3-O DELEGADO DE POLÍCIA E O ARQUIVAMENTO DA “NOTITIA CRIMINIS”
É de trivial conhecimento que, nos termos do artigo 17, CPP, não é dado à Autoridade Policial arquivar autos de Inquérito Policial. Este ato se processa mediante requerimento do Ministério Público e decisão do Juiz.
Não obstante, há que distinguir o arquivamento do Inquérito Policial do arquivamento da “notitia criminis” ou do denominado Boletim de Ocorrência que pode e deve perfeitamente ocorrer em determinados casos específicos. Aliás, no Estado de São Paulo há previsão administrativa do Livro de Registro de Boletins de Ocorrência Arquivados e de uma pasta respectiva para armazenar tais registros com despacho fundamentado da Autoridade Policial responsável (Portaria DGP-18/98).
O diploma administrativo acima mencionado estabelece em seu artigo 2º. que “a autoridade policial não instaurará inquérito quando os fatos levados a sua consideração não configurarem manifestamente, qualquer ilícito penal” (grifo nosso). Também determina, no § 1º., do mesmo artigo 2º., igual procedimento para todos os casos em que não houver “justa causa para a deflagração de investigação criminal” , sempre devendo “em ato fundamentado, indicar as razões jurídicas e fáticas de seu convencimento” (grifo nosso). Não olvida o diploma em comento os casos de requerimento de instauração, estabelecendo no § 2º. que a Autoridade Policial, mediante despacho motivado, sequer conhecerá do pedido “se ausente descrição razoável da conduta a ensejar classificação em alguma infração penal ou indicação de elementos mínimos de informação e de prova que possibilitem o desenvolvimento de investigação”. Finalmente, em seu artigo 3º., determina a Portaria DGP 18/98 o arquivamento desses registros por despacho fundamentado e sua anotação em livro próprio (livro obrigatório). Nos §§ 1º. e 2º. do mesmo dispositivo é regulamentada a escrituração do referido livro, bem como a criação de pasta específica para armazenamento separado dos Boletins com despacho de arquivamento. Livro e pasta ficarão à disposição das autoridades corregedoras, recomendando-se que “quando das respectivas inspeções” recebam “rigorosa fiscalização, termo e rubrica” (§ 3º.). [26]
Para quem entenda que essa regulamentação administrativa poderia ser inquinada de vício por tratar de matéria processual, objeto exclusivo de lei federal (CF, artigo 22, I), é preciso lembrar que o diploma em destaque somente regulamenta o procedimento administrativo daquilo que se extrai do próprio Código de Processo Penal e da doutrina em geral disseminada sobre o tema. Ademais, a Portaria DGP 18/98 é considerada um marco na regulamentação da atividade de Polícia Judiciária com fulcro na legalidade, constitucionalidade e absoluto respeito aos direitos e garantias individuais.
Sua consonância com a melhor doutrina pode ser constatada facilmente, por exemplo, no ensinamento de Andreucci ao afirmar que embora o Delegado de Polícia não possa arquivar autos de Inquérito policial, “poderá arquivar a notitia criminis se não houver justa causa para a instauração do inquérito”. [27]
No mesmo diapasão, inclusive indicando dispositivo legal do Código de Processo Penal para sustentação da legitimidade de suas conclusões, manifesta-se Salles Júnior:
“Voltando à comunicação do crime diretamente ao Delegado de Polícia, temos que às vezes, apesar da lavratura do Boletim de Ocorrência ou do recebimento da comunicação escrita, o inquérito não é instaurado, por entender a autoridade policial que o fato não é criminoso, que a autoria é incerta ou por qualquer outro motivo (CPP, art. 5º., § 2º.)”. [28]
Ainda nessa esteira, Capez enfatiza a impossibilidade de arquivamento do Inquérito Policial pelo Delegado, mas afirma que “faltando justa causa, a autoridade policial pode (aliás, deve) deixar de instaurar o inquérito”. [29] Em suma, a Autoridade Policial pode deixar de instaurar o Inquérito mediante decisão fundamentada, o que não pode é, após a instauração, resolver “sponte própria” arquivar o feito.
Finalmente, tratando mais especificamente da questão da recusa de requerimento de instauração de Inquérito Policial, afirma Smanio que na chamada “delatio criminis” (art. 5º., II, segunda parte, CPP) pode haver indeferimento pela Autoridade Policial, cabendo recurso dessa decisão nos termos do artigo 5º., § 2º., CPP, [30] o que, mais uma vez, demonstra claramente que o Delegado de Polícia pode deixar de instaurar Inquérito em certos casos, inclusive por expressas disposições legais.
Nada mais óbvio do que a constatação de que a Autoridade Policial pode e deve arquivar ocorrências registradas somente de maneira fundamentada e em casos justificáveis como, por exemplo, situações em que o fato registrado é nitidamente atípico, registros ou pedidos de instauração por crimes revogados, casos em que há nítida ocorrência de prescrição ou decadência dentre outros.
Ademais, sendo a Polícia Judiciária um dos órgãos mais fiscalizados e abertos do Poder Público, certamente todas as decisões proferidas nessas condições serão correicionadas e, em caso de eventual equívoco, abuso ou mesmo má fé, poderão ser revistas. Observe-se que uma unidade policial civil sofre pelo menos duas correições ordinárias internas por ano, pode sofrer correições extraordinárias pela Corregedoria ou pela hierarquia superior a qualquer momento, deve receber visita mensal do Ministério Público no exercício do Controle Externo da Atividade Policial, sofre ao menos uma correição anual pelo Juiz Corregedor de Presídios e Polícia Judiciária e, como todo serviço público, está sujeita ao direito de petição e fiscalização constitucionalmente assegurado a qualquer do povo. Isso sem falar na possibilidade de recurso do indeferimento de instauração de Inquérito já mencionado neste texto e da possibilidade de acesso ao Ministério Público e/ou Judiciário para que, em discordando da Autoridade Policial, venham a requisitar a instauração do feito.
4-TEORIA GERAL DO DIREITO POLICIAL EM GUEDES VALENTE E A POLÍCIA COMO INSTRUMENTO DE GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Demonstrado que o Princípio da Insignificância conduz à atipicidade material do fato, bem como que é dado ao Delegado de Polícia o Poder – Dever de arquivar Boletins de Ocorrência que noticiem fatos atípicos ou que, por qualquer motivação, não ensejem justa causa para o desatar de uma persecução criminal, insta indicar como deve proceder a Autoridade Policial, em sua missão legal e constitucional na garantia dos Direitos Fundamentais da pessoa face à constatação de um delito bagatelar.
O Delegado de Polícia, na conformação que lhe empresta o ordenamento jurídico brasileiro, sendo necessariamente Bacharel em Direito e, portanto, versado nas ciências jurídicas tanto quanto os demais operadores, assim como hoje sendo exigido o requisito de atividade jurídica antecedente de pelo menos dois anos para ingresso no cargo (Constituição do Estado de São Paulo, artigo 140, § 4º.), pode certamente ser reconhecido como o primeiro e mais próximo magistrado do povo. [31] Dessa forma lhe cabe, em primeiro plano, assegurar o cumprimento das leis e, especialmente, da Constituição, conferindo a todo aquele com quem mantém alguma relação funcional a plenitude do reconhecimento da cidadania, jamais se conformando em ser um mero instrumento daquilo que Murilo de Carvalho denominou “estatania”, ou seja, a simples incorporação do indivíduo “ao sistema político pelo envolvimento na malha crescente da burocracia estatal”. [32]
Há tempos já se sabe que o Poder de Polícia não pode ser instrumento do autoritarismo, nem títere de uma burocracia sem capacidade reflexiva que possa garantir aos cidadãos os seus direitos positivos e negativos. Conforme salienta Madeira:
“É fatal que num Estado Democrático de Direito, o poder de polícia, ao ser exercitado pela Administração Pública, acate o princípio basilar de sua plena juricidade, ou de supremacia da regra de direito, como dizem, respectivamente, em sua lições, Del Vecchio e F. San Tiago Dantas”. A observância destes princípios, elevada pelo constitucionalismo à exigência de constituir-se juridicamente o próprio Estado, visa à racionalização do poder e à eliminação do arbítrio, pela colimação do ideal iluminista de conferir, por meio da lei escrita, clareza e certeza à variegada trama da vida social. Sem eles, não se teria como exequível uma série de princípios correlatos, como o de divisão de poderes e o da garantia dos direitos fundamentais que também informam o Estado Democrático de Direito”. [33]
Em seu trabalho de pesquisa aprofundada, o autor lusitano, Manuel Monteiro Gudes Valente, apresenta uma “Teoria Geral do Direito Policial”, calcada em um modelo de polícia ajustado ao regime democrático de direito, partindo da premissa de que
“A Polícia, como atividade de defesa da liberdade democrática, de garantia da segurança interna e dos direitos do cidadão, não pode ser vista só sob o ponto de vista sociológico, nem do ponto de vista político – braço ou instrumento deste - , nem sob o ponto de vista operacional – estratégico, tático e técnico. Impõe-se um aprofundamento jurídico teórico – prático da atividade da Polícia, que fundamente e justifique a necessidade de um corpo organizado dotado de ius imperii na prossecução de uma das tarefas fundamentais do Estado: defesa dos direitos e liberdades fundamentais”. [34]
E no universo dos Direitos Fundamentais a serem assegurados pela Polícia e, principalmente por seus dirigentes, Delegados de Polícia, destaca-se sobremaneira o “Direito à liberdade”. É comum que numa visão canhestra da figura do Delegado de Polícia este seja encarado somente por seu viés repressivo (aquele que prende, que coage...). Mas, a verdadeira, completa e complexa missão da Autoridade Policial é marcada pelos mesmos fins do Processo Penal que lhe serve, juntamente com a Constituição e o Direito Penal, de instrumento de trabalho.
“O processo penal e as garantias que o regem não são dirigidas aos criminosos, podendo ser alteradas conforme o grau de perversidade destes. A tutela se dirige à Sociedade como um todo e a cada indivíduo em particular, que pode, a qualquer momento, se transformar em suspeito ou acusado, ficando sujeito a abusos injustificáveis e a injustiças irreparáveis se não cercado das garantias constitucionais que lhe asseguram um devido processo legal”. [35]
Ora, o Processo Penal (e até o próprio Direito Penal) não é instrumento repressivo e sim garantia do cidadão quanto ao impedimento de ingerências arbitrárias em sua liberdade. Ele se conforma em garantismo negativo em face do Estado e, por isso, o Delegado de Polícia, como o primeiro agente estatal a manejá-lo com conhecimento e formação técnico – jurídica, deve ser o primeiro anteparo do indivíduo, ponto de apoio para a sustentação de sua dignidade humana, de sua liberdade e de todos seus direitos fundamentais. Retomando as lições de Guedes Valente:
“A tutela dos direitos , liberdades e garantias individuais é uma das finalidades da polícia não só contra as agressões dos particulares, mas também contra os abusos do jus puniendi do Estado”. [36]
Em terras brasileiras já vislumbrava com percuciência o mesmo quadro, Zaccariotto, apontando o papel da Segurança Pública e dos organismos policiais “como instrumentos de defesa das instituições democráticas”. Trazendo à baila o escólio de José Afonso da Silva, preceitua o autor, em consonância com esta exposição, que a Polícia é o órgão sobre o qual “primeiro recai a tarefa de evitar que a ordem juridicamente erigida seja derribada”, cumprindo-lhe, no seio de um Estado Democrático, atuar para a efetiva tutela legal da pessoa humana em sua “inerente dignidade, respeitando e fazendo respeitar todos os seus direitos, dentre os quais a liberdade e a igualdade se assomam os primeiros e mais significativos”. [37]
Partindo da constatação de que “a racionalidade do direito exige, (...), consistência constitucional do sistema jurídico”, [38] é inconcebível que o Delegado de Polícia, diante de um caso que se amolde claramente ao Princípio da Insignificância e, com isso, afaste induvidosamente a tipicidade material, venha a tomar providências repressivas de Polícia Judiciária quando não há justa causa para tanto. Nesse caso é de se indagar, onde e como ficaria a função garantista negativa a ser exercida pela Autoridade Policial e pelo próprio Processo Penal e Direito Penal diante da ordem constitucional?
Nesses casos é função da Autoridade Policial cumprir seu mister de primeiro garante dos Direitos Fundamentais da pessoa e de sua dignidade, evitando seu ingresso indevido no calvário da persecução criminal. A esse primeiro e mais acessível magistrado do povo cabe a missão de fazer valer não somente a lei e a Constituição, mas o valor inalienável da Justiça.
Citando Roberto Pérez Martinez em tradução livre, Zaccariotto aduz:
“No Estado de direito como operador público que é, e por especial atribuição competencial do exercício da violência legal, a polícia deve atuar observando em todo momento as garantias constitucionais previstas para não deixar sem proteção não apenas o indivíduo como também o próprio sistema democrático. Em consequência, a transcendental relevância que a função policial tem nesse desenho constitucional, apenas se justifica quando se trata de assegurar direitos, bens e valores constitucionalmente reconhecidos sobre o fundamento do princípio da legalidade, conforme os critérios da igualdade, necessidade e proporcionalidade”. [39]
Ora, a prisão em flagrante ou sequer o desate inicial da persecução penal contra alguém em situação de induvidosa aplicabilidade do Princípio da Insignificância não se coadunaria com qualquer avaliação de necessidade ou proporcionalidade.
A legalidade da atuação policial fulcrada num suposto princípio de “dura Lex, sed lex” não se coaduna com a mais moderna concepção de interpretação e aplicação do Direito. O Princípio da Legalidade é relevante para o agir policial, mas deve ter como vetor de legitimação e reforço desse agir o “princípio da oportunidade”, sob pena de submergir no conformismo com a concretização do brocardo latino “summum ius, summa iniuria”. Embora não positivado, o “princípio da oportunidade” na atuação policial compõe o direito contemporâneo com reconhecimento doutrinário, de maneira a ser classificado “como princípio estruturante do processo penal e, por maioria de razão, como princípio geral da atividade policial”. É preciso, porém, deixar claro, que o acatamento do “princípio da oportunidade” da atuação policial não se sobrepõe ou invalida a legalidade, antes e ao reverso, se acopla a este de forma complementar. É que “o princípio da oportunidade não tem expressão formal, mas material e instrumental no sentido de ser um princípio inerente à prossecução da atividade não só judicial criminal, mas também administrativa do Estado. Nessa linha de pensamento, a Polícia, face visível do Estado, não se pode apartar dos princípios que humanizam e legitimam sua intervenção”. [40]
É de ver que o amálgama entre legalidade e oportunidade na ação policial enseja o cumprimento de outro princípio basilar que é o “Princípio da Justiça”. Nesse passo, “a submissão da atividade policial ao princípio da justiça é uma consequência do Estado de direito democrático que vincula toda a atividade administrativa, inclusive a policial, ‘a critérios de justiça material ou de valor, constitucionalmente plasmados’, sendo de destacar ‘o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da efetividade dos direitos fundamentais’, a igualdade, a proporcionalidade, a boa fé, a razoabilidade, a equidade”. [41]
Mormente no atual contexto em que a Polícia Civil, dirigida por Delegados de Polícia de Carreira, no exercício de atos de Polícia Judiciária, é reconhecida como “atribuição essencial à função jurisdicional do Estado e à defesa da ordem jurídica”, bem como é assegurada às Autoridades Policiais “independência funcional pela livre convicção nos atos de polícia judiciária” (art. 140, § 2º., da Constituição do Estado de São Paulo), torna-se inafastável o poder - dever do Delegado de Polícia em reconhecer de forma fundamentada a incidência do Princípio da Insignificância em determinados casos concretos, sempre “sub censura” de eventuais conflitos de convicção perante o Ministério Público e o Judiciário que são dotados de poder requisitório e não são atrelados às deliberações do Delegado. Observando-se, desde logo, que o exercício desses poderes requisitórios ou mesmo correicionais internos em nada maculam a livre convicção da Autoridade Policial inicialmente oficiante, pois que inclusive uma decisão judicial é passível de reforma e uma manifestação do Ministério Público pode não ser acatada (v.g. rejeição de denúncia), tudo isso dentro da legalidade e do devido processo legal com os recursos a ele inerentes. Obviamente que a Autoridade Policial não é maculada em sua livre convicção quando não é submetida a pretensas sanções ou coações quando toma tais decisões de forma motivada. Caso contrário, estará sendo vítima de constrangimento ilegal e usurpação de função. Portanto, salvo em casos de gritante e grosseiro erro ou, principalmente, em situações de comprovada má fé, a alteração da decisão inicial da Autoridade Policial mediante requisições ministeriais ou judiciais ou pela atividade correicional, não devem implicar em quaisquer sanções ou sequer ameaças de sanções ou advertências.
Vem reforçar esse entendimento a promulgação da Lei 12.830/13, cujo projeto foi de autoria do Deputado Federal Arnaldo Faria de Sá, que amplia os poderes dos Delegados de Polícia, estabelecendo em seu artigo 2º. que “as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado”. E em seu § 6º. determina que “o indiciamento” é ato “privativo do delegado de polícia” e se dará de forma fundamentada, “mediante análise técnico – jurídica do fato”.