Um dos temas mais rudimentares do Direito é a prescrição. De fato, dificilmente ver-se-á um estudante que não tenha se batido com definições desse fenômeno jurídico, máxime em paralelo com os estudo de outro bastante semelhante, a decadência. Os prazos prescricionais podem ser interrompidos ou suspensos, enquanto que os prazos decadenciais não. Essa cogitação pulula na cabeça dos catedráticos de Direito desde o início do curso.
Não vamos tentar deitar conceituações, tampouco definições sobre o que seja a prescrição ou a decadência. Deixemos os meandros científicos para alçarmos à nossa mira os aspectos bem práticos da prescrição.
O fato é que, uma vez transcorrido o prazo prescricional, o sujeito não pode mais exercer o direito de ação para reclamar o bem da vida a que, ao menos em tese, teria direito caso o defendesse antes. Em boa parte definidos no Código Civil, os prazos prescricionais variam de acordo com a valoração que o Legislador houve por bem dar a essa ou aquela natureza jurídica do direito a se perseguir através da ação judicial.
Bem assim, os prazos são maiores ou menores na exata medida dessa mencionada valoração que coube, essencialmente, ao Legislador. Previstos em abstrato, os prazos são definidos, por exemplo, conforme se trate de direitos reais, direitos pessoais, e assim por diante. Com o Código Civil de 2002, o Legislador houve por bem ser mais minudente, fixando os prazos sob critérios mais bem elucidados. Vejamos os prazos hoje previstos:
Art. 205. A prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor.
Art. 206. Prescreve:
§ 1o Em um ano:
I - a pretensão dos hospedeiros ou fornecedores de víveres destinados a consumo no próprio estabelecimento, para o pagamento da hospedagem ou dos alimentos;
II - a pretensão do segurado contra o segurador, ou a deste contra aquele, contado o prazo:
a) para o segurado, no caso de seguro de responsabilidade civil, da data em que é citado para responder à ação de indenização proposta pelo terceiro prejudicado, ou da data que a este indeniza, com a anuência do segurador;
b) quanto aos demais seguros, da ciência do fato gerador da pretensão;
III - a pretensão dos tabeliães, auxiliares da justiça, serventuários judiciais, árbitros e peritos, pela percepção de emolumentos, custas e honorários;
IV - a pretensão contra os peritos, pela avaliação dos bens que entraram para a formação do capital de sociedade anônima, contado da publicação da ata da assembléia que aprovar o laudo;
V - a pretensão dos credores não pagos contra os sócios ou acionistas e os liquidantes, contado o prazo da publicação da ata de encerramento da liquidação da sociedade.
§ 2o Em dois anos, a pretensão para haver prestações alimentares, a partir da data em que se vencerem.
§ 3o Em três anos:
I - a pretensão relativa a aluguéis de prédios urbanos ou rústicos;
II - a pretensão para receber prestações vencidas de rendas temporárias ou vitalícias;
III - a pretensão para haver juros, dividendos ou quaisquer prestações acessórias, pagáveis, em períodos não maiores de um ano, com capitalização ou sem ela;
IV - a pretensão de ressarcimento de enriquecimento sem causa;
V - a pretensão de reparação civil;
VI - a pretensão de restituição dos lucros ou dividendos recebidos de má-fé, correndo o prazo da data em que foi deliberada a distribuição;
VII - a pretensão contra as pessoas em seguida indicadas por violação da lei ou do estatuto, contado o prazo:
a) para os fundadores, da publicação dos atos constitutivos da sociedade anônima;
b) para os administradores, ou fiscais, da apresentação, aos sócios, do balanço referente ao exercício em que a violação tenha sido praticada, ou da reunião ou assembléia geral que dela deva tomar conhecimento;
c) para os liquidantes, da primeira assembléia semestral posterior à violação;
VIII - a pretensão para haver o pagamento de título de crédito, a contar do vencimento, ressalvadas as disposições de lei especial;
IX - a pretensão do beneficiário contra o segurador, e a do terceiro prejudicado, no caso de seguro de responsabilidade civil obrigatório.
§ 4o Em quatro anos, a pretensão relativa à tutela, a contar da data da aprovação das contas.
§ 5o Em cinco anos:
I - a pretensão de cobrança de dívidas líquidas constantes de instrumento público ou particular;
II - a pretensão dos profissionais liberais em geral, procuradores judiciais, curadores e professores pelos seus honorários, contado o prazo da conclusão dos serviços, da cessação dos respectivos contratos ou mandato;
III - a pretensão do vencedor para haver do vencido o que despendeu em juízo.
O que nos interesse neste pequeno ensaio é um aspecto que veio a lume por força da modificação dos prazos prescricionais em relação ao Código Civil de 1916. Os prazos antes vigentes eram bem diferentes, geralmente maiores. Com a entrada em vigor do CC-2002 em 11 de janeiro de 2003, as relações jurídicas nascidas na vigência do CC-1916 submeteram-se à norma de transição estabelecida no artigo
Art. 2.028. Serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada.
Conquanto a redação não seja um primor de clareza, o comando pode ser bem compreendido. No caso da prescrição, se o prazo do CC-1916 já tiver se escoado em pelo menos metade mais um dia, rege-se integralmente pela norma anterior (ou seja, o CC-1916). Por todo o óbvio, se metade ou menos do prazo tiver transcorrido, rege-se pela regra do novo Código, isto é, do CC-2002.
Isso implica na aplicação, por exemplo, do prazo de 05 anos para as situações jurídicas em que, antes, o prazo era de 20 anos. Uma mudança bastante radical. Diante da norma de transição, ninguém poderia alegar surpresa de qualquer forma.
Interessa-nos os créditos decorrentes de contratos. As obrigações de caráter pessoal prescreviam em 20 anos sob a vigência do CC-1916. Assim, os créditos dos financiamentos em geral cingiam-se a esse mesmo prazo de prescrição para a cobrança judicial dos créditos decorrentes da inadimplência. Os financiamentos de longo curso costumavam ostentar, tanto quanto continuam ostentando hoje, cláusulas de antecipação do vencimento das prestações vincendas diante da inadimplência do mutuário.
A sociedade acostumou-se a ver tal avença inserida nos contratos. Ninguém discutia, ou discute, que é juridicamente possível acordar-se que o não pagamento de uma prestação (ou um de um número pré-estabelecido de prestações) no respectivo vencimento leva ao vencimento antecipado de todas as demais futuras prestações.
O vencimento antecipado das prestações futuras não é considerada uma cláusula abusiva por ser uma garantia do credor, possibilitando-lhe perseguir em execução todo o valor emprestado ainda não amortizado. O credor fica, assim, livre do jugo do devedor quanto à sorte das prestações vincendas. É uma cláusula justa porque o devedor, beneficiado com o pagamento parcelado, já recebera desde o início os efeitos em seu favor da liberação do capital financiado.
Exatamente por isso não tem sentido projetar-se o início do prazo prescricional tocante à cobrança do valor do contrato para a data em que ocorreria o pagamento da última prestação, com vêm decidindo as Cortes Pátrias nos últimos anos. Ora, desde que antecipado o vencimento de todas as prestações faltantes, não se tem mais o termo final do financiamento na data inicialmente aprazada. As Cortes dobraram-se a uma hermenêutica casuísta, decorrente da modificação do prazo pelo CC-2002. O prazo antes previsto era muito maior e o Judiciário houve por bem resguardar o interesse do credor. Mas, entendendo dessa forma, criou um autêntico privilégio odioso para o credor, uma vez que à cláusula já de cunho protetivo da antecipação do vencimento junta-se, em concepção diametralmente oposta, a fixação da data não mais existente daquela que seria a última pre stação como termo inicial do prazo prescricional para a cobrança do mesmo crédito.
A data de início do prazo prescricional, repita-se, é uma data fictícia, que deixou de existir por força da cláusula de antecipação do vencimento das prestações em aberto. Então a coisa se põe sob eficácia, no mínimo, teratológica. Afinal, se a prescrição do direito de ação para a cobrança só começa na data em que, um dia, esteve previsto o vencimento da última prestação, como se pode falar em antecipação do vencimento inclusive para fins de cobrança dos efeitos da mora?
O credor estaria disposto a só considerar a mora a partir da data de vencimento de cada prestação em aberto? Não cremos. O cálculo havia de extirpar a mora de cada parcela, mês a mês, conforme fossem vencendo as prestações nas datas em que estavam previstas, da mesma forma como ocorre com a fabulosa última prestação, eleita a rainha por ser a única que permite deflagrar o prazo prescricional.
Não. Simplesmente não tem lógica e não se subsume a nenhum princípio jurídico senão por política judiciária em prejuízo do mutuário e em privilégio do credor financeiro.
Curiosamente, no caso de financiamentos habitacionais, o agente financeiro é useiro e vezeiro em alegar, em sua contestação, que a antecipação do vencimento das prestações em aberto caracteriza o fim do contrato que o mutuário busca revisar. Chega a ser irônica a situação. O contrato é reputado rescindido ao mesmo tempo em que a data da última prestação inicialmente prevista, por ressurreição ou efeito zumbi, permanece eficaz para o fim de iniciar o prazo prescricional.
Mais um aspecto merece ser lembrado. Quando o interesse é do particular, buscando, por exemplo, diferenças em suas contas de poupança ou FGTS, o Judiciário considera “exigibilíssimo” (permitam-me o neologismo superlativo) que, se for o caso, o interessado promova medida acautelatória interruptiva da prescrição. Afinal, o Direito não socorre aos que dormem, não é mesmo?
Por que não é igualmente exigível que o agente financeiro, se pretende resguardar-se, promova a mesma medida acautelatória? Seu soninho é mais compreensível?
Com a devida vênia dos condoreiros juristas que bradam não ser senão premissa inválida que a prescrição se inicia com o começo da inadimplência, é de se entender que o credor conta atualmente com cinco anos para iniciar a execução judicial a partir do começo da inadimplência. Sob pena de mantermos esse sistema teratológico e protecionista em prejuízo do direito dos mutuários.