1. Considerações iniciais. A metodologia civil-constitucional e a relevância social dos serviços de saúde
Esse trabalho tem por objetivo promover a diferenciação entre os diversos deveres decorrentes da relação jurídica instaurada entre médico e paciente, de acordo com a metodologia civil-constitucional.
A constitucionalização do direito civil e a releitura dos seus institutos a partir de valores constitucionais promoveu intensa oxigenação dos dogmas civilísticos, antes sedimentados sobre valores individualistas. A incorporação da metodologia civil-constitucional pela doutrina – trazida ao debate acadêmico brasileiro pelas mãos dos professores Gustavo Tepedino e Maria Celina Bodin de Moraes¹ – e a sua adesão pela jurisprudência pátria² fizeram com que os profícuos ventos axiológicos irradiados pelos valores constitucionais soprassem por todos os campos do direito civil contemporâneo³.
As sementes do direito civil-constitucional deram frutos por todos os campos do direito civil4. Seja na parte geral, no direito das obrigações, nos contratos, na empresa, nas relações familiares, no direito sucessório, no campo da responsabilidade civil ou no direito do consumidor, é irrefutável a constatação da mudança paradigmática operada por essa metodologia, que propõe a harmonização coerente e razoável da norma ordinária com a norma constitucional, segundo critérios ou princípios de adequação e de proporcionalidade que postulam o conhecimento aprofundado das peculiaridades do caso concreto5.
Não poderia ser diferente no que toca à relação jurídica contratual travada entre médico e paciente. Indubitavelmente, trata-se de espécie de prestação de serviços de inestimável utilidade para a vida em sociedade, uma vez que a saúde é direito social protegido na Constituição Federal6, e é dever do Estado garantir o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação7. A Constituição confere relevância pública às ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle8.
Por conseguinte, não se pode pensar no exercício pleno da dignidade da pessoa humana, sem plena garantia à integridade psicofísica9, de forma que a prestação de serviços médicos está intrinsecamente ligada ao exercício deste substrato axiológico.
A unidade do ordenamento jurídico e a superação da clássica dicotomia entre Direito Público – Direito Privado, nos fez compreender que o Código Civil não mais se encontra ao centro das relações de direito privado10. Os valores constitucionais estão no centro do sistema, de forma que todas as relações tradicionalmente tuteladas pelo Direito Privado não escapam do alcance da normativa fundamental, uma vez que todas as normas ordinárias devem harmonizar-se com os valores da dignidade da pessoa humana, da livre-iniciativa e da solidariedade social. Destarte, é imperioso revisitar conceitos jurídicos do passado, que foram idealizados em outro contexto social e cultural, por hora ultrapassados.
Na avalanche de ideias e reformulações conceituais operadas pela constitucionalização do direito civil, foi soterrada a concepção tradicional e voluntarista de obrigações, pois, na nova ordem de ideias, privilegia-se a concepção da relação obrigacional como instrumento de cooperação social voltada a satisfazer os interesses das partes envolvidas11.
Por esta razão, pretende-se refletir sobre esta relação jurídica de relevância social, problematizando diferentes aspectos desta prestação de serviços médicos de acordo com a metodologia civil-constitucional, de forma a subsidiar possíveis debates acerca de desdobramentos desta dinâmica, mormente no que tange a relação obrigacional, o que pode implicar consequências diversas, inclusive, na responsabilidade civil do profissional médico pela falha na execução de seus deveres.
2. A funcionalização do contrato de prestação de serviços médicos. Os deveres contratuais e extracontratuais relativos à prestação de serviços médicos
A metodologia civil-constitucional nos convida não só a superar as abstratizações dos institutos de direito e a abandonar o conceitualismo12, como também a promover a valorização do perfil funcional dos institutos, reconhecendo sua historicidade, na medida da importância da função que exercem naquela determinada sociedade, naquele determinado momento histórico13.
Por esta razão, não se pode enxergar todos os contratos de prestação de serviços de maneira idêntica, uma vez que, embora diante da metodologia civil-constitucional todos os fatos sejam juridicamente relevantes14, não é dado subestimar a importância axiológica do direito à saúde, expressão da dignidade da pessoa humana.
A funcionalização dos contratos, de acordo com os interesses jurídicos ventilados na hipótese, constitui um exercício de constitucionalização do vínculo contratual, um problema de interpretação e qualificação do negócio em concreto, uma vez que é “por meio do procedimento de qualificação que se logra individuar a normativa adequada a cada caso concreto, à luz das regras, dos princípios e dos valores constantes do ordenamento” (Monteiro Filho, 2011, p. 202).
Gustavo Tepedino, em importante lição sobre a responsabilidade médica no direito brasileiro15, nos ensina que a responsabilidade civil decorrente do exercício de atividade profissional do médico tem configurado de responsabilidade contratual de forma prevalente pela doutrina. Este autor, ao mesmo tempo que reconhece a natureza contratual dos serviços médicos, constata a existência de um núcleo de deveres extrapatrimoniais, essenciais à natureza da avença, sinalizando que: “tais deveres, ao lado da intervenção técnica, prestação dirigida à cura propriamente dita, definem a função jurídica do contrato, oferecendo conotação peculiar à causa contratual, que o faz negócio atípico, diverso da locação de serviços convencionalmente disciplinada pelo Código Civil” (Tepedino, 2006, p. 85).
Separa, outrossim, alguns deveres anexos ao contrato de prestação de serviços médicos, daqueles referentes ao exercício do mister referentes à cura propriamente dita. Exemplificadamente, arrola como deveres anexos decorrentes de atos extracontratuais inerentes à atividade médica, os deveres de prestação de socorros, o de proferir atestados verdadeiros, de sigilo profissional, e o de proferir conferências e escrever obras baseado em lições pertinentes. Ainda16, promove separação entre a responsabilidade contratual, decorrente do atendimento médico privado, da responsabilidade delitual, nas hipóteses em que o dano pelo médico provocado advenha de atos contratuais inerentes à atividade médica.
A constatação da existência de deveres extrapatrimoniais anexos ao contrato de prestação de serviços médicos impõe a funcionalização desta modalidade contratual que, em que pese sua enorme importância social, não possui disciplina legislativa infraconstitucional específica – exceto no que tange às hipóteses de indenização por reparação civil (artigos 951 do Código Civil17 e art. 14 § 4º do Código de Defesa do Consumidor18), quando o legislador engloba todos os profissionais liberais em idêntica modalidade de responsabilidade civil.
O princípio da função social dos contratos, expressamente referido no artigo 421 do Código Civil de 200219 é, presentemente, um preceito de ordem pública, de forma que é inválido qualquer negócio ou ato jurídico que contrariar esta disposição20. Este princípio impõe aos titulares de posições contratuais dominantes o dever de perseguir, ao lado de seus interesses individuais, interesses extracontratuais socialmente relevantes, dignos de tutela jurídica, relacionados ou alcançados pelo contrato21.
A constitucionalização do direito civil provocou, no contexto das relações obrigacionais, um inchaço da noção de obrigação para abranger outros interesses legítimos, compreendendo variados poderes e deveres de ambas as partes, conforme afirma Pablo Renteria:
A construção teórica da relação obrigacional em termos de cooperação, sob o influxo dos diversificados interesses que são regulamentados no contexto da concreta relação jurídica, evidencia a insuficiência das teorias tradicionais que concebem a relação obrigacional como a contraposição entre a situação jurídica ativa do credor, constituída unicamente por poderes, e a passiva do devedor, caracterizada por deveres e sujeições. Em seu lugar, afirma-se a concepção da obrigação como relação complexa, ou ainda como processo, que compreende os variados poderes e deveres de ambas as partes, que se constituem ao longo da relação jurídica, de modo a assegurar concretamente a cooperação necessária ao regular cumprimento do pactuado. (Rentería, 2011, p.6)
A obra pioneira do professor Clóvis Veríssimo do Couto e Silva22 já retratava a obrigação como um processo, onde o débito e o crédito aparecem no vínculo não como os únicos elementos existentes, mas ao lado de outros igualmente importantes, partindo de uma concepção de relação jurídica como uma totalidade que não se esgota na soma dos elementos que a compõem.
Diante deste panorama, podemos visualizar, dentro da mesma relação médico-paciente, duas esferas de interesses distintos, a merecerem tratamento jurídico diferenciado: de um lado, aqueles 17patrimoniais, referentes aos deveres decorrentes da prestação remunerada de serviços médicos propriamente ditos dirigidos à intervenção técnica em busca da cura e, de outro, os existenciais, referentes aos deveres extrapatrimoniais anexos, essenciais à natureza da avença.
Como premissa básica para que se possa efetivar esta análise, faz-se necessário superar a perspectiva puramente estrutural do contrato, para adotar uma atividade interpretativa que envolva valores, para, assim como Bobbio23, priorizar o perfil funcional de um instituto, seus efeitos, passando de como ele é, para o para o que ele serve enquanto negócio jurídico.
É evidente que a distinção entre quais situações seriam patrimoniais e quais seriam existenciais num contrato de prestação de serviços médicos, nem sempre é nítida e de fácil percepção. Porém, existem aspectos da dinâmica médico-paciente, onde há o predomínio da carga patrimonial muito maior do que a existencial, ou o contrário.
As situações biojurídicas, são especialmente problemáticas, uma vez que abrangem reflexões acerca da tutela jurídica da pessoa frente aos avanços da ciência e da biomedicina24. Em seu trabalho sobre situações jurídicas dúplices, Ana Carolina Brochado Teixeira e Carlos Nelson Konder reconhecem a existência de grande dificuldade de identificação da situação predominante, quando o interesse, fundamento justificativo da situação, envolve os aspectos patrimonial e existencial com a mesma intensidade. Nesse passo, afirmam:
A distinção se faz necessária tendo em vista a instrumentalidade indireta das situações patrimoniais à concretização da dignidade, pois seu principal objetivo é a realização de uma função social; prioritariamente, elas estão a serviço da coletividade, tornando-se inevitável a conformação da autonomia privada ao imperativo da solidariedade. Situação diferente ocorre nas situações jurídicas existenciais, cujo objetivo é a realização direta da dignidade, conforme as próprias aspirações, valores e modus vivendi; enfim, têm como função imanente a livre realização da personalidade, segundo o próprio projeto de vida que a pessoa construiu para si. Podemos sintetizar que as situações patrimoniais têm função social e as existenciais, apenas pessoal – se é que podemos atribuir a elas algum tipo de função. (TEIXEIRA, KONDER, 2012, p. 08).
Muitas vezes, as situações jurídicas existenciais e patrimoniais se complementam, e se retroalimentam, de forma que o exame em concreto é o mais eficiente para averiguar a regulamentação dos efeitos advindos daqueles fatos no mundo jurídico.
Interessante notar que diferentes situações empregam lógicas diversas, na medida de sua patrimonialidade ou existencialidade, de maneira que é inadequado solucionar questões de cunho existencial com respostas patrimoniais e vice-versa.
Gustavo Tepedino, com grande maestria, verificou que algumas situações existenciais que foram equivocadamente solucionadas com paradigmas patrimoniais25, e concluiu ser imprescindível a utilização de critérios hermenêuticos distintos para definições referentes a manifestações da autonomia patrimonial e de deveres existenciais.
A doutrina vem se encarregando de selecionar alguns deveres relacionados à prática médica de cunho extrapatrimonial uma vez que relacionados aos valores constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1o., III), do valor social da livre iniciativa (art. 1o., IV), da igualdade substancial (art. 3o., III) e da solidariedade social (art. 3o., I). A função social do contrato impõe às partes o dever de perseguir, ao lado de seus interesses individuais, interesses extracontratuais socialmente relevantes, dignos de tutela jurídica, que se relacionam com o contrato ou são por ele atingidos26.
Gustavo Tepedino, em artigo sobre a responsabilidade médica na experiência brasileira27, agrupou em três categorias centrais os deveres do médico. Em primeiro lugar, o dever de informação. Este dever estaria ligado aos “riscos do tratamento, a ponderação quanto às vantagens e às desvantagens da hospitalização ou das diversas técnicas a serem empregadas, bem como a revelação quanto a prognósticos e ao quadro clínico e cirúrgico, salvo quando tal informação possa afetar psicologicamente o paciente” (Tepedino, 2006, p. 90).
Este dever de prestar informações é mencionado pela professora Judith Martins-Costa28, no estudo da boa-fé objetiva como limite ao exercício de direitos, onde afirma que deverá haver necessária conexão funcional com as regras atinentes ao exercício em causa.
Outrossim, leciona que na relação pré-contratual de serviços médicos é patente a assimetria de poderes informativos, de forma que a boa-fé deverá comandar a avaliação da qualidade e extensão das informações pré-contratuais prestadas pelo médico ao paciente.
Clóvis V. Do Couto e Silva, ao tratar dos deveres secundários às obrigações refere-se ao “dever de esclarecimento”29, que, teria conteúdo muito próximo ao dever de prestar informações, uma vez que o autor o define como o dever, dirigido ao outro participante da relação jurídica, de tornar clara circunstância de que a outra parte tem conhecimento imperfeito, ou errôneo, ou ignora totalmente.
A questão do dever de prestar informações por parte do médico está em grande parte ligado à aquiescência do paciente quanto à execução ou não das práticas terapeuticas, nos termos do artigo 22 do Código de Ética Médica (Resolução do Conselho Federal de Medicina, no. 1.931/2009)30. O consentimento do paciente está, por sua vez, ligado à tutela da liberdade, que é expressão da dignidade da pessoa humana31. Para Maria Celina Bodin de Moraes, configura violação de dignidade da pessoa humana, a impossibilidade de recusar tratamento médico por motivos religiosos32 .
Num outro giro, ainda no que tange ao dever de prestar informações, um outro aspecto refere-se à expectativa que foi efetivamente gerada no paciente, de acordo com as informações prestadas pelo médico ao paciente. Para Pablo Rentería, os esclarecimentos que o médico prestar ao paciente quanto aos resultados e riscos da operação vão influir na determinação se a obrigação do cirurgião plástico é de meios ou de resultado pois somente o caso concreto pode confirmar se por suas declarações, atitudes e omissões, o devedor gerou ou não no credor legítima expectativa diversa quanto ao alcance da obrigação assumida33.
Por tudo isso, é de se concluir que o dever de prestar informações possui conteúdo fortemente extrapatrimonial, vez que as situações ligadas ao descumprimento deste dever devem ser tuteladas de acordo com uma lógica existencial, pois os institutos patrimoniais do direito civil são incapazes, por si só, de solucionar questionamentos eventuais acerca de problemáticas geradas a a partir da violação deste dever. Conforme foi dito, nas situações jurídicas existenciais, o objetivo é a realização direta da dignidade e a livre realização da personalidade, de acordo com o próprio projeto de vida que a pessoa tem para si e não a tutela de interesses patrimoniais.
Curioso observar que o dever de prestar informações é um dever anexo a diversos contratos, não apenas ao contrato de prestação de serviços médicos, de forma que, diante do paradigma da solidariedade, a transparência e a informação devem estar sempre presentes na prestação de serviços profissionais em geral.
Seguindo a sistematização das categorias de deveres proposta por Gustavo Tepedino34, em segundo lugar está o dever de emprego da técnica adequada, nele incluídos os deveres de atender aos chamados e proceder às visitas, sendo admissível a indicação de colega ou de assistente nas hipóteses de impossibilidade de comparecimento pessoal.
O Código de Ética Médica (Resolução CFM no. 1931/2009) traz como um dos princípios fundamentais o de “aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente”35.
Este dever está ligado ao exercício da prática médica propriamente dita, uma vez que ligado a aspectos científicos da prestação de serviços. Isto é, ligado a conhecimento aplicado à situações fáticas, em troca das quais o paciente oferece remuneração. Trata-se de dever de conteúdo patrimonial, uma vez que o profissional é remunerado justamente pelo emprego da técnica. A obrigação principal, que é a de prestar serviços médicos está intrinsecamente ligada ao fato destes profissionais empregarem a técnica adequada na prestação destes serviços. Destarte, encaixa-se nesta lógica a dinâmica credor x devedor, de acordo com o cumprimento ou não da obrigação principal. Trata-se de lógica patrimonial, muito embora não seja a única a ser empregada na complexa relação em análise neste trabalho.
Em terceiro lugar na categoria de deveres do médico elencados pelo professor Tepedino36, está o dever de tutela do melhor interesse do enfermo em favor de sua dignidade e integridade física e psíquica, como critério interpretativo para a avaliação da conduta médica. Analisando o conteúdo desse dever, ensina o autor que, “em qualquer circunstância e acima de qualquer outro interesse – pecuniário, profissional ou mesmo científico – deve o médico zelar pela integridade psicofísica do paciente e por sua dignidade, expressão da tutela constitucional incluída no rol dos fundamentos da República (art. 1o., III, C.F.)” (Tepedino, 2006, p. 95). Este dever está intimamente relacionado ao sentimento de integridade psicofísica do paciente, que integra o substrato material da dignidade da pessoa humana.37.
Em uma primeira análise, pode-se afirmar que uma eventual discussão judicial acerca da violação do melhor interesse do paciente irá repercutir sobre aspectos existenciais, muito mais do que patrimoniais, uma vez que o melhor interesse do paciente pode ir de encontro ou não às opções de tratamento oferecidas. No processo de tomada de decisões profissionais, o médico deverá aceitar as escolhas dos pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas (princípio fundamental XXI do Código de Ética Médica). Tais escolhas são personalíssimas, e configuram expressão da individualidade pessoal do paciente, de acordo com seu projeto de vida, de forma que a violação deste dever importa lesão de ordem existencial, o que pode eventualmente ter implicações no campo patrimonial em sede de tratamento particular custeado pelo paciente. Cumpre analisar o caso concreto para verificar se tal dever foi ou não violado, e se o seu conteúdo, na hipótese, é predominantemente voltado à uma lógica existencial ou patrimonial.
Embora não tenha sido categorizado como uma das espécies de deveres principais do médico, o dever de discrição foi citado, por Gustavo Tepedino como exemplo de deveres extrapatrimoniais anexos ao contrato de prestação de serviços médicos, conforme dito acima38. Em passagem sobre tal dever, o autor leciona:
Quanto à discrição, viola a boa-fé contratual o médico que, em desapreço pela tutela constitucional à intimidade (art. 5O X, C.F.), divulga o nome dos seus pacientes, o diagnóstico e os resultados obtidos, sendo intolerável, assim, a publicação dos casos clínicos, mesmo para fins científicos, sem a autorização do interessado. (Tepedino, 2006, p. 96)
Para o professor Clóvis Veríssimo do Couto e Silva39, o dever de sigilo é uma espécie de dever secundário independente da obrigação principal, uma vez que perdura depois de cumprida a obrigação principal.
O dever de sigilo também está previsto como princípio fundamental do Código de Ética Médica (Resolução CFM no. 1931/2009)40. A divulgação de informação médica sigilosa implica na incapacidade de controle do paciente acerca dos próprios dados pessoais (os chamados “dados sensíveis”), configurando situação que ofende a liberdade pessoal, na esfera da privacidade41, razão pela qual a ofensa ao dever de sigilo consubstancia ofensa a dignidade da pessoa humana.
A identificação desses deveres não exclui a existência de outros, anexos à obrigação principal de prestação de serviços médicos, que deve ser entendida como um processo complexo, operando numa dinâmica de cooperação42.
Demais disso, importante pontuar que todos esses deveres devem ser interpretados à luz da boa-fé objetiva, que se expressa tanto na execução do contrato quanto nas fases pré e pós-contratual43. Os deveres secundários (ou anexos), são resultado da incidência do princípio da boa-fé, e comportam tratamento que abranja toda a relação jurídica, conforme aponta Clóvis Veríssimo do Couto e Silva:
Assim, podem ser examinados durante o curso ou o desenvolvimento da relação jurídica, e, em certos casos, posteriormente ao adimplemento da obrigação principal. Consistem em indicações, atos de proteção, como o dever de afastar danos, atos de vigilância, de guarda, de cooperação, de assistência. (SILVA, 2006, p.93)
Como se vê, a doutrina tem buscado identificar e promover a necessária diferenciação entre as diferentes espécies de deveres relacionados à prestação de serviços médicos, muito embora a normativa infra-constitucional passe ao largo dessa problemática. Disso decorre que, eventual questionamento decorrente do inadimplemento de um dever contratual principal ou secundário, patrimonial ou extrapatrimonial, acaba solucionado de maneira uniforme pela jurisprudência que, muitas das vezes, baseada em pensamento oitocentista, aplica uma lógica patrimonialista para solucionar problemas que são de essencialmente existenciais.