constitucional rotular um órgão como “supremo” e lhe outorgar o poder de autêntico e único intérprete constitucional. (2005, p. 120)

Nesse contexto, afirma o autor que "no processo de interpretação constitucional estão (...) vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos (...), não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado (...) de intérpretes da Constituição”. Para o autor, o modelo positivista clássico embasado em Savigny e predominante até o momento não seria coerente e nem atenderia aos anseios da sociedade pluralista moderna, mas, conforme se concentra exclusivamente nas atividades de judicatura, seria destinado a uma “sociedade fechada”. (1997, p. 13)

HÄBERLE diverge da compreensão do Direito apenas como lei, mas o percebe como um fenômeno culturalmente construído com um processo participativo, pelo que a interpretação é “a um só tempo elemento resultante da sociedade aberta e um elemento formador ou constituinte desta sociedade”, esclarecendo que quem vive a norma acaba por interpretá-la. Para ele, a interpretação é uma atividade que, potencialmente, diz respeito a todos e que, portanto, a teoria constitucional e o processo constitucional devem estar em condições de explicitar os grupos de pessoas e os fatores que formam o espaço público, o tipo de realidade que se normatiza, as possibilidades e necessidades existentes naquele tempo e naquele espaço. Os sujeitos ativos da hermenêutica pluralista compreenderiam as forças da comunidade política, composta pelas funções estatais, por órgãos criados pela sociedade e pelo próprio cidadão. Como meio de concretização adequada à natureza aberta das normas constitucionais, o autor defende novas formas de participação do cidadão a serem regulamentadas, subdividas em audiências e intervenções. Ressalta, ainda, que, muito embora o papel da política seja destaque neste processo, não há sobreposição dela ao Direito, uma vez que afirma o fato de sempre subsistir a responsabilidade da jurisdição constitucional na atividade interpretativa, a qual fornece, em geral, a última palavra acerca da interpretação. Com efeito, “a Corte Constitucional deve controlar a participação leal dos diferentes grupos na interpretação da Constituição”. (1997, p. 14-46) Assim se desenharia, portanto, a função de uma Corte Constitucional para o autor – não como intérprete e guardião único da Constituição, mas, antes, como diretriz ao fiel cumprimento do exercício da hermenêutica constitucional por parte de seus agentes no espaço público.


O STF como intérprete constitucional no ordenamento jurídico brasileiro

A origem do atual STF remonta às instituições jurídicas portuguesas do período colonial. Com o passar do tempo e proclamada a independência do Brasil, a Constituição de 1824, em seu artigo 163, dispõe a criação de um Tribunal, então denominado de Supremo Tribunal de Justiça, composto de juízes letrados tirados das Relações por antiguidade. O Supremo Tribunal de Justiça foi instalado em 09 de janeiro de 1829 na Casa do Senado da Câmara, tendo subsistido até 27 de fevereiro de 1891.

A denominação Supremo Tribunal Federal foi contemplada pela Constituição Provisória, em 1890, com a organização da Justiça Federal. A Constituição de 1891, que instituiu o controle de constitucionalidade das leis, dedicou ao órgão os artigos 55 a 59. O Supremo Tribunal Federal era, no momento, composto por quinze juízes, nomeados pelo Presidente da República, com aprovação do Senado. Após a Revolução de 1930, o Governo Provisório decidiu, através do Decreto n. 19.656, de 03 de fevereiro de 1931, reduzir o número de Ministros para onze e a Constituição de 1934 alterou a denominação do órgão para Corte Suprema, reservando-lhe seus artigos 73 a 77. A Carta de 1937 restaura o título Supremo Tribunal Federal, destinando-lhe os artigos 97 a 102.

Em 1960, após ter funcionado durante 69 anos no Rio de Janeiro, o Supremo Tribunal Federal foi transferido para Brasília.

Alterações foram feitas com relação ao número de Ministros do Supremo durante o período da ditadura militar.

Com a restauração da democracia, a Constituição ora vigente, promulgada em outubro de 1988, destacou expressamente a competência precípua do Supremo Tribunal Federal como guardião da Constituição, reservando-lhe seus artigos 101 a 103.

O STF tem, ainda, como função, a interpretação da Constituição. A interpretação constitucional no ordenamento jurídico brasileiro, no entanto, não se dá nos moldes de Häberle, mas, antes, funciona como controle de constitucionalidade. Conforme coloca Luís Henrique Martins dos ANJOS, “a interpretação conforme a Constituição não é uma forma de interpretação hermenêutica, devido à peculiaridade de sua natureza jurídica estar situada como uma modalidade de controle de constitucionalidade e não como regra de interpretação do Direito”. (s/d, p. 1)


Tentativa de abertura no processo constitucional brasileiro

Não obstante a competência do STF de intérprete constitucional no ordenamento jurídico brasileiro, suas decisões devem ser criticadas, até como forma de fomentar o desenvolvimento do processo constitucional, pois, conforme afirma HÄBERLE, ao se utilizar o método de comparação jurídica e se enfatizar a crítica aos precedentes do Tribunal Constitucional, abre-se a possibilidade para que este busque caminhos intermediários em suas decisões, através de uma integração pragmática de elementos teóricos, com o objetivo de se alcançar uma Constituição pluralista.

A promulgação da Constituição de 1988, a chamada Constituição Cidadã, foi o primeiro passo dado pela jurisdição constitucional brasileira para a democratização do processo constitucional. A interpretação de seu texto, no entanto, se manteve restrita a uma “sociedade fechada de intérpretes”, na qual o povo se viu reduzido a mero espectador das decisões proferidas no âmbito do STF. Esse modelo dificulta, quando não impossibilita, a interpretação da Constituição no conceito de HÄBERLE, ou seja, a interpretação aberta, na qual o povo e setores mais amplos da sociedade civil sejam parte do processo constitucional.

Com o intuito de se evitar que a jurisdição constitucional se torne uma instância autoritária, Gustavo BINENBOJM ressalta:

(...) há que se fomentar a idéia de sociedade aberta de intérpretes da Constituição, formulada por Häberle, segundo o qual o círculo de intérpretes da Lei Fundamental deve ser elastecido para abarcar não apenas as autoridades públicas e as partes formais nos processos de controle de constitucionalidade, mas todos os cidadãos e grupos sociais que (...) vivenciam a realidade constitucional. (2004, p. 141)

As leis 9868/99 e 9882/99 foram tentativas de se permitir que o cidadão pudesse ingressar diretamente com uma ação constitucional ante o STF e foram formuladas com o intuito de modernizar o processo constitucional brasileiro e iniciar a abertura do STF por meio das idéias pluralistas de Peter Häberle; são meios de racionalizar e conferir um caráter pluralista ao processo objetivo de controle abstrato de constitucionalidade.

Para GONTIJO, muito embora a efetividade das referidas leis se dê de forma lenta e gradual, é possível se observar um avanço no processo constitucional pátrio no sentido de possibilitar a abertura dos julgamentos do controle abstrato a elementos externos que podem contribuir para a análise adequada da verificação de (in)constitucionalidade dos atos normativos, como, por exemplo, o pedido de informações aos órgãos emissores do ato normativo (artigo 6º da Lei n. 9.868/99), as informações adicionais, a solicitação de peritos, a fixação de audiências públicas ou a consulta aos demais tribunais sobre a aplicação do ato normativo no âmbito da respectiva jurisdição (Lei n. 9.868/99, art. 9º, §§ 1º, 2º, 3º). (2007, p. 13)


Considerações finais

Atualmente, em meio a uma crise de parâmetros generalizada, o Direito se vê desafiado a se reformular e reconstruir constantemente para atender às necessidades de uma sociedade cuja velocidade de mudança nunca foi tão grande. Viver a Constituição nesse contexto representa captar as complexas etapas que envolvem o processo constitucional. É fundamental que a sociedade para a qual se destina a norma pense, discuta e participe desse processo, a fim de que o Direito não perca seu propósito e se esvazie numa burocracia mecânica, uma vez que não pode e não deve sobrepor-se ao direito legítimo que tem a sociedade de ser ouvida acerca do conteúdo do processo (democrático, ressalte-se) de tomada de decisão, haja vista ser o texto constitucional uma representação também do complexo de forças sociais que atuam como sujeitos do processo de interpretação constitucional.

É preciso reconstruir o espaço público, no conceito de Hannah ARENDT, como aquele espaço de discussão de questões que afetam a todos. Participar politicamente de forma democrática significa pensar o tempo em que se vive, resgatando o sentido de senso comunitário e debatendo questões de interesse comum.

Entender e participar do processo constitucional constitui premissa básica à construção de um Estado Constitucional, justo e democrático, daí a necessidade de se debater o processo, procurando descobrir como pode ser aprimorado para que o Direito não se torne hermético e burocrático, mas, antes, possa refletir de modo transparente a sociedade que regula.


Referências bibliográficas

ANJOS, Luís Henrique Martins dos. A interpretação da Constituição enquanto técnica de julgamento do Supremo Tribunal Federal. Porto Alegre. Disponível em: <http://www.google.com.br/search?hl=pt BR&q=A+Interpreta%C3%A7%C3%A3o+conforme+a+Constitui%C3%A7%C3%A3o+enqanto+t%C3%A9cnica+de+julgamento+do+Supremo+Tribunal+Federal&meta=>. Acesso em: 06 ago. 2008.

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10a ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001

BINENBOJM, Gustavo. A dimensão do amicus curiae no processo constitucional brasileiro: requisitos, poderes processuais e aplicabilidade no âmbito estadual. Distrito Federal: Revista da Associação dos Juízes Federais do Brasil, v. 22, n. 78, p. 141-166, dez. 2004.

BRASIL. Constituição (1988). Brasília, 05 out. 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 06 ago. 2008.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 1991.

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COELHO, Inocêncio Mártires. As idéias de Peter Häberle e a abertura da interpretação constitucional no Direito brasileiro. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 35, n. 137, p. 157-164, mar. 1998.

GONTIJO, André Pires. A construção do processo constitucional no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Revista Jurídica, Brasília, v. 9, n. 88, p. 01-16. Disponível em <http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2330>. Acesso em: 07 ago. 2008.

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HUMBERT, Georges Louis Hage. A moderna hermenêutica Constitucional II: resenhando a "Sociedade dos Intérpretes" de Peter Haberle. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1179, 23 set. 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/8944>. Acesso em: 08 ago. 2008 .

SILVA, José Afonso da. El proceso constitucional. In: BAZÁN, Víctor (Org.). Defensa de La Constitución: garantismo y controles. Buenos Aires: Ediar, 2003.


Nota

[1] A idéia de “liquidez” para se tratar da incerteza conceitual decorrente da pós-modernidade foi formulada pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman e discutida em grande parte de suas obras, entre elas “Vida Líquida”, “Amor Líquido”, “Medo Líquido” e “Tempos Líquidos”, por exemplo. Bauman tornou-se conhecido por suas análises sobre o Holocausto e o consumismo pós-moderno.

Sobre a autora
Renata Silva Ferro Soares

Advogada, graduada pela Universidade Candido Mendes (Rio de Janeiro -RJ) e professora da disciplina de Direito Processual Civil das Faculdades Unificadas de Foz do Iguaçu (Foz do Iguaçu - PR).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOARES, Renata Silva Ferro. A construção do processo constitucional brasileiro: uma visão crítica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3617, 27 mai. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24535. Acesso em: 22 dez. 2024.

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