1 CONTROLE DE COnStITUCIONALIDADE
O controle de constitucionalidade tem por base a Constituição Federal, lei fundamental do Estado, e é relacionado à sua supremacia e rigidez.
A Constituição pode ser entendida e analisada em diversas acepções, sejam elas políticas, sociológicas, filosóficas, jurídicas, entre outras.
Conforme leciona Alexandre de Moraes (2012, p. 6):
Constituição, lato sensu, é o ato de constituir, de estabelecer, de firmar; ou ainda, o modo pelo qual se constitui uma coisa, um ser vivo, um grupo de pessoas; organização, formação. Juridicamente, porém, Constituição deve ser entendida como a lei fundamental e suprema de um Estado, que contém normas referentes à estruturação do Estado, à formação dos poderes públicos, forma de governo e aquisição do poder de governar, distribuição de competências, direitos, garantias e deveres dos cidadãos. Além disso, é a Constituição que individualiza os órgãos competentes para a edição de normas jurídicas, legislativas ou administrativas.
Cabível a investigação acerca da conjuntura jurídica ou positivista, advinda da teoria kelseniana, que considera a Constituição como norma suprema e paradigma de validade de todo o ordenamento jurídico estatal. Nesta percepção, Kelsen (2009) concebeu o ordenamento jurídico como um escalonamento de normas supra e infraordenadas umas às outras, em diferentes níveis ou camadas, formando uma espécie de “pirâmide” normativa imaginária, sendo que a Constituição representa o escalão de direito positivo mais elevado, o topo da pirâmide.
Quanto à validade das normas, Kelsen (2009, p. 232) dispôs que:
Entre uma norma de escalão superior e uma norma de escalão inferior, quer dizer, entre uma norma que determina a criação de uma outra e essa outra, não pode existir qualquer conflito, pois a norma do escalão inferior tem o seu fundamento de validade na norma do escalão superior. Se uma norma do escalão inferior é considerada como válida, tem de se considerar como estando em harmonia com uma norma do escalão superior.
Portanto, as normas inferiores só são válidas na medida em que forem produzidas de acordo com o determinado pelas normas superiores, e assim sucessivamente, até se chegar à Constituição Federal, que é o fundamento último de validade das demais normas. As normas infraconstitucionais, estando em consonância com a Constituição, reputam-se válidas e condizentes com a ordem jurídica estatal; do contrário, seriam consideradas inconstitucionais e nulas.
Deste mesmo modo, em relação à supremacia das normas, anota-se que todas as normas são dotadas de imperatividade e que, na hipótese particular das normas constitucionais, a imperatividade assume uma maneira peculiar, reforçada e superlativa, ou seja, de supremacia em relação às demais normas, que deverão estar em conformidade com a Constituição quanto ao modo de sua elaboração e quanto à matéria de que tratam. (CUNHA JÚNIOR, 2012, p. 33).
Outro aspecto a ser observado é a rigidez constitucional, referente à estabilidade da norma, à sua forma de modificação.
De acordo com Coelho (2009, p. 19):
Dizem-se rígidas as constituições que, mesmo admitindo emendas, reformas ou revisões, dificultam o processo tendente a modificá-las, que é distinto, por essa razão, do processo legislativo comum; flexíveis, ao contrário, são as constituições que podem ser modificadas de forma fácil, tal como se mudam as leis em geral, ou cujo texto – por isso mesmo – se altera quando são promulgadas disposições legais em contrário.
A rigidez refere-se, logo, à existência de um processo de alteração constitucional mais severo, solene, do que o processo de alteração das normas infraconstitucionais. É o que ocorre com a Constituição brasileira, que se submete a este procedimento próprio para reformas.
Extrai-se, pois, que a rigidez e a supremacia constitucional se interligam, uma vez que é necessária uma hierarquia no ordenamento jurídico para se falar em rigidez. Não fosse assim, estando todas as normas jurídicas em um mesmo patamar, a Constituição seria flexível, podendo ser alterada com a mesma facilidade em que se alteram as leis ordinárias, e não cabendo, propriamente, o controle de constitucionalidade.
Alexandre de Moraes (2012, p. 733) afirma que:
A ideia de intersecção entre controle de constitucionalidade e constituições rígidas é tamanha que o Estado onde inexistir o controle, a Constituição será flexível, por mais que a mesma se denomine rígida, pois o Poder Constituinte ilimitado estará em mãos do legislador ordinário.
No mesmo sentido, Paulo e Alexandrino (2012, p. 19) entendem que a rigidez decorre do princípio da supremacia formal da Constituição, situando todas as normas presentes no texto da Constituição formal em colocação superior às demais leis, ou seja, posicionando a Constituição no ápice do ordenamento jurídico estatal. Elucidam que:
Assim, a rigidez é o pressuposto para o surgimento e a efetivação do denominado controle de constitucionalidade das leis. Se a Constituição é do tipo rígida, ocupa o vértice do ordenamento jurídico e, então, há que se verificar quais leis desse ordenamento estão de acordo com as suas prescrições (e, portanto, são constitucionais) e quais leis estão em desacordo com os seus comandos (e, são, dessarte, inconstitucionais, devendo ser retiradas do ordenamento jurídico). (PAULO; ALEXANDRINO, 2012, p. 19).
Esta é a corrente majoritária, que entende ser a rigidez constitucional requisito essencial ao controle de constitucionalidade. Entretanto, há divergência doutrinária. Silva (2000) entende que o Controle de Constitucionalidade também passa pelas Constituições flexíveis, fundamentando, entre outros aspectos, que não apenas o produto da atividade normativa legislativa integra a ordem jurídica, mas também os produtos da atividade normativa executiva ou administrativa e a judiciária, que devem estar em conformidade com a Constituição; e que mesmo sendo chamada de “flexível”, a Constituição será protegida, ainda que por uma menor medida de dificuldade procedimental para alterar ou substituir seus princípios.
Seguindo o entendimento predominante, diante de uma Constituição rígida e, por isso, hierarquicamente superior às demais normas do ordenamento jurídico estatal, devem-se buscar meios para garantir que as leis estejam em harmonia com a Constituição, retirando, expungindo do sistema normativo as leis inconstitucionais.
A jurisdição constitucional é esta série de meios/mecanismos destinados a fazer prevalecer os comandos contidos na Constituição, pela via judicial. E parte importante desta jurisdição constitucional é composta pelo controle de constitucionalidade, cujo propósito é declarar a invalidade e paralisar a eficácia dos atos normativos que sejam incompatíveis com a Constituição. (BARROSO, 2011, p. 107).
Exsurge, pois, o conceito de controle de constitucionalidade, mecanismo este que visa garantir a segurança jurídica dentro do sistema normativo e, por conseguinte, a supremacia constitucional.
Ao conceituar controle de constitucionalidade, Alexandre de Moraes (2012, p. 735), analisa que “Controlar a constitucionalidade significa verificar a adequação (compatibilidade) de uma lei ou de um ato normativo com a constituição, verificando seus requisitos formais e materiais”. Ou seja, o ato jurídico que não for compatível com a Constituição, seja em relação ao seu conteúdo ou à sua forma, deve passar pelo controle de constitucionalidade e ser declarado inconstitucional e inválido.
Esclarecendo a relevância do controle de constitucionalidade, Cunha Júnior (2012, p. 41) complementa que:
[...] essa supremacia constitucional restaria comprometida se não existisse um sistema que pudesse garanti-la e, em consequência, manter a superioridade e força normativa da Constituição, afastando toda e qualquer antinomia que venha agredir os preceitos constitucionais. É nesse contexto que avulta a importância do controle de constitucionalidade como um mecanismo de garantia constitucional da supremacia das normas constitucionais delineado pelo próprio texto constitucional.
Estas são, em resumo, considerações que dão base ao controle de constitucionalidade.
1.1 CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NO DIREITO BRASILEIRO
1.1.1 Considerações Iniciais
Analisar o contexto histórico e a evolução do controle de constitucionalidade, tanto no Brasil quanto em outros sistemas normativos que o influenciaram, é primordial, pois os elementos do atual sistema de controle de constitucionalidade foram importados de outros países, e aprimorados, apresentando características próprias.
O controle de constitucionalidade brasileiro combinou sistemas de controle existentes no Direito Estrangeiro: o americano e o austríaco. A seguir, uma síntese desses sistemas a fim de abicar, com fundamento, nos modelos de controle de constitucionalidade brasileiros.
1.1.2 Sistema Americano
O primeiro precedente acerca do controle de constitucionalidade ocorreu no direito norte-americano, com o caso “William Marbury versus James Madison”, julgado em 1803 pelo presidente da Corte Suprema, John Marshall, criando-se o controle difuso de constitucionalidade.
Barroso (2004) narra minuciosamente o referido julgamento: Ocorre que John Adams, então Presidente Federalista dos Estados Unidos da América, realizou inúmeras nomeações para juiz de paz no fim de seu mandato, objetivando conservar sua influência política através do Poder Judiciário. Fez-se aprovar uma lei de reorganização do Judiciário federal, reduzindo o número de ministros da Suprema Corte (visando impedir uma nova nomeação pelo Presidente que assumiria) e criando novos cargos de juiz federal (que seriam preenchidos por aliados de Adams), além de lei autorizando o Presidente a nomear quarenta e oito juízes de paz. Os atos de investidura dos novos juízes foram assinados no seu último dia de governo, à véspera da posse do novo presidente, o republicano Thomas Jefferson. Marshall, então Secretario de Estado, não conseguiu fazer chegar às mãos de todos os interessados os atos de nomeação. Trocada a Presidência, o novo Secretario, Madison, por ordem do Presidente Jefferson, recusou-se a entregar os atos de investidura àqueles que não o haviam recebido. Entre os prejudicados, estava o nomeado William Marbury, que propôs ação judicial, dita writ of mandamus, para ter reconhecido o seu direito ao cargo de juiz de paz.
Observa-se que a situação, quando do julgamento, era hostil: o Congresso, já com maioria republicana, revogou a lei de reorganização do Judiciário federal, extinguindo os cargos então criados e destituindo seus ocupantes; o Presidente Jefferson sinalizava que não iria cumprir qualquer decisão da Corte que ordenasse ao Governo a entrega dos atos de investidura; e a Câmara havia deflagrado processo de impeachment de um juiz federalista, que ameaçava se estender até os Ministros da Suprema Corte. (BARROSO, 2004, p. 4).
O então Chief Justice era John Marshall (ex-secretário de Estado no governo de John Adams).
Acuado pela opinião pública e pela ameaça de impeachment dos juízes da Suprema Corte e do não cumprimento da ordem, caso deferida, MARSHALL valeu-se de uma habilidosa estratégia. Embora reconhecendo o direito de Marbury, denegou a ordem requestada em razão de uma preliminar de incompetência da Corte. Para o reconhecimento dessa preliminar, MARSHALL desenvolveu sua doutrina da judicial review os legislation, reconhecendo a inconstitucionalidade de dispositivo de lei que atribuía competência à Suprema Corte para julgar originariamente ações daquela espécie [...]. Considerou-se que a competência da Supreme Court encontra-se taxativamente enumerada na Constituição, sem qualquer possibilidade de ampliação legal. (CUNHA JÚNIOR., 2012, p.73-74).
Este foi o fundamento que embasou a decisão de John Marshall, que mesmo admitindo a pretensão de Marbury, entendeu que a lei que conferira competência à Suprema Corte para o julgamento de ação daquela natureza era inconstitucional, pois não estava prevista no rol taxativo da Constituição.
O pioneirismo que tornou o caso célebre, segundo Barros (em Noções sobre controle de constitucionalidade,(2010), foi “o de consolidar em mãos dos juízes o poder de controle de constitucionalidade – the power of judicial review: o poder de revisão judicial – que reconheceu aos juízes, de modo definitivo, a faculdade de rever perante a Constituição os atos dos legisladores.”
Reconheceu-se, então, que diante de conflito entre lei e Constituição esta última deverá prevalecer, justificando-se, portanto, o controle judicial de constitucionalidade.
Marbury v. Madison, portanto, foi a decisão que inaugurou o controle de constitucionalidade no constitucionalismo moderno, deixando assentado o princípio da supremacia da Constituição, da subordinação a ela de todos os Poderes estatais e da competência do Judiciário como seu intérprete final, podendo invalidar os atos que lhe contravenham. Na medida em que se distanciou no tempo da conjuntura turbulenta em que foi proferida e das circunstâncias específicas do caso concreto, ganhou maior dimensão, passando a ser celebrada universalmente como o precedente que assentou a prevalência dos valores permanentes da Constituição sobre a vontade circunstancial das maiorias legislativas. (BARROSO, 2004, p. 10).
Assim, o direito norte-americano concebeu o controle difuso de constitucionalidade, possibilitando a qualquer juiz ou tribunal analisar a constitucionalidade de lei ou ato normativo, desde que vinculado a um caso real, concreto, submetido a seu julgamento. O sistema então instalado permanece até hoje no sistema judicial norte-americano, e foi recebido por diversos países, incluindo o Brasil.
1.1.3 Sistema Austríaco
No decorrer do século XX, o modelo americano cedeu espaço a outro sistema de controle de constitucionalidade, sobretudo na Europa Continental. Este sistema, conhecido como austríaco ou europeu, teve Hans Kelsen como precursor.
Concebeu-se, então, o controle concentrado de constitucionalidade, que fora introduzido através da Constituição da Áustria de 1920, e aperfeiçoado através de sua reforma de 1929. Segundo Kelsen (2009, p. 303), em Teoria Pura do Direito,
Se o controle da constitucionalidade das leis é reservado a um único tribunal, este pode deter competência para anular a validade da lei reconhecida como ‘inconstitucional’ não só em relação a um caso concreto mas em relação a todos os casos a que a lei se refira – quer dizer, para anular a lei como tal. Até esse momento, porém, a lei é válida e deve ser aplicada por todos os órgãos aplicadores do Direito.
Assim, pela obra de Kelsen, a Europa recepcionou o controle judicial de constitucionalidade, entretanto, com estrutura diversa do modelo americano. O sistema austríaco tinha na inconstitucionalidade o fundamento para a própria ação, e a lei reconhecida inconstitucional seria anulável, ou seja, os efeitos da decisão valeriam a partir da publicação do próprio julgado ou do que fosse determinado por este, não retroagindo. Até o reconhecimento da invalidade da lei, ela era válida, aplicável, e produzia efeitos. Além disso, a decisão teria eficácia geral, afastando a aplicação de lei admitida inconstitucional a todos os casos por ela compreendidos, e não apenas a uma situação concreta e específica.
O controle aqui, concentrado, atribuiu competência exclusiva a um único tribunal - Tribunal Constitucional - para o exercício da jurisdição constitucional, ou seja, para controlar judicialmente a constitucionalidade de leis e atos normativos. (MORAES, A., 2012, p. 739).
A Constituição da Áustria de 1920, em sua redação original, só previa o controle concentrado de normas. A partir da reforma de 1929, a fiscalização incidental também foi implantada, passando a conviver o modelo de controle abstrato (via de ação) e o concreto (via de exceção). (BULOS, 2012, p. 195).
A Itália e a Alemanha, entre outros países, adotaram o modelo austríaco de constitucionalidade, porém com certas peculiaridades.
1.1.4 Histórico
O sistema de Controle de Constitucionalidade brasileiro deriva dos acima estudados: do americano e do austríaco. Todavia, o direito constitucional pátrio sofreu gradativas evoluções até chegar ao cenário atual. Importante remetermos a uma breve noção histórica, possibilitando uma maior compreensão acerca do tema proposto.
1.1.4.1 Constituição de 1824
A Constituição Política do Império, de 1824 (BRASIL), sequer previa o controle de constitucionalidade pelo Poder Judiciário. Em seu art. 15, inciso IX, estabelecia a competência da Assembleia Nacional para velar pela guarda da Constituição, ou seja, a competência foi atribuída ao Poder Legislativo. Ainda existia uma espécie de quarto poder, o Poder Moderador, que era delegado ao Imperador para velar sobre “[...] a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes.” (BRASIL. Constituição Política do Império do Brazil, 1824, art. 98).
“Teoricamente, pois, o controle de constitucionalidade deveria ser exercido pelo Poder Legislativo. Contudo, ele se manteve inerte diante da onipotência do Poder Moderador [...].” (BULOS, 2012, p. 201). Mello (1980, p. 154-155) explica o por quê da inexistência do controle judicial de constitucionalidade:
[...] é de recordar-se, os homens públicos do Império ao elaborarem a Carta de 1824 sofreram a influência dos doutrinadores políticos da Inglaterra e da França, e os juízes, de então, estavam pouco afeitos ao Direito Constitucional dos E.E.U.U. Por isso, não obstante, de há muito, nesse país, o Judiciário exercesse o controle da constitucionalidade dos atos dos outros poderes, no Brasil se ignorava essa prerrogativa, ou mesmo conhecendo-a os governantes, não se afeiçoaram a ela.
1.1.4.2 Constituição de 1891
O controle jurisdicional de constitucionalidade foi adotado pela Constituição Republicana de 1891, influenciado pelo direito norte-americano. Tratava-se, pois, do controle difuso de constitucionalidade. Extinguiu-se o Poder Moderador, e atribuiu-se ao Poder Judiciário a competência para averiguar a constitucionalidade de lei.
O art. 59 desta Constituição (BRASIL, 1891) dispunha acerca da competência do Supremo Tribunal Federal, prevendo em seu §1º que:
Das sentenças das Justiças dos Estados, em última instância, haverá recurso para o Supremo Tribunal Federal: a) quando se questionar sobre a validade, ou a aplicação de tratados e leis federais, e a decisão do Tribunal do Estado for contra ela; b) quando se contestar a validade de leis ou de atos dos Governos dos Estados em face da Constituição, ou das leis federais, e a decisão do Tribunal do Estado considerar válidos esses atos, ou essas leis impugnadas.
A Emenda Constitucional de 1926 alterou alguns dispositivos constitucionais, porém manteve a essência quanto ao controle difuso.
No entanto, sem embargo desse grande avanço, o sistema, como originalmente moldado, apresentava deficiências, pela possibilidade de existirem decisões conflitantes entre os vários órgãos judiciários competentes para o controle de constitucionalidade, circunstância que propiciava um estado de incerteza no direito e uma pletora de demandas judiciais, que congestionavam as vias judiciais ordinárias, já que as decisões sobre a constitucionalidade das leis proferidas pelos juízes e tribunais operavam somente inter partes. (CUNHA JÚNIOR., 2012, p. 102).
Observa-se que no Brasil não havia o stare decisis do direito norte-americano, que vinculava os órgãos do Poder Judiciário às decisões da Suprema Corte.
1.1.4.3 Constituição de 1934
A Constituição de 1934 manteve o controle difuso de constitucionalidade, porém com expressivas mudanças.
Introduziu-se a cláusula do plenário, prevista até hoje, com o estabelecimento de quórum especial para as decisões tomadas a respeito da inconstitucionalidade de lei ou ato do Poder Público: “Só por maioria absoluta de votos da totalidade dos seus Juízes, poderão os Tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato do Poder Público.” (BRASIL, Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, 1934, art. 179).
Mendes (2009, p. 1086) explica a contribuição deste dispositivo para a evolução do sistema de controle de constitucionalidade: “Evitava-se a insegurança jurídica decorrente das contínuas flutuações de entendimento nos tribunais.”
No tocante ao Senado Federal, esta Constituição lhe outorgou a competência para “suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato, deliberação ou regulamento, quando hajam sido declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário”, conforme disposto em seu art. 91, inciso IV. (BRASIL, 1934). E, em complementação, seu art. 96 dispunha que, em ocorrendo a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato governamental pela Corte Suprema, “[...] o Procurador Geral da República comunicará a decisão ao Senado Federal para os fins do art. 91, nº IV, e bem assim à autoridade legislativa ou executiva, de que tenha emanado a lei ou o ato.” (BRASIL, 1934).
Bastos (2010, p. 559) analisa a introdução da fórmula do senado federal na Constituição:
Grande passo foi assim dado no sentido da implantação do controle de constitucionalidade por via de ação e não apenas de exceção. O sistema defendido pela Constituição de 1934 já permitia o alargamento da decisão judicial, após a intervenção do Senado Federal, que passou dessa maneira a suspender para todos os casos os efeitos do ato inconstitucional, e não apenas naquele sub judice.
Outra inovação no sistema de controle de constitucionalidade foi a representação interventiva, prevista no art. 12, inciso V, e §2º, da Constituição[1], segundo a qual o Supremo Tribunal Federal, por provocação do Procurador-Geral da República, poderia declarar a inconstitucionalidade da lei estadual, se esta violasse algum dos princípios elencados no art. 7º, inciso I, nas letras a a h da Constituição, caso em que a intervenção não ocorreria. Se a lei fosse declarada constitucional, aí sim a intervenção se efetuaria. Era caso, portanto, de ação própria no direito pátrio.
Assim, o sistema de controle de constitucionalidade começou a se distanciar do sistema meramente difuso introduzido pelo direito norte-americano; porém com apenas alguns vestígios do modelo concentrado.
1.1.4.4 Constituição de 1937
Esta Constituição adveio em meio a um Estado Ditatorial, autoritário, que concentrava o poder nas mãos do Executivo.
Manteve-se o controle difuso de constitucionalidade, mas com certa regressão. A cláusula de reserva de plenário, instituída pela Constituição de 1934, teve previsão no art. 96 da Constituição. (BRASIL, 1937). Entretanto, o parágrafo único deste dispositivo previu que:
No caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do Presidente da República, seja necessária ao bem-estar do povo, à promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta, poderá o Presidente da República submetê-la novamente ao exame do Parlamento: se este a confirmar por dois terços de votos em cada uma das Câmaras, ficará sem efeito a decisão do Tribunal. (BRASIL, 1937).
Portanto, o Legislativo poderia reformar a decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da inconstitucionalidade de lei. “Ora, como na época não funcionava o Poder Legislativo, que não foi convocado, cabia ao próprio Presidente da República exercer, mediante simples decreto-lei, essa faculdade.” (CUNHA JÚNIOR., 2012, p. 104).
“Deixaram de existir a representação interventiva e a possibilidade do Senado atribuir efeitos erga omnes à declaração de inconstitucionalidade proclamada pela Corte Suprema.” (LEAL, 2012, p. 143). Foi, em verdade, um retrocesso ao controle de constitucionalidade jurisdicional.
1.1.4.5 Constituição de 1946
Esta Constituição recompôs o controle judicial de constitucionalidade no direito brasileiro, mantendo o sistema difuso, e introduzindo, com a Emenda nº 16 de 1965, o controle abstrato de constitucionalidade, advindo do sistema austríaco.
A norma compreendida no art. 96, parágrafo único da Constituição de 1937, foi extinta. Reintroduziu-se, na Constituição de 1946, a fórmula do Senado Federal, porém com restrição ao objeto da resolução suspensiva do Senado, que passou a ser lei e decretos declarados inconstitucionais. Ademais, a intermediação do Procurador-Geral da República foi eliminada, passando o próprio Supremo Tribunal Federal a comunicar ao Senado a decisão de inconstitucionalidade. (CARVALHO, 2011, 364-365).
Bulos (2012, p. 203) elenca outras contribuições desta Constituição:
Permitiu que o controle difuso fosse exercido pelo Supremo Tribunal Federal em sede de recurso extraordinário (art. 101, II, a, b e c). [...] Preservou a exigência de maioria absoluta dos membros do Tribunal para a eficácia da decisão declaratória de inconstitucionalidade (art. 200). [...] Emprestou nova configuração à representação constitucional interventiva, introduzida, no Brasil, pela Carta de 1934, deixando-a sob os auspícios do Procurador-Geral da República (art. 8º, parágrafo único, c/c o art. 7º, VII).
De grande importância foi a Emenda Constitucional nº 16, de 1965, que introduziu no ordenamento brasileiro, em seu art. 101, inciso I, alínea k, o controle abstrato de normas perante o Supremo Tribunal Federal, ao dispor que a este órgão compete processar e julgar, originariamente, “a representação contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual, encaminhada pelo Procurador-Geral da República.” (BRASIL, 1965). “O julgamento da norma em tese, isto é, desprendida de um caso concreto, e, o que é muito importante, sem outra finalidade senão a de preservar o ordenamento jurídico da intromissão de leis com ele inconvenientes, torna-se então possível.” (BASTOS, 2010, p. 562).
A Emenda ainda acresceu ao art. 124 o seguinte inciso: "XIII - a lei poderá estabelecer processo, de competência originária do Tribunal de Justiça, para declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato de Município, em conflito com a Constituição do Estado” (BRASIL, 1965). Ou seja, permitiu-se o controle de constitucionalidade estadual.
Passaram a conviver, portanto, o modelo difuso e abstrato de controle de constitucionalidade. Este último, “[...] concentrado-principal, no entanto, encontrava-se até então limitado às ações diretas de inconstitucionalidade por ação (representação genérica) e de inconstitucionalidade interventiva (representação interventiva).” (CUNHA JÚNIOR, 2012, p. 105).
1.1.4.6 Constituição de 1967
A Constituição de 1967 manteve o controle de constitucionalidade misto da Carta de 1946, difuso e abstrato, com poucas mudanças.
O art. 124, inciso XIII, da Constituição anterior, não foi mantido.
A Emenda nº 1, de 1969, dispôs, em seu art. 10, inciso VI (BRASIL, 1969), que “A União não intervirá nos Estados, salvo para: [...] VI - prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judiciária”. Portanto, a representação interventiva foi ampliada, a fim de garantir também a execução de lei federal, até então sem previsão constitucional. Ainda, a Emenda admitiu a intervenção nos Municípios, a ser regulada pela Constituição estadual, “[...] para assegurar a observância dos princípios sensíveis indicados na Constituição estadual (art. 15, §3º, d, da Constituição).” (CUNHA JÚNIOR., 2012, p. 105).
Após, adveio a Emenda nº 07 de 1977, que em seu art. 119, inciso I, p, afirmou a competência do Supremo Tribunal para analisar “o pedido de medida cautelar nas representações oferecidas pelo Procurador-Geral da República.” (BRASIL, 1977).
1.1.4.7 Constituição de 1988
Por fim, a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988, consolidou o sistema misto de controle de constitucionalidade: difuso e concentrado; porém, deu uma maior ênfase a este último. Os mecanismos de controle de constitucionalidade foram ampliados substancialmente.
O controle que antes era primordialmente difuso, provindo do direito norte-americano, acabou por sofrer influência do sistema austríaco, e agora, é este o predominante, com diversas disposições constitucionais apontando para este sistema de controle, via de ação, a fim de torná-lo mais efetivo.
Barroso (2011, p. 286) trata dessa expansão:
No Brasil, o controle de constitucionalidade existe, em molde incidental, desde a primeira Constituição republicana, de 1891. Por outro lado, a denominada ação genérica (ou, atualmente, ação direta), destinada ao controle por via principal – abstrato ou concentrado -, foi introduzida pela Emenda Constitucional n. 16, de 1965, que atribuía a legitimação para sua propositura exclusivamente ao Procurador-Geral da República. Nada obstante, a jurisdição constitucional expandiu-se, verdadeiramente, a partir da Constituição de 1988. A causa determinante foi a ampliação do direito de propositura no controle concentrado, fazendo com que este deixasse de ser mero instrumento de governo e passasse a estar disponível para as minorias políticas e mesmo para segmentos sociais representativos. A esse fator somou-se a criação de novos mecanismos de controle concentrado, com a ação declaratória de constitucionalidade e a argüição de descumprimento de preceito fundamental.
Mendes (2009, p. 1101-1104) elenca as mudanças nesta nova Constituição, conhecida como Constituição Cidadã: a) houve a preservação da representação interventiva, com a finalidade de verificação da “compatibilidade do direito estadual com os chamados princípios sensíveis” (que são os previstos no art. 34, VII, da Constituição Federal); b) ao Supremo Tribunal Federal foi atribuída competência para conhecer as causas e conflitos que ocorram entre a União e os Estados, entre a União e o Distrito Federal ou entre os Estados entre si (previsão do art. 102, I, f); c) foram consagrados diversos instrumentos para a defesa dos direitos subjetivos públicos: habeas corpus (art. 5º, LXVIII), mandado de segurança (art. 5º, LXIX), habeas data (art. 5º, LXXII), mandado de injunção (art. 5º, LXXI); d) o Recurso Extraordinário, previsto agora no art. 102, III, a a d, reduziu seu âmbito de aplicação, confiando-se agora “ao Superior Tribunal de Justiça a decisão sobre os casos de colisão direta entre o direito estadual e o direito federal ordinário”; e) introduziu-se, ao lado do mandado de injunção, o processo de controle abstrato da omissão (art. 103, §2º); f) criou-se a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo estadual ou federal (art. 102, I, a, c/c o art. 103); g) ampliou-se o direito de propositura da ação direta, conforme rol constante no art. 103 (que antes sofria o monopólio pelo Procurador-Geral da República); entre outras considerações.
Observa-se que ao Supremo Tribunal Federal foi concedida a guarda da Constituição, conforme seu art. 102, caput. Portanto, o controle de constitucionalidade, em regra, foi acometido ao Poder Judiciário.
Maior prestígio foi dado ao controle concentrado, instituindo-se a ação declaratória de constitucionalidade (através da Emenda Constitucional nº 03 de 1993), ao lado da já existente ação direta de inconstitucionalidade (Art. 102, I, a, da Constituição Federal). (BRASIL, 1988). A legitimidade para a propositura dessas ações foi ampliada pela Emenda Constitucional nº 45 de 2004, rompendo com o monopólio antes outorgado ao Procurador-Geral da República. Segundo o art. 103, da Carta Democrática (BRASIL, 1988):
Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: I - o Presidente da República; II - a Mesa do Senado Federal; III - a Mesa da Câmara dos Deputados; IV - a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal; VI - o Procurador-Geral da República; VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII - partido político com representação no Congresso Nacional; IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
A competência atribuída ao Supremo Tribunal Federal para analisar os pedidos de medida cautelar, suspendendo então a eficácia de norma considerada inconstitucional, foi mantida. (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, art. 102, I, p).
Houve a previsão, no art. 102, §1º, da Constituição Federal (BRASIL, 1988), da arguição de descumprimento de preceito fundamental, instituto este posteriormente disciplinado pela Lei nº 9.882 de 1999. O texto constitucional previu, ainda, em seu art. 125, §2º (BRASIL, 1988), a competência dos Estados para a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual.
E, em virtude da Emenda Constitucional nº 45 de 2004, foram criadas as súmulas com efeitos vinculantes. (BRASIL, 1988, art.103-A). Ademais, criou-se o instrumento da Repercussão Geral das questões constitucionais discutidas no caso, como requisito de admissibilidade do Recurso Extraordinário. (BRASIL, 1988, art. 102, §3º).
É esse o contexto institucional do controle de constitucionalidade no ordenamento brasileiro, que busca combinar o modelo tradicional de controle incidental de normas, os vários instrumentos de defesa de direitos individuais, como o habeas corpus, mandado de segurança, habeas data, mandado de injunção, com as ações diretas de inconstitucionalidade e de constitucionalidade, a ação direta por omissão e a argüição de descumprimento de preceito fundamental. (MENDES, 2009, p. 1110).
1.1.5 Controle Jurisdicional de Constitucionalidade
Influenciado pelos sistemas de controle de constitucionalidade americano e austríaco, e diante de toda a evolução em termos de direito constitucional, o Brasil adotou um sistema de controle repressivo predominantemente judicial. Portanto, em regra, os órgãos judiciais são os competentes para averiguarem a compatibilidade das leis e atos normativos com a Constituição Federal.
O controle jurisdicional de constitucionalidade, quanto a sua forma, é um controle misto, que abrange o controle abstrato (via de ação) e o difuso (incidental, via de exceção).
1.1.5.1 Controle Difuso de Constitucionalidade
Surgido nos Estados Unidos da América do Norte, este controle de constitucionalidade foi introduzido no Brasil pela Constituição de 1891, e mantem-se até a atual Constituição.
Embora o controle de constitucionalidade via ação direta (abstrato) tenha se expandido no país, conforme demonstrado no histórico das Constituições brasileiras, “o controle incidental ainda é a única via acessível ao cidadão comum para a tutela de seus direitos subjetivos constitucionais.” (BARROSO, 2004, p. 71).
Esse controle difuso também é chamado via de exceção ou defesa, ou ainda, concreto. Agra (2008, p. 219) analisa as terminologias do controle difuso de constitucionalidade, em seus diversos prismas, e esclarece:
Difuso, porque toda instância judiciária pode decidir acerca da constitucionalidade. Controle de norma de efeito concreto, porque somente pode ser suscitado por aqueles cidadãos atingidos diretamente pela norma inconstitucional. Controle por exceção ou via incidental, porque o pedido de declaração de inconstitucionalidade deve ser julgado anteriormente ao mérito, sendo apreciado em preliminar, de forma incidental, ou porque a verificação da constitucionalidade não faz parte do pedido, configurando-se como seu fundamento.
De acordo com as diversas terminologias, portanto, podem-se extrair as características deste controle de constitucionalidade. Qualquer juiz singular ou tribunal poderá declarar a lei ou ato inconstitucionais, quando afetos a um caso concreto. A inconstitucionalidade deverá ser decida em primeiro plano, ou seja, incidentalmente, pois esta decisão será fundamental ao deslinde da ação principal.
Deste modo, Siqueira Jr. (2011, p. 146) destaca que:
O controle de constitucionalidade difuso caracteriza-se pela possibilidade de qualquer juiz ou Tribunal, ao analisar um caso concreto, verificar a inconstitucionalidade da norma, arguida pela parte como meio de defesa. Nesse caso, o objeto principal da ação não é a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, sendo a mesma analisada incidentalmente ao julgamento de mérito. A declaração de inconstitucionalidade torna-se necessária para a solução do caso concreto em questão, ou seja, a apreciação de inconstitucionalidade tem o condão de decidir determinada relação jurídica, objeto principal da ação.
O professor Barruffini (2008, p. 70) observa que o objetivo deste controle é subtrair alguém dos efeitos advindos de uma lei inconstitucional, servindo, pois, como meio de defesa dos direitos e garantias fundamentais.
Ocorre que, diante de uma controvérsia concreta, real, decorrente de uma situação jurídica, o cidadão que busca resolver seu conflito de interesses tem o direito de pedir a não aplicação de uma lei que esteja contrariando a Carta Maior, a fim de ver garantido o seu direito subjetivo. Decidido o incidente de inconstitucionalidade, só então será possível a apreciação do mérito, ou seja, a análise do objeto principal da ação.
Bulos (2012) trata das matérias afetas ao controle difuso, ou seja, que podem ser objeto deste controle de normas, elencando-as: lei ou ato normativo em face das cartas estaduais; lei ou ato normativo em face da Carta Federal; leis ou atos normativos distritais; espécies normativas (que conforme art. 59 da Constituição Federal compreendem emendas constitucionais, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções); tratados internacionais (quando incorporados ao Direito Positivo Interno); leis estrangeiras inconstitucionais; e atos normativos privados. Entende, ainda, ser possível o controle difuso de constitucionalidade em sede de ação civil pública.
O incidente de inconstitucionalidade poderá ser arguido por qualquer parte no processo (autor ou réu), pelo Ministério Público (quando parte ou quando fiscal da lei), por terceiro interveniente (assistente, litisconsorte ou opoente), ou ainda pode ser reconhecido de ofício pelo juiz ou tribunal. (CARVALHO, 2011, p. 373, 375).
Como visto, “O controle difuso caracteriza-se pela possibilidade de qualquer juiz ou Tribunal declarar incidentalmente a inconstitucionalidade da norma.” (SIQUEIRA JR., 2011, p. 163).
A decisão do juiz singular é suficiente para declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo. Quando se tratar de tribunal, seja por competência originária ou recursal, deve-se obedecer, quando arguido o incidente de inconstitucionalidade, ao procedimento previsto nos artigos 480 a 482 do Código de Processo Civil, observado ainda o disposto no art. 97 da Constituição Federal.
O art. 97 da Constituição (BRASIL, 1988) prevê a cláusula de reserva de plenário, podendo os tribunais declararem a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público apenas pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial[2]. Observa-se que a exigência de quórum especial é destinada apenas à declaração de inconstitucionalidade. Se o tribunal entender pela constitucionalidade de lei ou ato normativo não é necessário este quórum e o que ocorre, no caso, é o julgamento do mérito, ou seja, a decisão do objeto principal da ação.
Guilherme Peña de Moraes (2012, p. 154) conceitua:
A arguição de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal em face da Constituição federal ou estadual, ut arts. 480 usque 482 do CPC, é conceituada como incidente processual, suscitável perante órgão fracionário de tribunal, com o escopo de resolver questão constitucional no processo de controle de constitucionalidade difuso, para assentar uma das premissas da decisão de mérito.
O processamento do incidente de arguição de inconstitucionalidade é previsto nos arts. 480 a 482 do CPC (BRASIL. Lei nº 5.869, 1973), e segue os seguintes percursos:
a) Haverá a arguição de inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo do poder público (art. 480 do CPC);
b) O Ministério Público será ouvido (atua, aqui, como fiscal da lei), conforme art. 480, do CPC. Se o incidente de inconstitucionalidade foi promovido por ele, desnecessária é a sua intervenção;
c) O Relator submeterá a questão constitucional ao órgão fracionário, que acolherá ou rejeitará a arguição de inconstitucionalidade (art. 480, do CPC);
d) Se a arguição de inconstitucionalidade for rejeitada, ou seja, se a norma for declarada constitucional, o próprio órgão fracionário prosseguirá com o julgamento da causa ou recurso, aplicando a lei ou ato normativo ao caso concreto (art. 481, caput, do CPC);
e) Se a arguição de inconstitucionalidade for acolhida, ou seja, se a norma for reconhecida como inconstitucional, o órgão fracionário suspenderá o julgamento da causa ou recurso, lavrará acórdão e encaminhará a questão constitucional ao plenário ou órgão especial (art. 481, caput, do CPC). O plenário ou órgão especial decidirá unicamente sobre a questão constitucional. Após, o processo será encaminhado ao órgão fracionário, a quem incumbe decidir o caso;
f) Se a arguição de inconstitucionalidade for acolhida, o órgão fracionário poderá deixar de submetê-la ao tribunal pleno ou ao órgão especial apenas na hipótese de haver pronunciamento anterior, ou do plenário ou do órgão especial do mesmo tribunal ou do plenário do Supremo Tribunal Federal, sobre a questão (art. 481, parágrafo único, do CPC). Trata-se, pois, de exceção, que visa garantir a economia e celeridade processual, bem como a segurança jurídica.
Como percebe-se,
Os órgãos fracionários dos Tribunais, como Câmaras, Turmas, Grupo de Câmaras, Seções, não dispõem de competência para declarar a inconstitucionalidade de lei, cabendo apenas ao Plenário ou ao competente órgão especial fazê-lo, na forma regimental. (CARVALHO, 2011, p. 375).
Quando do julgamento pelo plenário ou órgão especial, poderá o Ministério Público e as pessoas jurídicas de direito público responsáveis pela edição do ato questionado manifestar-se, conforme prevê o art. 482, §1º, do CPC, bem como os titulares do direito de propositura referidos no art. 103 da Constituição, na forma do art. 482, §2º, do CPC. (BRASIL, 1973). Dependendo da relevância da matéria e da representatividade dos postulantes, o relator poderá admitir a manifestação de outros órgãos ou entidades (art. 482, §3º do CPC). (BRASIL, 1973).
Assim, cabe ao plenário ou ao órgão especial o julgamento do incidente de inconstitucionalidade, e ao órgão fracionário, observada a decisão da questão constitucional, o julgamento do caso concreto. O órgão fracionário ficará vinculado à decisão do plenário ou órgão especial, “[...] posto que a solução da questão prejudicial é incorporada ao julgamento da causa ou recurso como premissa inafastável.” (MORAES, G. P., 2012, p. 165).
Este é, portanto, o procedimento do incidente de inconstitucionalidade nos Tribunais.
O controle difuso poderá ser suscitado também perante o Supremo Tribunal Federal, via recurso extraordinário (art. 102, III, a, b e c, da Constituição), recurso ordinário ou quando apreciar a inconstitucionalidade de normas fundadas em decisões recorridas (art. 102, II, da Constituição). (BULOS, 2012, p. 206).
Quanto à eficácia do controle difuso, esta se atém apenas as partes do processo, pois a lei ou ato normativo será declarado inconstitucional visando garantir os direitos subjetivos daquelas partes litigantes, sendo inaplicável somente naquela situação. Desta forma, Bernardes (2004, p. 67) afirma que “O provimento judicial deverá pôr fim a litígio concreto e individualizado, numa verdadeira fiscalização e constitucionalidade tendente a resolver conflito de interesses instaurado entre as partes.”
A decisão acerca da constitucionalidade faz-se necessária apenas para solucionar o conflito pelo qual se invocou o judiciário, e, portanto, sua eficácia será inter partes. A lei continua válida e aplicável a todos os demais casos, produzindo efeitos. Mesmo havendo hipótese semelhante a já decidida em controle difuso, a lei será a ela aplicável, e a parte que desejar que a lei seja reconhecida como inconstitucional deverá invocar o judiciário, submetendo-se a todo o procedimento cabível a esta forma de controle.
Tudo isso se deve ao fato de a essência do controle estar radicada na faculdade de o Poder Judiciário deixar de aplicar a um caso concreto as normas que vulnerem os princípios constitucionais. Ao negar-lhes aplicação não as retira do mundo jurídico. Permanecem elas no contexto legislativo, ainda que estejam em desarmonia com a ordem constitucional. (CASTRO, 2008, p. 63).
Entretanto, o controle incidental de constitucionalidade pode alcançar, através de recurso extraordinário, o Supremo Tribunal Federal. Se esse órgão declarar a inconstitucionalidade de lei, por decisão definitiva (da qual não caiba mais recurso), essa poderá deixar de atingir apenas as partes litigantes naquele caso concreto, passando a ter efeito erga omnes. A extensão desse efeito está condicionada à suspensão pelo Senado Federal da execução de lei declarada inconstitucional, nos termos do art. 52, inciso X, da Constituição Federal. (BRASIL, 1988).
Existe discussão doutrinária e jurisprudencial acerca desta suspensão senatorial, entretanto, não cabe aqui abordá-la. O que cabe observar é que em controle difuso a eficácia da declaração de inconstitucionalidade é apenas inter partes, e, excepcionalmente, devido à cláusula do Senado Federal, erga omnes.
Quanto aos efeitos da norma declarada inconstitucional, estes são, em regra, ex tunc, retroagindo à origem da lei ou ato normativo. Desta forma, trata Castro (2008, p. 37-38):
O sistema americano de controle judicial de legitimidade constitucional das leis é meramente declarativo, e não constitutivo de invalidade da lei. Como consequência desse caráter, a eficácia da providência jurisdicional constitucional, em princípio, opera o efeito ex tunc (retroativamente), por tratar de simples verificação de uma pré-existente nulidade absoluta. O juiz limita-se à não-aplicação da lei declarada inconstitucional ao caso concreto e o controle judicial de constitucionalidade da lei não tem eficácia geral, erga omnes, mas só eficácia interpartes.
Este controle judicial é, portanto, o que inaugurou o controle de constitucionalidade brasileiro.
1.1.5.2 Controle Abstrato de Constitucionalidade
O controle abstrato de constitucionalidade é também chamado controle concentrado, ou via de ação. Foi introduzido no Brasil por influência do direito constitucional austríaco, e a atual Constituição acabou por abordá-lo de forma mais efetiva no ordenamento, compreendendo as seguintes ações, cada qual com suas peculiaridades: ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade, ação direta de inconstitucionalidade por omissão, ação direta de inconstitucionalidade interventiva, e arguição de descumprimento de preceito fundamental.
No controle concentrado, segundo Cardoso (2011, p. 79), “[...] o processo é considerado objetivo, impessoal, genérico e abstrato, não havendo litígio entre partes, direito subjetivo violado ou pretensão resistida, interesse próprio, tampouco pode ser utilizado para discutir uma situação concreta”. O que se pretender é a defesa da Constituição, cuja pretensão será instrumentalizada através de ação própria. Aqui o objeto da ação é a própria declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade da lei, ou seja, o exame acerca da compatibilidade da lei com a Carta Maior, não estando relacionado a caso concreto.
Veloso (2003, p. 61-62) complementa o ensinamento:
O controle concentrado se realiza através de um processo ‘objetivo’, para usar a expressão da doutrina alemã. Só o fato de estar vigorando uma lei que contraria a Constituição, afrontando o postulado da hierarquia constitucional, representa uma anomalia alarmante, um fator de insegurança que fere, profundamente, a ordem jurídica, desestabilizando o sistema normativo, reclamando providência expedita e drástica para a eliminação do preceito violador. E isto se faz independentemente de qualquer ofensa ou lesão a direito individual. No caso, é o interesse público que fala mais alto. O princípio da supremacia da Constituição é que é o valor supremo, que precisa ser defendido e resguardado, a todo poder que se possa.
Portanto, a fim de garantir a supremacia Constitucional não apenas em casos concretos em que esta for suscitada, o Brasil aderiu ao controle concentrado de constitucionalidade. Este é o meio adequado para se invalidar, em tese, lei ou ato normativo contrário à ordem constitucional. Neste sentido, assevera Holthe (2010, p. 174) que, “Através do ajuizamento de ações específicas, o controle concentrado busca a discussão ‘em tese’ (controle abstrato) da compatibilidade de um ato normativo com a Lei Maior, sem levar em conta qualquer situação subjetiva individual.”
O propósito deste controle é banir a lei inconstitucional do ordenamento jurídico, excetuada a ação direta de inconstitucionalidade interventiva, que tem por objeto a fiscalização do processo de intervenção federal nas hipóteses de ofensa aos princípios constitucionais sensíveis. (PAULO; ALEXANDRINO, 2012, p. 819). Ainda, na hipótese de omissão constitucional, o objeto é a declaração de ilegitimidade da não-edição da norma. (BARROSO, 2004, p. 114).
Destarte, haverá a averiguação da validade da lei em relação à Constituição. Contudo, essa verificação não poderá ser realizada por qualquer órgão do Poder Judiciário, como ocorre no controle difuso. O exercício deste controle ficou acometido, precipuamente, ao Supremo Tribunal Federal, pois a ele compete guardar a Constituição, conforme previsto no art. 102, caput . (BRASIL, 1988). Em âmbito estadual, a competência ficou reservada aos Tribunais de Justiça (art. 125, §2º, da Constituição Federal de 1988).
Desta forma, Guilherme Peña de Moraes (2012, p. 151-152) sustenta que:
O controle concentrado, instrumentalizado pela via de ação direta, proporciona a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, sustentada como objeto principal da ação cognitiva, por dois órgãos judiciais, consistentes no Supremo Tribunal Federal e Tribunal de Justiça, consoante a inconstitucionalidade possa ser declarada em face da Constituição da República, Constituição de Estado ou Lei Orgânica do Distrito Federal, inc. III, initio) [...].
A Constituição Federal de 1988 ampliou, através da Emenda Constitucional nº 45 de 2004, a legitimação ativa para o ingresso destas ações, conforme previsto no art. 103 da Constituição Federal. (BRASIL, 1988). Trata-se de rol exaustivo. Excetua-se a ação direta de inconstitucionalidade interventiva, que tem como único legitimado ativo o Procurador-Geral da República, conforme art. 36, inciso III, da Constituição. (BRASIL, 1988).
A decisão do Supremo Tribunal Federal, em se tratando da aferição em tese da constitucionalidade da lei ou ato normativo, terá eficácia geral (oponível contra todos) e efeito vinculante. Ferrari (2004, p. 230-231) explica:
Caracterizando um verdadeiro exercício do direito de ação, o julgamento efetuado pelo Supremo Tribunal Federal refere-se à lei em tese, e os efeitos dessa decisão deverão atingir a todas as hipóteses em que possa haver sua incidência, vale dizer, a decisão que declara a inconstitucionalidade em tese é de alcance erga omnes, obrigando, portanto, não só o Poder Judiciário como a todos os demais poderes – Legislativo e Executivo [...].
Ou seja, os efeitos da decisão na via de ação direta “[...] serão expandidos para afetar as relações jurídicas das pessoas que sequer tiveram conhecimento a respeito da existência da medida intentada (eficácia erga omnes).” (SILVA NETO, 2011, p. 182).
Com isso, a decisão produzirá efeitos para todos, ao contrário do controle difuso que gera efeitos apenas inter partes.
A previsão constitucional está no art. 102, §2º (BRASIL, 1988), segundo o qual:
As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.
Ademais, a Lei nº 9.868 de 1999 prevê, em seu art. 28, parágrafo único, a eficácia contra todos e efeito vinculante em declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade (BRASIL); bem como a Lei nº 9.882 de 1999, em seu art. 10, §3º, no caso de arguição de descumprimento de preceito fundamental. (BRASIL).
Ferrari (2004, p. 237) manifesta-se a respeito do efeito vinculante das decisões proferidas em controle abstrato de constitucionalidade:
Conferir efeito vinculante às decisões dos tribunais superiores é uma tendência universal, e consiste em lhes dar maior eficácia, isto é, além da eficácia erga omnes, própria das proferidas em jurisdição concentrada, na fiscalização abstrata da constitucionalidade, quer dizer que todos os órgãos judiciários e administrativos ficam a ela vinculados, obrigados a respeitar o que já ficou decidido pelo Supremo, o que possibilita a igualdade de efeitos de sua manifestação, pela submissão a seus termos de todas as causas, inclusive daquelas que estão em andamento.
Além disso, retira-se a norma do ordenamento jurídico, em regra com efeitos retroativos, ex tunc, ou seja, retroagem os efeitos até a criação da lei ou ato normativo declarado inconstitucional. Excepcionalmente, é possível que os efeitos sejam ex nunc, ou seja, irretroativos. É o que dispõe o art. 27 da Lei 9.868. (BRASIL, 1999).[3]
Devido à decisão já ser dotada de eficácia erga omnes, o controle abstrato de constitucionalidade não necessita da participação senatorial, tal como ocorre no controle concreto. É desnecessária, portanto, a comunicação ao Senado Federal a fim de suspender a execução de lei declarada inconstitucional quando o processo for de apreciação em tese, desvinculada de um caso concreto, o que se observa quando da leitura do art. 178 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. (SIQUEIRA JR., 2011, p. 271).
As decisões em controle abstrato também dependem de quórum, sendo que “esse quórum é formado pela maioria absoluta dos membros do órgão competente para a decisão, estando presentes no mínimo dois terços, isto é, oito Ministros”. (AGRA, 2008, p. 224).
Estas são algumas das características deste controle.
Portanto, no ordenamento jurídico brasileiro subsistem, concomitantemente, duas formas de exercer o controle de constitucionalidade judicial: a difusa e a concentrada, cujo fim maior é garantir a supremacia constitucional. “A grande diferença está que na via de ação a finalidade é retirar, de uma vez por todas, do ordenamento jurídico, a lei inconstitucional; já na via de defesa, o objetivo é subtrair alguém dos efeitos de uma lei com a eiva de inconstitucionalidade.” (BARRUFFINI, 2008, p. 73).