5 A EC 62/2009 e o instituto do precatório frente ao Estado Democrático de Direito
A vida em sociedade traz a necessidade da existência de um Estado regulador, que resguarde garantias e estabeleça obrigações. O produto da evolução histórica do Estado, nestes termos, nos trouxe à atual situação jurídica a que chamamos de “Estado de Direito”. Neste Estado de Direito em que vigora o chamado "Império da Lei", o Governo também está adstrito ao cumprimento das leis por ele mesmo impostas.
Como meio de garantir a manutenção dessa forma de Estado, Montesquieu, em sua famosa obra “O Espírito das Leis”, sistematizou a contemplada teoria da separação dos poderes. À época, já referenciava o nobre jurista que:
Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura o Poder Legislativo está reunido ao Poder Executivo, não existe liberdade, pois pode-se temer que o mesmo monarca ou o mesmo Senado apenas estabeleçam leis tirânicas para executá-las tranqüilamente. Se estivesse ligado ao Poder Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse ligado ao Poder Executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos príncipes ou dos nobres, ou do povo, exercesse os três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos.[26]
[...]
Todo homem que tem poder é tentado a abusar dele, vai até onde encontra limites.[27]
Assim, com o reconhecimento de que o governo também possui obrigações e responsabilidades, cumpre ao Poder Legislativo estipular quais são os direitos e deveres do Estado, ao Poder Executivo, administrá-los e, ao Poder Judiciário, resguardar estes direitos e deveres, permitindo a todos o acesso à justiça. Garantindo-se o acesso indiscriminado à justiça, chegamos então ao Estado Democrático de Direito.
Para Inocêncio Mártires Coelho[28]
[...] entende-se como Estado Democrático de Direito a organização política em que o poder emana do povo, que o exerce diretamente ou por meio de representantes, escolhidos em eleições livres e periódicas, mediante sufrágio universal e voto direto e secreto, para o exercício de mandatos periódicos, como proclama, entre outras, a Constituição brasileira. Mais ainda, já agora no plano das relações concretas entre o Poder e o indivíduo, considera-se democrático aquele Estado de Direito que se empenha em assegurar aos seus cidadãos o exercício efetivo não somente dos direitos civis e políticos, mas também e sobretudo dos direitos econômicos, sociais e culturais, sem os quais de nada valeria a solene proclamação daqueles direitos.
Logo, o Estado Constitucional deve estar atrelado aos princípios que o regem, não podendo destes se desviar, sob pena de findar-se a Democracia e voltar-se ao Estado de Império, onde o governo tudo pode.
Neste sentido, a brilhante doutrina de Norberto Bobbio[29]:
[...] o Estado moderno, liberal e democrático, em relação ao Estado absoluto. Esse nascimento, que tem como fases culminantes as duas revoluções do século XVII e a Revolução Francesa, foi acompanhado por teorias políticas, cujo propósito fundamental foi o de encontrar um remédio contra o absolutismo do poder do príncipe. Na tradição do pensamento político inglês, que oferece a maior contribuição para a solução desse problema, dá-se o nome específico de ‘constitucionalismo’ ao conjunto de movimentos que lutam contra o abuso do poder estatal.
Portanto, é notável que desde os primórdios do constitucionalismo é necessário impor limites também ao Estado, para que a “máquina estatal” funcione corretamente.
Leciona Lúcio Delfino[30] que:
Para além de um mero papel de ordenação, o Direito passa a assumir função de transformação da realidade social. Essa noção de Estado se acopla, pois, ao conteúdo material da Constituição, através dos valores substantivos que apontam para uma mudança do status quo da sociedade, servindo-se a lei de instrumento voltado à ação estatal na busca do desiderato apontado pelo texto constitucional, entendido no seu todo dirigente-valorativo-principiológico.
Assim, cumprindo com sua função constitucional, o Estado tem responsabilidade diante da sociedade, sendo sujeito de direitos e obrigações. Portanto, deve o Estado cumprir com suas obrigações, dentre elas, pagar as dívidas adquiridas pela Administração Pública, não podendo valer-se de suas prerrogativas para furtar-se desse dever, sob pena de sucumbir o constitucionalismo e voltar-se ao Estado Imperial, onde não há que se falar em democracia ou igualdade, tampouco em Direito como o conhecemos.
Quando o Governo não consegue cumprir com os seus deveres, de forma que deixa de prestar as garantias fundamentais aos seus governados, como é o que acontece no Brasil hodiernamente quanto ao inadimplemento da Dívida Pública, coloca em risco toda a base do Estado lato senso.
O instituto dos precatórios é um preocupante indício de incapacidade de controle do Estado sobre seus próprios atos, no caso, os gastos públicos, uma vez que foi necessário criar-se medidas para postergar o pagamento da dívida da Administração Pública, pois esta não estaria em equilíbrio financeiro entre receitas e gastos suficiente para quitá-la.
Ademais, desde a instituição deste meio de pagamento, que deveria ser transitório, mas não o é, a dívida da Fazenda Pública só aumentou, chegando à condição preocupante dos dias atuais.
Neste sentido, importante lição de Cezar Saldanha Souza Júnior[31]:
O constituinte pensou que, colocando na Constituição uma relação de tarefas a executar e prevendo instrumentos judiciários para dar-lhes eficácia, resolveria nossos problemas. Na verdade, o direito não pode substituir a política. Se o constituinte, ele próprio, não pode resolver os nossos problemas de uma penada, menos ainda pode obrigar qualquer dos poderes constituídos, ou os três, a resolvê-los.
O instituto do precatório destoa inteiramente dos princípios basilares do Estado atual, tal como citado pelo autor e como o conhecemos, incorrendo em grave ameaça à manutenção da paz social e do Estado de Direito.
Outro fator preocupante é quanto à moralidade do Estado, na medida em que fazemos o seguinte questionamento: se o governo não paga suas dívidas, por que os cidadãos devem pagar? A função social do Estado não se compatibiliza com o seu descrédito.
Vale aqui trazer um trecho da doutrina de Norberto Bobbio, no que diz respeito ao nascimento do Estado moderno, liberal e democrático, em relação ao Estado absoluto[32]:
Esse nascimento, que tem como fases culminantes as duas revoluções do século XVII e a Revolução Francesa, foi acompanhado por teorias políticas, cujo propósito fundamental foi o de encontrar um remédio contra o absolutismo do poder do príncipe. Na tradição do pensamento político inglês, que oferece a maior contribuição para a solução desse problema, dá-se o nome específico de ‘constitucionalismo’ ao conjunto de movimentos que lutam contra o abuso do poder estatal.[33]
Daí extrai-se a grande incoerência do instituto com o ordenamento jurídico pátrio, haja vista que neste impera o constitucionalismo sob os pilares do Estado Democrático de Direito, pois não se trata de uma ordem para que a Fazenda Pública cumpra a decisão, mas tão somente de uma simples requisição ao poder público, para que este inclua o débito em suas contas e o pague quando puder, ou quando lhe convier.
5.1 A esterilização do acesso à justiça
Submeter precatórios decorrentes de processos judiciais transitados em julgado antes do advento das emendas constitucionais ao regime de parcelamento instituído pelas mesmas, representa grave violação ao direito adquirido e ao princípio da não-surpresa e, como consequência imanente, à segurança jurídica.
Ademais, violada resta, da mesma forma, a coisa julgada material oriunda do trânsito em julgado da sentença condenatória, tendo em vista que esta determinou o pagamento integral da quantia através do mecanismo do precatório judicial. Desta feita, a modificação do título executivo acarreta a quebra da força da coisa julgada formada quando do trânsito em julgado.
A sentença não deve somente dizer o direito, mas deve também impor a sua satisfação quando devida, não podendo ser relativizada a coisa julgada.
Neste sentido, ensina Luiz Guilherme Marinoni[34]:
Como garantia de acesso à ordem jurídica justa, consubstanciada em uma prestação jurisdicional célere, adequada e eficaz. O direito à sentença deve ser visto como direito ao provimento e aos meios executivos capazes de dar efetividade ao direito substancial, o que significa o direito à efetividade em sentido estrito.
O acesso à justiça é pressuposto essencial do Estado Constitucional.
Um exemplo de falha quanto ao acesso à justiça, ocasionada pelo regime de precatórios, é a situação de uma empresa que pode falir, mesmo tendo créditos devidos pelo Estado, os quais se fossem pagos, evitariam a falência.
Interligado ao acesso à justiça, está o princípio da duração razoável do processo, que determina que o processo deva durar o tempo necessário para que se permita lhe sejam aplicadas todas as garantias de defesa, para que ao final represente a melhor forma de justiça, mas também deve estar vinculado à sua efetividade, ou seja, deve terminar antes que o direito se perca no tempo, ou seja, antes que a decisão, mesmo favorável a uma parte, não lhe represente mais eficácia. E ainda, que a decisão produza efeitos.
É o que ensina Vicente de Paula Ataíde Júnior[35]
É importante perceber que a duração razoável do processo deve abranger não só a produção de decisões, mas também o seu cumprimento. Concebendo-se, hoje, que o direito de ação não corresponde apenas à obtenção de uma sentença de mérito, mas, sobretudo, à obtenção do bem da vida que corresponda ao direito material reconhecido, o processo com duração razoável passa a ser entendido como aquele que fornece o resultado concreto em tempo razoável.
No caso dos precatórios, alguns direitos que foram sonegados há mais de duas décadas, não foram pagos até hoje. E com o advento de mais uma possibilidade de postergação do pagamento, em determinado período de tempo já não mais produzirá o resultado necessário, qual seja, a satisfação do direito – personalíssimo – da parte, que talvez não sobreviva o suficiente para receber o que o Estado um dia lhe retirou. E então estaremos também diante da ofensa ao pilar dos princípios, o da dignidade da pessoa humana.
CONCLUSÃO
O que se buscou no presente estudo, em linhas gerais, foi realizar uma análise sistêmica do instituto do precatório. E através da análise desse instituto e suas implicações, verificou-se a sua desarmonia com os princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito.
Assim, a constitucionalização do instituto do precatório abriu espaço para que o pagamento da dívida pública pelo Governo fique condicionado tão somente ao seu arbítrio, não havendo meio de constringi-lo ao adimplemento.
Diante disso, questiona-se a institucionalização deste meio de pagamento perante a eficácia da sentença judicial transitada em julgado contra o Estado, uma vez que esta ficaria limitada a declarar o direito, sem poder satisfazê-lo.
Vale registrar que o instituto do precatório só existe no ordenamento jurídico brasileiro, tratando-se de criação exclusivamente nacional, que deveria ser transitória, mas de fato, nada tem de medida transitória, pois continuam a se criar precatórios, sem limites fixados, com a agravante dos juros e correções agregados aos valores devidos ao longo do tempo em que não são quitados.
A EC 62/2009 resultou em mais uma medida inexitosa do poder constituinte para tentar resolver a problemática instituída pela própria Constituição de 1988, qual seja, a do inadimplemento dos precatórios.
De fato, a sentença judicial transitada em julgado deve ser cumprida, de modo que satisfeita a obrigação a que o credor tinha direito, pois esta é a finalidade do processo, e não outra. Uma vez não satisfeita voluntariamente a obrigação, deve o Poder Judiciário impor o cumprimento desta, através das medidas cabíveis, mesmo quando a executada for a Fazenda Pública. Não pode o governante optar entre utilizar as finanças públicas como bem queira ou realizar um direito humano fundamental.
Neste sentido, a importante explanação de Pontes de Miranda[36]:
O Direito é; mas a medida do seu ser é dada pela sua realização. Tal realização, ou ocorre pela observância espontânea, ou pelos aparelhos do Estado, tendentes a isso, às vezes criados para isso, como é o da Justiça.
Quando se retira a efetividade da decisão judicial, limitando-se o Poder Judiciário a fazer simples requisição para o pagamento, sem que possa por fim ao processo, satisfazendo o crédito, está-se diante de grave afronta ao principio da separação dos poderes.
A Constituição é a lei máxima do país, não podendo de forma alguma se contradizer ou promover qualquer espécie de incoerência. A Constituição que garante os direitos dos cidadãos, não pode retirar destes o acesso a justiça.
Por final, vale citar os dizeres de Montesquieu, que perfeitamente aplicáveis à realidade atual:
Para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder. Uma constituição pode ser de tal modo, que ninguém será constrangido a fazer coisas que a lei não obriga e não fazer as que a lei permite.[37]
A Constituição Federal não pode de maneira alguma violar seus próprios princípios, inviabilizando o acesso à justiça ou interferindo na separação dos poderes. Nesta perspectiva, conclui-se que o instituto dos precatórios do pagamento das dívidas da Administração Pública, tal como esta regrado na Constituição da República, sobretudo pela sistemática de pagamento instituída pela Emenda Constitucional nº 62, de 2009, está em manifesto descompasso com os princípios do Estado Democrático de Direito.