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Cidade grande, mundo de estranhos: Escola de Chicago e “comunidades guarda-roupa”

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Agenda 04/07/2013 às 09:35

4 COMUNIDADES “GUARDA-ROUPA”

Fugimos prás grandes cidades, bichos do mato em busca do mito 

De uma nova sociedade, escravos de um novo rito 

Mas se tudo deu errado, quem é que vai pagar por isso? [13]

Os comentários sobre a Escola de Chicago e o pensamento de Bauman, bem como a alusão a algumas obras musicais que se referem aos mesmos sentimentos analisados pelos teóricos mencionados, demonstraram como o ser humano isola-se e sente-se isolado.

 Apesar da sensação de medo, impelir ao recolhimento e adoção de inúmeras medidas de defesa, ainda pesa sobre todos o desejo de sentir-se parte de algo, acolhido, em comunhão. “O medo do desconhecido – no qual mesmo que subliminarmente estamos envolvidos – busca desesperadamente algum tipo de alívio” (BAUMAN, 2009, p. 37).

 Ao mesmo tempo em que cresce o individualismo e o isolamento, busca-se o alívio da verdadeira comunidade, familiar, espiritual, ou outras, mas agora em comunidades “virtuais”, passageiras, transitórias, como tudo na modernidade líquida. O medo da comunhão, convive com a procura de identificação, é o que Bauman designou como “mixofobia”: “a mixofobia se manifesta como impulso em direção a ilhas de identidade e semelhança espalhadas no grande mar da variedade e da diferença” (BAUMAN, 2009, p. 44).

 Ausente a intimidade e a identidade dos laços verdadeiros, formam-se simulacros de tais laços, conforme pontua Bauman:

Lugares em que o sentimento de pertencimento era tradicionalmente investido (trabalho, família, vizinhança) são indisponíveis ou indignos de confiança, de modo que é improvável que façam calar a sede por convívio ou aplaquem o medo da solidão e do abandono. Daí a crescente demanda pelo que poderíamos chamar de ‘comunidades guarda-roupa’ – invocadas a existirem, ainda que apenas na aparência, por pendurarem os problemas individuais, como fazem os frequentadores de teatros, em uma sala. Qualquer evento espetacular ou escandaloso pode se tornar um pretexto para fazê-lo: um novo inimigo público elevado à posição de número 1; uma empolgante partida de futebol; um crime particularmente ‘fotogênico’, inteligente ou cruel; a primeira sessão de um filme altamente badalado; ou o casamento, divórcio ou infortúnio de uma celebridade altamente em evidência. As comunidades guarda-roupa são reunidas enquanto dura o espetáculo e prontamente desfeitas quando os espectadores apanham os seus casacos nos cabides. Suas vantagens em elação à ‘coisa genuína’ são precisamente a curta duração de seu ciclo de vida e a precariedade do compromisso necessário para ingressar nelas e (embora por breve tempo) aproveita-las. Mas elas diferem da sonhada comunidade calorosa e solidária da mesma forma que as cópias em massa vendidas nas lojas de departamentos diferem dos originais produzidos pela alta-costura... Quando a qualidade o deixa na mão ou não está disponível, você tende a procurar a redenção na quantidade. (BAUMAN, 2005. p. 37)

  É possível observar o funcionamento das “comunidades guarda-roupa”, na atenção e torcida prestada por telespectadores, aos mais variados tipo de reality shows, oferecidos pelas redes de televisão. Também podem ser observadas em programas de auditório em que pessoas comparecem e relatam fato, dramas e sentimentos extremamente íntimos, expondo-os para que sejam comentados por profissionais da área do Direito ou da Psicologia, mas principalmente pela própria audiência e plateia da desgraça alheia.

 Luiz Felipe Pondé, em obra declaradamente irônica, discorre sobre a democracia, afirmando que uma de suas características problemáticas seria ter criado um “vocação tagarela”, que leva as pessoas a se julgarem capazes de opinar sobre tudo. “No lugar do conhecimento, a democracia criou a opinião pública” (PONDÉ, 2012, p. 51).

 É como se a observação das tristezas alheias proporcionasse algum alívio às tristezas de cada um. “Em algum ponto do caminho, a amizade e a solidariedade, outrora importantes componentes da construção comunitária, tornaram-se inconsistentes e frágeis demais ou ralas demais para o objetivo [...]. O mundo contemporâneo é um recipiente cheio até a borda de medo e frustração à solta que buscam desesperadamente válvulas de escape” (BAUMAN, 2000, p. 22).

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  Porém, a identificação com o problema enfrentado por um outro indivíduo ou outra família, estampados nas revistas ou televisão, é momentâneo, não gerando qualquer responsabilidade a ser assumida, não desencadeando o compromisso em colaborar para a solução da questão: “cada um com os seus problemas”. Bauman (2000, p. 11) também se refere a tais situações como oportunidades de extravasão:

Oportunidades de extravasão surgem por vezes em festivais de compaixão e caridade, às vezes em eclosões de agressão acumulada contra um inimigo público recém-descoberto, outras em um acontecimento no qual a maioria das pessoas se sentem fortemente envolvida ao mesmo tempo e que portanto sincroniza sua alegria, como no caso da seleção nacional que ganha uma Copa do Mundo, ou sua tristeza, como no caso da morte trágica da princesa Diana. O problema com todas essas oportunidades é que elas perdem força rapidamente; assim que voltamos às questões rotineiras do nosso dia-a-dia, as coisas também retornam, inalteradas, ao ponto inicial. E quando o lampejo de união se extingue, os solitários acordam tão solitários quanto antes. (grifo nosso)

 Os cidadãos da atualidade perderam a capacidade de manter discussões públicas, preferindo algo que é muito diferente, as discussões meramente travadas em público. Reflete Bauman (2000, p. 10): “as únicas queixas ventiladas em público são um punhado de agonias e ansiedades pessoais que, no entanto, não se tornam questões públicas por estarem em exibição pública”.

  As chamadas “comunidades guarda-roupa” são geradas pelo mesmo sentimento que ocasiona o surgimento das Subculturas Criminais. As subculturas são criadas a partir da ausência dos laços tradicionais, como uma reação de minorias marginalizadas, que sentem-se excluídas daqueles laços. Na mesma linha, a Escola de Chicago trabalha com a problemática de que na vida urbana ninguém é importante, porém, na subcultura é. “Intimate participation in a collective way of life demonstrates and displays, to oneself and to others, personal atributes that make one worthy of belonging, being accepted, and- potencially – becoming important” (FERREL, 1995, p. 5).

Interessante se observar que os chamados “crimes fotogênicos”[14], que geram a comunidade guarda-roupa, são cometidos exatamente por pessoas que demonstram claramente a dificuldade em lidar com a fragilidade dos laços na modernidade líquida, que revelam o despreparo para assimilar frustrações e perdas (implicadas em qualquer relacionamento verdadeiro).

 As frustrações e vazios reveladas nestes crimes, também se revelam nas demais produções culturais – Criminologia Cultural e Criminologia Constitutiva.

 No que se refere a tais crimes é bastante relevante observar o papel desempenhado pelos meios de comunicação social. Tudo é apresentado como um grande espetáculo, reconstituições, entrevistas exclusivas com os principais envolvidos (inclusive as autoridades responsáveis pela investigação oficial). Não raras vezes, a imprensa inclusive obtém informações que sequer a autoridade policial tinha conhecimento. Comenta Bauman (2000, p. 17), citando palavras de Decca Aitkenhead, reportes do Guardian: “Se há uma coisa garantida para levar as pessoas às ruas hoje em dia, é o boato de que há um pedófilo por perto. A utilidade desses protestos é cada vez mais questionada. O que não perguntamos, no entanto, é se esses protestos têm efetivamente algo a ver com os pedófilos”. Sobre a ação dos meios de comunicação, refletem Clinton R. Sanders e Eleanor Lyon:

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 O estardalhaço promovido então pelos meios de comunicação presta grande serviço a aquela mesma sensação de medo anteriormente mencionada, o medo que leva ao isolamento, isolamento que leva insegurança e aí se está no mesmo círculo vicioso.


5 CONCLUSÃO

 A breve pesquisa aqui apresentada tem apenas o condão de propor algumas linhas de reflexão, que certamente padecem de superficialidade, mas que permitem observar algumas considerações que podem ser levadas em conta em todo estudo relacionado à Criminologia, certamente na Criminologia já marcada pelo abordagem macrossociológica e cultural.

 Deixar-se levar pelos sentimentos e medos sugeridos e incentivados pelos meios de comunicação social, Não raras vezes estimula o medo e a insegurança e incentiva a demanda por mais Estado e a “livre e racional” opção por se abrir mão de direitos individuais.

 É reforçada a demanda por Estado, porém, todo o contexto de insegurança já foi gerado justamente pela ausência do Estado, pelas promessas não cumpridas da modernidade.

 É comum ainda, na maneira como costumam ser tratados tais crimes, desencadeando o sentimento de “comunidade guarda-roupa”, noticiar-se o sucesso nas investigações de um crime notório ou extremamente cruel, colocando-se em evidência a autoridade policial ou promotor de justiça responsáveis pelas investigações e condenação. A atenção e ênfase dadas a tais fatos acabam por maquiar a ineficiência no que se refere aos crimes que não aparecem nas estatísticas oficiais, que não têm uma vítima concreta individualizada, mas que nos atingiriam a todos como comunidade (se assim nos identificássemos).

 São notórios os crimes que atingem indivíduos, mas não o são os que lesionam toda a coletividade, para estes os filtros são outros, desde a opinião pública, meios de comunicação, sistema jurídico, e possibilidades econômicas de defesa, como salienta a Teoria do Labelling Approach.

 Ainda, a abordagem dada a tais crimes, aqueles cometidos justamente pelas vítimas de uma sociedade que abriu mão de suas raízes e vínculos, costuma situar o crime no indivíduo que o cometeu, nunca no modelo de convivência que se adotou.

 Daí a relevância em se conhecer as contribuições da Escola de Chicago, relacionando-as às novas situações a cada dia presentes nas vidas das pequenas e grandes cidades.

Outro ponto de interesse prático são as soluções possíveis, apontadas pelos referenciais teóricos mencionados, que podem ser relembradas.

 Diante do quadro apresentado, a Escola de Chicago e Bauman, entre outros, apontam algumas sugestões que colaborariam para o fortalecimento dos laços sociais e consequentemente a diminuição da sensação de insegurança e criminalidade:

Trata-se, em primeiro lugar, de perspectivar a política criminal ao nível da pequena comunidade local de vizinhança em que os delinquentes vivem. Trata-se, em segundo lugar, de mobilizar as instituições sociais locais (vizinhança, igreja, escola, grupos desportivos, etc.) para obviar à desorganização social, reconstituir a solidariedade social e controlar os delinquentes. (DIAS;ANDRADE, 1997, p. 287)

 O ponto principal seriam medidas voltadas a criar mais espaços públicos de convívio, locais em que as pessoas tenham a oportunidade de se conhecer e se observar:

Seria mais favorável à proteção e ao cultivo de sentimentos mixófilos – no planejamento arquitetônico e urbano: difusão de espaços públicos abertos, convidativos, acolhedores, que todo tipo de cidadão teria vontade de frequentar assiduamente e compartilhar voluntariamente (BAUMAN, 2009, p. 50).

 Há inclusive propostas de organização dos espaços urbanos e construção dos edifícios e casas, de maneira que proporcionem mais vigilância entre a vizinhança.   São propostas semelhantes às feitas pelo arquiteto Oscar Newman e seus princípios de defensible space. Segundo o autor, “a falta de comunidade e civilidade entre vizinhos aumenta a vulnerabilidade aos criminosos. O preço é não apenas o medo e os índices criminais, é a nossa retirada das vias públicas e da comunicação – a perda de todo o cimento de que é feita a responsabilidade e a civilidade.”[15]

 As idéias de Oscar Newman deram ensejo à criação do Institute for Community Design Analysis, cuja descrição bem sintetiza algumas das sugestões semelhantes à Escola de Chicago e Bauman:

O Instituto para Análise de Design Comunitário é uma corporação sem fins lucrativos que, pelos últimos 25 anos, desenvolveu e aplicou tecnologia que usa a reestruturação física de projetos residenciais e comunitários para reduzir o crime e aumentar a estabilidade. A base de tal reestruturação é a subdivisão de áreas anteriormente públicas e sua reorientação para um controle da vizinhança pelos próprios residentes. Esta mudança inclui as áreas externas (pátios, ruas, estacionamento, locais de recreação) e as áreas comuns dos edifícios (lobbies, escadas, corredores, elevadores, lavanderias, etc). Esta tecnologia é chamada de defensible space e provou ter efetividade a longo prazo e baixo custo.[16] (INSTITUTE FOR COMMUNITY DESIGN ANALYSIS)

Mariana Barros Barreira (2008, p. 307), comenta sobre a teoria dos Defensible Spaces:

Uma ideia bastante recorrente na teoria é aquilo que pode ser chamado de ‘privatização dos térreos’: ao invés de se construir prédios altos em grandes terrenos, poderia ser idealizada a construção, na mesma área, de pequenos e mais numerosos edifícios, de maneira que as residências ficassem mais próximas das atividades da rua, a serem observadas e controladas, e que as áreas de lazer de cada pequena construção fossem utilizadas por um número mais restrito de pessoas.

 Certamente é necessário ser cuidadoso em tais análises, evitando-se excessivas medidas de intervenção nas cidades, decorrentes de algum determinismo ecológico e que poderiam ter caráter de higienização, novamente focando o nascedouro do crime no indivíduo e não na sociedade.

 Conclui-se então, com palavras novamente de Bauman (2000, p. 14):

O problema com a nossa civilização é que ela parou de se questionar. Nenhuma sociedade que esquece a arte de questionar ou deixa essa arte cair em desuso pode esperar encontrar respostas para os problemas que a afligem – certamente não antes que seja tarde demais e quando as respostas, ainda que corretas, já se tornaram irrelevantes.

 Levar tudo isso em consideração, na reflexão criminológica, contribuirá para a construção de uma Criminologia pós-moderna, ampliando os domínios da Criminologia, nela incorporando a análise da cultura.

Sobre a autora
Patricia Manente Melhem

Professora na Faculdade Campo Real - Guarapuava - Paraná

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELHEM, Patricia Manente. Cidade grande, mundo de estranhos: Escola de Chicago e “comunidades guarda-roupa”. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3655, 4 jul. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24879. Acesso em: 22 nov. 2024.

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