Introdução
Não é nova a certeza de que o Direito visa assegurar a coexistência pacífica entre os homens, de modo que desde que o homem sai do seu estado de natureza e passa a viver em sociedade, fez-se necessário a existência de uma ordem normativa - entenda-se como uma ordem que se impõe através de imperativos legais sob pena de sanções – que impeça a guerra de todos contra todos, valorando determinados bens tidos como indispensáveis para a coexistência social, e impondo jurígenos efeitos às condutas que atentarem contra tais bens, de forma que cada um tenha a cognição de que seu direito se estende até onde não viola o de outrem.
Conforme Zaffaroni e Pierangeli[1],
a função de garantia de coexistência se cumprirá na medida em que se garanta a cada um a possibilidade de dispor – de usar – o que considere necessário para a sua auto-realização.” Temos, então, que pode-se denominar determinado ato humano de “ilícito”, na medida em que tal conduta venha a causar uma violação a um bem juridicamente tutelado por qualquer dos ramos das ciências jurídicas, porquanto causa a outrem empecilho ou até mesmo impossibilidade da fruição normal de tal bem.
Assim, nem toda conduta humana contrária ao direito [antijurídica lato sensu] pode ser denominada um “delito”, embora possa ser afirmado que todo delito é uma conduta antijurídica. Neste esteio de raciocínio, pode-se, ainda, afirmar que toda conduta revés ao direito sofrerá, de alguma forma, uma reprimenda, uma conseqüência jurídica para o “entre humano violador”, e que, dependendo do paradigma que se observa à lesão a este bem se estabelecerá qual ou quais ramos do direito serão responsáveis pela tutela, ou melhor, pelo sancionamento da conduta; se civil, administrativa ou penal.
A lei penal distingue-se das demais existentes nos ordenamentos jurídicos mundiais posto que é a única que faz uma correlação, associação entre infração penal [delito] a uma coerção penal, que, na sua maioria das vezes, exterioriza-se em uma pena.
O Direito Penal, então, busca tutelar bens jurídicos de uma forma essencialmente única e residual, porquanto tais bens podem se encontrar já devidamente tutelados por outros ramos jurídicos e, apesar disto, as sanções extra penais previstas [ressarcimento e/ou reparação] não se fazem suficientes para promover a segurança jurídica almejada.
Em síntese, temos que:
[...] o direito penal tem, como caráter diferenciador, o de procurar cumprir a função de prover à segurança jurídica mediante a coerção penal, e esta, por sua vez, se distingue das restantes coerções jurídicas, porque aspira assumir um caráter especificamente preventivo ou particularmente reparador[2].
O século passado foi marcado por vários fenômenos[3] que, aliados, refletiram-se diretamente na forma de organização da sociedade mundial, e esta pôs em prova o papel dos Estados Nacionais enquanto garantidores da paz, mediante a justiça social. E o Direito Penal ocupa lugar de destaque no que diz respeito à atuação do Estado nesta nova “ordem mundial”.
O que importa ressaltar é que na sociedade contemporânea, a globalização econômica dinamizou as relações sociais criando novas realidades, e ao lado destas novas realidades surgiram novas demandas para que determinados bens passem a reclamar uma proteção jurídico-penal, outrora inexistente.
Conforme Sánchez[4],
[...] a sociedade atual parece caracterizada, basicamente, por um âmbito econômico rapidamente variante e pelo aparecimento de avanços tecnológicos sem paralelo em toda a história da humanidade. O extraordinário desenvolvimento da técnica teve, e continua tendo, obviamente, repercussões diretas em um incremento do bem-estar individual.[...] O progresso técnico dá lugar, no âmbito da delinqüência dolosa tradicional [a cometida com dolo direto ou de primeiro grau], a adoção de novas técnicas como instrumento que lhe permite produzir resultados especialmente lesivos; assim mesmo, surgem modalidades delitivas dolosas de novo cunho que se projetam sobre os espaços abertos pela tecnologia. [...] Nessa medida, é inegável a vinculação do progresso técnico e o desenvolvimento das formas de criminalidade econômica organizada, que operam internacionalmente e constituem claramente um dos novos riscos para os indivíduos (e os Estados).
Essa nova demanda de amparo jurídico penal não se limita ao âmbito interno do Estado; em uma sociedade global, os bens tendem a possuir amplitude mundial e sua defesa só será eficiente na medida em que o Estado possua meios efetivos de garantia destes, em âmbito, também, mundializador.
O traço marcante da mudança paradigmática do papel do Direito Penal sociedade contemporânea é a
alteração progressiva na concepção do Direito Penal subjetivo (ius puniendi): de uma situação em que se destacava sobretudo “a espada do Estado contra o delinqüente desvalido”, se passa a uma interpretação do mesmo como “a espada da sociedade contra a delinqüência dos poderosos. Isso provoca uma transformação conseqüente também no âmbito do Direito Penal objetivo (jus penale): em concreto, se tende a perder a visão desde como instrumento de defesa dos cidadãos diante da intervenção coativa do Estado. E, desse modo, a concepção da lei penal como “Magna Charta” da vítima aparece junto à “Magna Charta” do delinqüente; e isso sem prejuízo de que esta última possa ceder prioridade àquela.[5]
Sánchez[6] demonstra esta necessidade na medida em que,
o momento atual, em suma, o tema no debate social não é a criminalidade dos despossuídos, letmotiv da doutrina penal durante todo o século XIX e boa parte o séc. XX, senão, preponderantemente, a criminalidade dos poderosos e das empresas (crimes of the powerful – corporate and business crime). [...] Daí a aposta, por uma expansão do Direito Penal, que conglobe a relativização dos princípios de garantia e regras de imputação no âmbito da criminalidade dos poderosos, sendo criticável em si mesma, pode incorrer ademais no erro adicional de repercutir sobre a criminalidade em geral, incluída a dos powerless, algo que aparentemente se ignora na hora de propor reformas antigarantistas.
Seria perfunctório afirmar, categoricamente, que os processos globalizantes que atuaram na forma de organização da sociedade, da política e da economia foram essencialmente negativos. Sem dúvida, há pontos positivos importantes que merecem ser desvelados, porém, a mudança do modelo panóptico para o modelo sinóptico de poder trouxe algumas alterações positivas, dentre as quais se destaca a mudança do enfoque de uma considerável parte da criminologia de esquerda em reconhecer que os sujeitos das classes inferiores da sociedade também são titulares reais de bens jurídicos – aqui destacam-se os direitos difusos e coletivos - e que, hodiernamente, tais indivíduos afiguram-se muito mais como vítimas em potencial do que como sujeitos em potencial.
A observação de Franco[7] é esclarecedora ao dizer que
os deletérios efeitos da globalização da economia, centrada nas regras do fundamentalismo do mercado, não fecharam, contudo, todos os espaços de reação, nem tolheram a possibilidade de encontrar saídas. [...] Os estados periféricos e, portanto, os menos poderosos do ponto de vista econômico, não querem perder as eventuais vantagens da globalização, mas não querem ser, por ela, absorvidos, nem irremediavelmente sugados. [...] É evidente que nesta perspectiva, os direitos fundamentais e, com eles também, os direitos sociais – que os Estados-nações, isoladamente, se decuram na atualidade, deixando por falta um adequado sistema de garantias, de prestá-los positivamente – terão condições de encontrar um campo mais largo de garantia “fora do velho esquema estatista, mesmo contra os próprios Estados. Essa é a chance, criada pelo processo globalizador e que nenhum defensor dos direitos humanos fundamentais e dos direitos sociais pode desperdiçar.
Assim, os únicos gestores da moral coletiva do mundo moderno, tradicionalmente impregnados de preconceitos burgueses-conservadores dividem espaço, com equilíbrio de forças, no mundo contemporâneo, com as associações ecológicas, de consumidores, feministas, de vizinhos, de bairro, pacifistas – as ONGs em geral – que buscam protestar contra a violação dos direitos humanos, em desfavor das classes menos favorecidas economicamente; uma força de pressão importantíssima para a ampliação do Direito Penal Internacional para a tutela dos seus interesses.
Outrossim, é reconhecida a necessidade urgente de proteção das camadas mais inferiores, e até mesmo da classe média, contra a delinqüência dos poderosos. Importante a lição de Sanchez[8] quando diz que a correlação única entre a delinqüência e o proletariado se mostra absurda no mundo contemporâneo, de forma que esta classe, outrora “perigosa e merecedora de uma constante vigilância” é que reclama uma maior proteção, frente à criminalidade dos poderosos.
O Guia Legislativo para a Aplicação da Convenção das Nações Unidas Contra a Criminalidade Econômica Organizada Transnacional[9] é bem esclarecedor de todo este problema ao dizer que,
num clima de crescente preocupação com grupos e operações de criminalidade econômica organizada que ultrapassam as fronteiras nacionais, um número cada vez maior de países tem vindo a estudar a adoptar novas leis, medidas e estratégias para fazer face a este problema. Quanto aos autores, as vítimas e os instrumentos ou produtos do crime se localizam ou atravessam a diversas jurisdições, a abordagem tradicional dos serviços responsáveis pela aplicação da lei, centrada apenas a nível nacional, acaba inevitavelmente frustrada. Quando os criminosos são cosmopolitas, as intervenções não podem ser meramente provinciais. Quando os tipos de crimes transnacionais e o número de associações criminosas parece estar a aumentar, nenhum país fica imune, pelo o que os Estados tendem a auxiliar-se mutuamente na luta contra esses delitos sofisticados e perigosos. Quando os rápidos progressos tecnológicos e uma impressionante mobilidade de pessoas, bens e capitais são aproveitados por criminosos hábeis, que agem sozinhos ou, mais perigoso ainda, em associação com outros, a aplicação da lei não pode ficar para trás. [...] A abundância de meios dos grupos criminosos a influência que estes podem exercer comprometem os processos políticos, as instituições democráticas, os programas sociais, o desenvolvimento econômico e os direitos humanos. As vítimas e testemunhas sentem-se intimidadas e duplamente vitimizadas, caso não seja feita justiça. A mensagem que passa para a opinião pública é a de que determinados crimes compensam, mesmo que os infractores sejam apanhados e punidos com as penas adequadas.
E continua, mostrando a deficiência dos Estados Nacionais no combate eficaz da criminalidade transfronteiriça organizada, dizendo que,
os acordos e medidas bilaterais e regionais reflectem a consciência de que a criminalidade transnacional apenas pode ser combatida eficazmente através da colaboração e assistência mútua dos serviços de aplicação da lei dos Estados envolvidos ou afectados. Medidas pontuais, tratados de auxílio judiciário e tratados de extradição podem dar um contributo e apresentar alguns resultados positivos, mas são insuficientes perante os desafios atuais.[10]
Conceito de Crime Organizado no Direito Comparado
Na França, o crime organizado é definido como uma associação de malfeitores; é todo grupo formado ou que tende a se estabelecer com vistas à preparação, caracterizada por um ou mais fatos materiais, de um ou vários crimes ou de vários delitos puníveis com o mínimo de cinco anos de prisão[11].
Na Federação Russa, considera-se crime organizado no caso em que for perpetrado por um grupo [ou organização] coeso e organizado, criado para a prática de crimes graves ou especialmente graves ou resultante da combinação de grupos organizados para o mesmo fim.[12]
O Código Penal Polaco, em seu art. 258, define o crime organizado como o que advém da participação em um grupo organizado ou associação que tenha finalidade prática de infrações.
No Código Criminal Canadense[13], o crime organizado está intimamente ligado à noção de “conspiração”, presente nos ordenamentos jurídico-penais em que se aplica a commom law, preconizando que,
467.1 [...] “organização criminosa” compreende-se o grupo, qualquer que seja a forma de sua organização, que:
(a) é composta por três ou mais pessoas que se encontrem no Canadá ou no estrangeiro; e
(b) tenha um dos seus propósitos principais ou atividades principais a facilitação ou a prática de uma ou mais sérias ofensas que, uma vez cometidas, resultariam direta ou indiretamente, no proveito material, incluindo o proveito financeiro pelo grupo ou por qualquer membro que faça parte do grupo.
No Código Norte-Americano[14], a conceituação de crime organizado é a seguinte:
Sec. 371 [Conspiração para cometer infração ou defraudar os Estados Unidos]. Se duas ou mais pessoas conspirarem, conjuntamente, para cometer qualquer ofensa contra os Estados Unidos, para defraudar os Estados Unidos ou qualquer de suas agências seja de que maneira for e por qualquer propósito, e uma ou mais pessoas ajam tendo em vista alcançar o objetivo da conspiração, a cada uma delas será aplicada uma multa sob a égide deste artigo ou a pena de prisão não por mais de cinco anos, ou ambas as penas. Se, contudo, a infração, cuja prática seja objeto da conspiração, constitua apenas uma contra-ordenação, a pena aplicável à conspiração não excederá a pena máxima aplicada à contra-ordenação em causa.
Sec. 1962 [Atividades Proibidas].
(a) Será ilegal que qualquer pessoa tenha recebido qualquer rendimento derivado, direta ou indiretamente, de uma atividade regular de extorsão ou da coleta de uma dívida ilegal em que tal pessoa tenha participado a título principal na acepção da seção 2, do Título 18, do Código dos Estados Unidos, utilize ou invista, direta ou indiretamente, qualquer parte deste rendimento, ou dividendos deste rendimento, na aquisição de qualquer participação ou no estabelecimento ou operação de qualquer empresa envolvida ou cujas atividades afetem o comércio estadual ou internacional. A aquisição de títulos imobiliários no mercado aberto para fins de investimento, e sem intenção de controlar ou participar no controle da entidade emissora, ou de ajudar alguém a fazê-lo, não será considerada ilegal nos termos da presente subseção caso os títulos imobiliários da entidade emissora detidos pelo comprador, membros da sua família imediata e seus cúmplices em qualquer atividade regular de extorsão ou coleta ilegal não totalizem, no seu conjunto, um por cento dos valores imobiliários remanescentes de qualquer classe e não confiram, legalmente ou na prática, o poder de eleger um ou mais diretores da entidade emissora.
(b) Será ilegal que qualquer pessoa, através de uma atividade regular de extorsão ou através da coleta de uma dívida ilegal, adquira ou mantenha, direta ou indiretamente, qualquer participação ou controle em qualquer empresa envolvida, ou cujas atividades possam afetar o comércio interno e internacional.
(c) Será ilegal que a pessoa ou serviço de qualquer empresa envolvida, ou cujas atividades possam afetar o comércio interestadual ou interno, ou a ela associada, dirija ou participe, direta ou indiretamente, na direção dos negócios desta empresa, através de uma atividade regular de extorsão ou de coleta de dívidas ilegais.
(d) Será ilegal que qualquer pessoa conspire a fim de violar quaisquer das disposições contidas nas subseções [a], [b] ou [c], da presente seção.
De acordo com as informações trazidas pelo Guia Legislativo para a Aplicação da Convenção das Nações Unidas Contra a Criminalidade Econômica Organizada Transnacional[15]:
o Chile criminaliza até a não comunicação das atividades de uma organização criminosa às autoridades [excepto se um membro da organização for familiar da pessoa em causa].
A Nova Zelândia não exige a qualidade de membro da organização criminosa, mas apenas a promoção ou o favorecimento internacional de suas atividades.
Vários países tipificaram atividades específicas relativas a diversas formas de prestação de assistência ou apoio financeiro a uma organização criminosa [por exemplo, o Equador, a Colômbia, a Alemanha, o Uruguai e a Venezuela]. Algumas leis visam os indivíduos que fornecem à organização armas ou munições [por exemplo, o Equador, o Haiti, a Colômbia, a Hungria, o Paraguai, o Uruguai e a Venezuela], instrumentos do crime [por exemplo, o Haiti], locais de reunião [por exemplo, o Equador], ou qualquer outro serviço [por exemplo, o Equador e o Paraguai]. [...] em diversos países, a participação numa organização de relativamente grandes dimensões constitui circunstância agravante: Itália e Uruguai.
No Primeiro simpósio[16] organizado em nível mundial pela Interpol, ficou definido que se constituía uma organização criminosa qualquer empresa ou grupo de pessoas engajados em uma atividade ilegal contínua, que tem como objetivos principais a geração de lucros, independentemente das fronteiras nacionais.
Posteriormente, a Interpol, através da sua Unidade Contra o Crime Organizado, redefiniu tal conceito preconizando que há o crime organizado quando qualquer grupo, que tenha uma estrutura corporativa, tenha o objetivo principal de obter dinheiro por meio de atividades ilícitas, freqüentemente mantido por força da intimidação[17].
De acordo com anexo I, artigo 2, do relatório da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional[18], executado em Palermo, na Itália, entre os dias 12 e 15 de dezembro de 2000, uma organização criminosa pode ser conceituada como:
um grupo estruturado de três ou mais pessoas, com caráter de permanência, que age com o objetivo de cometer um ou mais crimes sérios ou ofensas estabelecidas de acordo com esta Convenção, com o objetivo de obter, direta ou indiretamente, benefícios financeiros ou materiais.
De acordo com o Fundo Nacional Suíço de Pesquisa Científica[19]:
Existe crime organizado [transcontinental] quando uma organização cujo funcionamento é semelhante a uma empresa internacional pratica uma divisão muito aprofundada de tarefas, dispõe de estruturas hermeticamente fechadas, concebidas de maneira metódica e duradoura, e procura obter lucros tão elevados quanto possível cometendo infrações e participando da economia legal. Para isso, a organização recorre à violência, à intimidação, e tenta exercer a sua influência na política e na economia. Ela apresenta geralmente uma estrutura fortemente hierarquizada e dispõe de mecanismos eficazes para impor suas regras internas. Seus protagonistas, além disso, podem ser facilmente substituídos.